Hoje, 22 de maio de 2020, é mais um Dia Internacional da Biodiversidade. Talvez
com a tragédia humana decorrente da pandemia do Covid-19, que está levando à
morte centenas de milhares de pessoas no mundo, poucos se dão conta de que as
doenças e as vulnerabilidades da saúde humana estão também interligadas à alteração
da natureza, em um planeta em que a vida também adoece.
Este ano, irão expirar as Metas da Biodiversidade 2020[1],
ou as Metas de Aichi, elaboradas, há 10 anos, na cidade de Nagoya, província de
Aichi, Japão, durante a Conferência das Partes sobre Biodiversidade, a COP-10.
Estas conferências, conduzidas pela ONU, ocorrem a cada dois anos e são
resultado da Convenção da Diversidade
Biológica (CDB), que surgiu na
Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 (Rio 92), a partir de um acordo com mais
de 160 países signatários, inclusive o Brasil.
https://envolverde.cartacapital.com.br/a-quem-interessa-a-desinformacao-sobre-a-agenda-de-conservacao-da-biodiversidade-no-brasil/ |
As metas 2020, em nível mundial, incluem cinco
grandes objetivos: a) Tratar das causas fundamentais de
perda de biodiversidade fazendo com que preocupações com biodiversidade
permeiem governo e sociedade; b) Reduzir as pressões diretas sobre
biodiversidade e promover o uso sustentável; c) Melhorar a situação da biodiversidade protegendo ecossistemas, espécies
e diversidade genética (estabelecimento
de pelo menos 17% de territórios terrestres e 10% de águas marinhas como sistema
de áreas protegidas); d) Aumentar
os benefícios de biodiversidade e serviços ecossistêmicos para todos; e) Aumentar
a implementação de metas por meio de
planejamento participativo, gestão de
conhecimento e capacitação.
Entretanto, é importante considerar que, além de
não se ter avançado no tema, estão ocorrendo retrocessos sem precedentes, com perdas
irreversíveis e aceleradas. Inclusive o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente admitiu, no final de 2019, que “a comunidade
científica repetidamente disparou o
alarme sobre a crise na biodiversidade e a emergência climática. Os
cientistas e a maioria dos governos concordam que o mundo está enfrentando uma crise ambiental sem precedentes, com
um grande número de espécies à beira da
extinção enquanto as temperaturas globais continuam aumentando”[2].
A mesma situação de
fracasso ocorreu com as Metas da Biodiversidade 2010, onde o Terceiro Panorama Global sobre
Biodiversidade (GBO-3)[3], elaborado pelo
Secretariado da CDB, reconheceu que as metas propostas para 2010 “não foram
globalmente alcançadas”. Reconheceu-se também que a perda de
biodiversidade continuou acentuada, com as agressões sobre os ecossistemas,
mantendo-se inalteradas ou aumentando de intensidade, sendo as causas as mesmas
de sempre, ou seja, representaram a continuidade de um modelo econômico em sobretransformação do meio ambiente, descolado
dos limites na natureza. O documento posterior, o Panorama Global 4 (2014)[4] traz outro quadro de
alerta, denotando que, até a metade desta última década, ao redor de 90% das metas parciais para 2020 não
estavam sendo atingidas.
Entre outros fenômenos preocupantes na atualidade,
além de a maior pandemia das últimas décadas, estamos sendo testemunhas da denominada
Sexta Extinção em Massa[5],
fenômeno que ocorre em períodos de dezenas ou centenas de milhões de anos. Porém,
desta vez, a extinção massiva é proveniente de atividades humanas. A Plataforma
Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos,
conhecida como IPBES, apresentou um
relatório, em 6 de maio de 2019[6], calculando
que cerca de 1 milhão de espécies
animais e vegetais estão ameaçadas de extinção, sendo que muitas devem desaparecer nas próximas
décadas. Um ano antes, outro relatório[7] da
Plataforma estimou que 75% da superfície
terrestre já estão degradados.
Cabe ressaltar que nosso país, até agora campeão em
diversidade biológica, obteve papel histórico
destacado na construção das propostas da CDB, tendo inclusive logrado a
presença de um brasileiro no cargo de secretário geral da Convenção, entre 2012
e 2016, o Dr. Bráulio Dias, responsável pela coordenação da Política Nacional
de Biodiversidade[8]. Infelizmente,
a partir de 2016, os governos do Brasil, legítimos ou não, afastaram-se dos
compromissos com o tema a fim de não “travar” atividades econômicas imediatistas
que encaram a natureza e a sociobiodiversidade como empecilhos aos negócios convencionais,
em grande parte degradadores. Convém destacar ainda que o Brasil também possui
uma Plataforma Brasileira da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES)[9],
que afirma que o biodiversidade não é problema, e sim solução, respondendo a
visões de setores empresariais e governos que tentam menosprezar esta temática
estratégica para o Brasil.
