quarta-feira, 19 de abril de 2023

Terminada a Temporada de Caça aos Povos Indígenas, poderemos respirar aliviados?

O Brasil comemorou, antecipadamente, a partir das últimas eleições de 2022, a finalização de um ciclo de obscurantismo e perseguição implacável, não raro sanguinária, aos povos indígenas. Entretanto, ações remanescentes, quiçá em decréscimo, seguem repicando violência e morte nos primeiros anos de 2023[1], incluindo desmatamentos ainda elevados na Amazônia. Em janeiro e fevereiro, o sistema de detecção de desmatamento na Amazônia (DETER) constatou a segunda maior área desmatada nesses dois meses (489 km2[2], desde 2016, com recorde no ano de 2022 (692 km2)[3]. Obviamente, o novo governo não teve tempo de reorganizar a fiscalização destruída de parte do (des)governo anterior.


O crime contra povos indígenas e contra a floresta não se entrega e dobra a aposta? Terá sido finalizada a Temporada de Caça aos Povos Indígenas, por parte dos carteis da grilagem e do garimpo de ouro, dos políticos e capitães do agronecronegócio na Amazônia, das grandes empresas de exportação de minérios, carne e grãos? A iniciativa de parlamentares de direita no Congresso de instalarem uma CPI que criminalize ONGs que mais atuam na Amazônia em defesa dos povos indígenas e na defesa do bioma e da vinda de recursos para projetos socioambientais representa uma retaliação preventiva às iniciativas de defesa das causas indígenas e ambientais?

O que nos espera de parte da poderosa frente parlamentar ruralista, de rapina, de governos estaduais e demais setores que seguem apostando na perseguição aos direitos dos povos originários e comunidades tradicionais que querem viver com dignidade em seus territórios na Amazônia e nos demais biomas brasileiros?

Lembremos que parte da base do governo federal, inevitavelmente, tem partidos que possuem membros da linha dura contra as políticas indigenistas. Um campo minado e tanto para constantemente desativar...

Entretanto, o quadro é paradoxal, já que em janeiro de 2023, com a posse de Lula e a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, vimos a reinauguração de mais um governo federal de disputa, com alento de grande esperança de interrupção do anterior processo de extermínio de direitos dos povos originários e comunidades tradicionais. Já estão em curso a retomada de espaços de diálogo em Conselhos de participação da sociedade (Conama, Consea, etc.) e diálogo maior com setores governamentais e maiores espaços de (re)construção de políticas públicas socioambientais. Os recursos do Fundo Amazônia, do Fundo Nacional de Meio Ambiente reaparecem, depois de sabotados no governo Bolsonaro. A retomada do Ministério de Desenvolvimento Agrário é importante e o trabalho será hercúleo, a fim de disputar, se possível, com a incompatibilidade de um Ministério da Agricultura atrelado a um modelo convencional e insustentável.

Na questão indígena, a expulsão de invasores dos Territórios Indígenas e a demarcação congelada dessas áreas são ações emergenciais, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Entretanto, os povos indígenas e os movimentos de apoio à sua causa aguardam maior agilidade e medidas urgentes que sinalizem avanços significativos na garantia de seus direitos, investigações e punições a todos que, mesmo na Funai de Bolsonaro, cometeram crime de perseguição ou mesmo inação deliberada, o que causou centenas ou milhares de mortes de indígenas, como o caso dos Yanomami, que foram abandonados deliberadamente frente à ocupação de garimpeiros que invadiram e violavam seus territórios. Dentre outras, esperava-se a homologação imediata da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, a finalização da apreciação pelo STF sobre o desastroso Marco Legal que os ameaça, entre tantas demandas reprimidas, pelo menos nos últimos seis anos, antes de 2023.   