Atualmente, vários conselhos de participação social
na área ambiental, entre estes o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e
o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), foram diminuídos ou
extintos por meio de decretos do governo federal. O ataque é claro.
Recentemente, o Ministério do Meio
Ambiente (MMA) publicou ato administrativo desconsiderando a Lei da Mata
Atlântica, tendo sido prontamente contestado por instituições científicas,
entidades ambientalistas e pelo Ministério Público Federal[10].
Outros atos do MMA, junto com Ministério da Agricultura e Pecuária, vêm favorecendo garimpos e grilagens de terras de
povos indígenas na Amazônia, criando um clima de guerra contra indígenas, comunidades
tradicionais e a própria natureza como um todo. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) está
cada vez mais desestruturado, sofrendo a retirada de gestores de carreira, responsáveis por unidades de
conservação, substituídos por policiais militares ou por indicações
políticas do setor ruralista, a maioria sem nenhum conhecimento ou experiência na
temática socioambiental[11].
O IBAMA segue na mesma linha, engessado
na fiscalização, apesar de os níveis de desmatamento na Amazônia, por
exemplo, terem saltado em cerca 171%, em abril de 2020 em relação ao mesmo mês
de 2019[12].
A imagem e a credibilidade do Brasil na temática da Amazônia, perante o mundo,
é profundamente constrangedora, gerando protestos internacionais e alguns
boicotes no que toca à importação de produtos por parte de empresas
estrangeiras[13].
No Rio Grande do Sul, os ataques imediatistas ao meio ambiente, por parte do governo
estadual, fizeram enorme estrago no Código Estadual de Meio Ambiente e no
Código Florestal Estadual, em 2019, por meio de quase 500 alterações,
denunciadas pelo quadro técnico da FEPAM e SEMA, que representam retrocessos
profundos na legislação, a fim de criar um ambiente de negócios favorável,
dentro da guerra fiscal. Outro fato lamentável é a situação de dar prosseguimento à extinção da
Fundação Zoobotânica, iniciada em 2015, mesmo sendo a instituição que mais se dedicou à pesquisa em biodiversidade no
Estado e conservação de flora, fauna e ecossistemas naturais. O Museu de Ciências Naturais, o Jardim
Botânico e o Zoológico, apesar de serem reconhecidos na própria lei de extinção
das fundações, como patrimônio ambiental do RS, perderam status e maior
facilidade de angariar recursos externos em pesquisas e gestão da
biodiversidade, estando agora confinados em um pequeno e desconhecido departamento,
com técnicos de carreira com enorme bagagem de experiência, mas sem
perspectivas profissionais, inclusive ameaçados de demissão. Quem ganha com
isso?
Nas atividades econômicas do Estado, os riscos
aumentam, agora via dezenas de projetos de mineração, algumas a céu aberto em
processos de licenciamento ambiental, submetidos à grande pressão econômica e
governamental para o seu deferimento. Muitos desses empreendimentos correspondem
a impactos de grande monta, como no caso do carvão mineral[14],
com liberação de metais pesados e outros produtos poluentes, inclusive em áreas
prioritárias para a biodiversidade (Caçapava do Sul, Bagé, São José do Norte,
Lavras, entre outros municípios). É importante lembrar que o estado do Brasil onde
existe maior mineração, Minas Gerais[15],
a situação econômica e socioambiental é calamitosa, ou seja, a mineração não é,
e nunca foi, a redenção econômica de estados ou mesmo nações.
Na mesma linha de esgotamento, no que toca ao agronegócio, a perda socioeconômica e ambiental para o
Rio Grande do Sul é gigantesca, agora pela questão climática de uma das
maiores secas históricas da Região Sul. As mudanças climáticas extremas têm
duplas causas. Uma delas pelo desmatamento da Amazônia, e perda gradual dos
chamados “Rios Voadores”[16]
que correspondem a gigantesco volume de nuvens de chuvas, alimentadas pela
evapotranspiração da floresta amazônica, que escoa para as Regiões Sul e
Sudeste do Brasil. Outra, em decorrência do processo de aumento dos gases de
efeito estufa, tanto pelas queimadas incontroláveis sobre a vegetação nativa
das Regiões Norte e Centro Oeste do Brasil, como pelo aumento de atividades
econômicas com liberação crescente de gases derivados em parte de combustíveis
fósseis.
A crise climática
se acentua, seja pelo aumento de temperaturas médias da atmosfera, ou eventos
extremos, como de secas mais acentuadas e prolongadas ou chuvas mais
torrenciais em curtos espaços de tempo[17].