Agora, fica a pergunta que não quer calar: podemos respirar mais aliviados com os compromissos verbalizados por Lula e pelas primeiras iniciativas em prol de uma outra política indigenista, se nos próximos dias ou semanas será lançado um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no modelo anterior? Lula declarou, há alguns dias quando em sua visita ao governo da China, ao contrário de suas sábias palavras em prol da sociobiodiversidade, em sua posse em 1º de janeiro, que deseja retomar hidrelétricas e expansão da exportação de soja, entre outras atividades para fazer novamente “girar a economia”.

Muitos de nós, que choramos de emoção na mais bonita festa de posse de um presidente que representava a diversidade, agora gelamos diante da possibilidade, muito provável, do retorno de uma infraestrutura convencionalmente predatória e concentradora que passou por cima, tantas vezes, dos direitos dos povos indígenas, das comunidades tradicionais. No Brasil, nunca houve, nem nos governos da centro-esquerda, o cumprimento da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a consulta ampla e genuína, que respeite territórios e modos de vida de povos originários e comunidades tradicionais, deixando na mão de empreiteiras, inclusive com ficha corrida desde a Operação Bandeirantes (ditadura militar-empresarial) ou esquemas de cartel e fraudes em licitações, lidar com o conflito com aqueles mais vulneráveis que aprenderam a viver com as vocações locais e diversas de nossos biomas e ecorregiões.

A infraestrutura atual do Brasil, como havia alertado a Professora Dra. Raquel Rigotto (UFC), há mais de uma década em uma Reunião do FBOMS[4], se tornou uma “Barriga de Aluguel", de exportação de commodities, via grãos, minérios e outras matérias primas, além de água, e importando agrotóxicos e deixando um rastro de degradação socioambiental nos diferentes territórios da nossa sociobiodiversidade. Recentemente, a Professora Dra. Marijane Lisboa[5] (PUC-SP) alertou para um grande projeto de exploração das reservas de potássio na Amazônia para fazer girar o círculo vicioso das monoculturas de exportação, em modelo colonial que nunca deu certo, no que questionou como “Nova Boiada”.

A expansão da exportação de grãos e matérias primas associada a uma logística de “Veias Abertas da América Latina” faz sangrar ainda mais nosso país, situação semelhante aos demais países do Cone Sul.

Temos muito o que aprender e também reparação com relação aos Povos Indígenas que nos legaram tanta riqueza em sociobiodiversidade e culturas. Alimentos como a mandioca, a batata-doce, o milho-crioulo, o abacaxi, o pequi, os carás, as castanhas, as muitas centenas de frutas brasileiras, são legados preciosos destes povos que foram atropelados pela hegemonia das monoculturas, em desertos de grãos (moeda de acumulação) para a exportação à revelia de uma alimentação variada original. Também tem destaque a herança de medicamentos da floresta ou mesmo cosméticos e outros produtos, a maioria alvo de biopirataria e na mão de grandes transnacionais. A reparação deste roubo de conhecimentos e material genético, que gera bilhões de dólares para grandes empresas do primeiro mundo, nunca houve. Perdem-se também as línguas e a cultura digna de centenas de povos submetidas ao avanço da expansão capitalista gananciosa e implacável sobre seus territórios. Esta espoliação e degradação tem que cessar e, ao mesmo tempo, reaprendermos a lidar com nossos biomas a partir do conhecimento tradicional e das ecorregiões e vocações locais da Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal.

É necessário que se reflita e se dialogue com os povos originários, as comunidades locais, o trabalhadores sem-terra, os operários, as comunidades urbanas, a academia, e os demais setores que buscam um outro tipo de desenvolvimento ou bem viver, com base na raiz indígena diversa que pode nos ensinar sua forma coletiva de colaboração, seu desapego à acumulação, sua relação de respeito com a natureza e demais seres humanos.