A seca, este ano, trouxe quebra extraordinária de produção de grãos, já que
dependemos de monoculturas de soja e milho. Resultado esperado, agora com prejuízos
de perde de safra no montante de 15,5 bilhões de reais para o Rio Grande do Sul[18].
Curiosamente, a
diminuição das chuvas aqui no Sul tem relação provável com o modelo predatório
de ocupação da Amazônia e Cerrado por parte de grandes agropecuaristas
sulinos e da região sudeste que foram para o norte e centro-oeste desmatar
latifúndios para criar bois e produzir grãos para exportação, o que poderíamos
chamar de “Efeito Bumerangue” para seus parentes de suas regiões de origem. Não
por acaso, e como agravante, a chamada Região do Arco de Desmatamento concentra
alguns dos maiores índices de assassinatos no Brasil[19]
[20].
Talvez, parte da retomada das
metas seja colocada dentro dos Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para 2030, lançados pela ONU, apesar
do desgaste da palavra desenvolvimento e destes mecanismos, mas até o momento
restam poucas opções de acordos internacionais. De qualquer forma, cabe a reflexão, ainda insuficiente perante à
sociedade, de uma nova cultura que retome outro rumo de uma verdadeira economia que depende de caminhar em
aliança obrigatória com a sociobiodiversidade e dentro dos limites da
manutenção dos processos ecológicos.
No Brasil, temos conquistas
importantes, em especial em relação a conservação e promoção do uso sustentável
da diversidade biológica de nossos biomas, itens garantidos pelo Art. 225 da Constituição
Federal. Mas, para isso, e para começar, deve existir respeito ao conhecimento científico e à garantia de direitos das
pequenas comunidades que estão, heroicamente e coletivamente, investindo em
agrobiodiversidade e microextrativismos sustentáveis (no Rio Grande do Sul, o
pinhão, juçara, butiá e outras frutas nativas e erva-mate), eliminando-se atividades
que estão exaurindo os recursos naturais e gerando mais e mais poluição.
|No Rio Grande do Sul, temos
milhares de plantas nativas, algumas delas morrendo em viveiros desativados[21], que
poderiam resgatar nossa qualidade de vida em sistemas e culturas diversificadas,
gerando turismo ligado à natureza, alimentos e derivados locais (ex. paçoca de
pinhão, picolé de butiá, polpa de juçara ou açaí da mata atlântica, geleia de jabuticaba,
erva mate carijo, entre outras). No Estado, temos levantamentos preliminares de
pelo menos 400 espécies nativas de plantas
alimentícias, negligenciadas pelas políticas de incentivo a monoculturas de
exportação, com base em plantas exóticas que demandam extraordinário consumo de
agroquímicos. A silvicultura, para produção de madeira e celulose, que se
espraia pelos campos nativos, junto com outros desertos verdes de soja, poderia
ser diferente, em áreas de campos degradados ou outros tipos de ambientes
antropizados, com produção de madeira, celulose e outros produtos, com base em
algumas dezenas das mais de 500 espécies de árvores autóctones que crescem no
Rio Grande do Sul. Não precisamos de
monoculturas de árvores para exportação de celulose ou cavacos de madeira,
nem da hegemonia do uso de espécies como eucalipto, pinus e acácia negra,
consideradas exóticas invasoras, item considerado como a segunda causa
de perda de biodiversidade mundial, atrás da perda por destruição de habitat.
Diante da atual
ausência de vontade política por parte dos nossos governos com respeito a
um assunto estratégico e preocupados com a perda acelerada de ecossistemas
naturais, espécies de flora, fauna e sociobiodiversidade, temos que seguir
cobrando que os poderes públicos da área ambiental e econômica, tanto em nível municipal,
estadual e federal. Este ano teremos eleições municipais, e estes assuntos têm
que vir à tona.
É
necessário que os governos, os políticos e demais agentes públicos e da
sociedade civil possam entrar em concertação de políticas públicas que
resgatem, pelo menos no que for possível, as Metas da Biodiversidade 2020. E para
tanto, a sociedade deve cobrar estes temas e um calendário de pauta comum. A
começar pelo estancamento dos retrocessos
legais atuais na área de biodiversidade e meio ambiente, exigindo-se, paralelamente,
o fortalecimento necessário dos órgãos
ambientais, o apoio às instituições de pesquisa, para diagnosticar a situação, e
o respeito a entidades, organização do movimento social que colaboram a construir as Metas e todos
os demais compromissos, legislações e políticas públicas que correspondem a conquistas
legais e iniciativas referentes à conservação e à promoção da biodiversidade
local e mundial.
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Paulo
Brack, professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências da
UFRGS, e faz parte, de forma voluntária, da coordenação do Instituto Gaúcho de
Estudos Ambientais - Ingá, entidade da Apedema-RS.