Assim, para que os povos indígenas e a maioria da população possam respirar mais aliviados, é urgente que se viabilize outra forma de desenvolvimento que não o da espoliação convencional que concentra e nos subjuga à periferia exportadora de matérias primas. Este modelo de crescimento econômico é profundamente insustentável e requer questionamentos, menos imediatismo. Precisamos pensar e construir uma Ecossoberania, o que requer também agregar valor aos nossos produtos, em industrias de produtos essenciais, duradouros em comércios locais, via uma reconversão da matriz produtiva, superando-se o modelo de grandes investimentos concentrados em grandes obras.

Precisamos questionar a economia convencional “fim da picada” e debater e viabilizar um processo virtuoso de construção, com base nos territórios da sociobiodiversidade, o que também se reflete na melhoria da qualidade da vida diversa, em uma economia genuinamente sustentável, que respeite, resgate e promova a Dignidade e o Bem Viver tanto aos Povos Indígenas como a totalidade da população brasileira.

domingo, 9 de abril de 2023

A NOVA BOIADA

Marijane Lisboa (09-04-2023)*

Professora Dra. Marijane Lisboa

        Na sessão ambiente da Folha de São Paulo (6/04/2023), li ontem a manchete de que “Alckmin defende explorar reserva de potássio na Amazônia”. A licença para explorar potássio no Amazonas havia sido suspensa pela Justiça Federal do estado em setembro do ano passado, porque as terras onde se localiza a reserva são de uso dos indígenas Mura desde a época da Cabanagem, 1838. O que se lê em seguida na matéria, é de arrepiar os cabelos de qualquer ambientalista, defensor dos direitos humanos, antropólogo, sociólogo, advogado e economista que não tenha vendido sua alma “ao vil metal”.

Para Alckmin, por exemplo, explorar o potássio poderia ser “um dos maiores investimentos do país, deixando de importar 98% do potássio” usado na agricultura brasileira. Sem entrar na crítica de uma agricultura artificializada, que precisa de um fertilizante que está do outro lado do planeta quando é um dos países mais biodiversos do mundo, será que investir em mineração a essas alturas da catástrofe climática poderia ser considerado por qualquer economista de bom senso “um bom investimento?”. Ainda mais quando Alckmin pretende reforçar a sua causa argumentando que “o Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo”, esquecendo-se de que isto está intimamente relacionado com sermos também “o maior desmatador do mundo”? Alckmin foi nomeado por Lula presidente do Confert (Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição das Plantas) e deu estas declarações no dia em que se reuniu com a Suframa da Zona Franca de Manaus e logo em seguida com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, para tratar do Plano Nacional de Fertilizantes.

Da coleção de argumentos inconsistentes e incongruentes a favor da exploração de minério em terras indígenas, a reportagem, nos elenca alguns primores: Alckmin culpa a burocracia por levar “cinco anos para discutir se a competência é do Ibama e ou do Ipaam” , o órgão ambiental do governo do Pará. Não foi bem assim. Enquanto corria a boiada no governo Bolsonaro, o Instituto local usurpou as atribuições do IBAMA, porque licenciamento de mineração em terras indígenas é atribuição constitucional do órgão federal. Enquanto isso, a FUNAI protelava indefinidamente o processo demarcatório da terra indígena dos mura. A Justiça Federal do Amazonas, porém, atendendo a recurso do MPF do Amazonas, suspendeu o licenciamento que vinha correndo e o TRF1 confirmou o entendimento judicial. Nesse caso, em vez de reclamar da demora judicial, Alckmin, vice-presidente desse país e que jurou respeitar sua Constituição, deveria simplesmente acatar a decisão judicial.

Outro argumento bastante ousado de Alckmin, normalmente tão discreto durante a campanha eleitoral, foi dar como prova das vantagens da mineração, o alto PIB do município de Canaã dos Carajás, onde se encontra a maior mina de ferro do mundo. Além do fato de que há uma diferença sociologicamente enorme entre PIB alto e desenvolvimento social, Carajás tem aparecido nos jornais há anos, como a região em que povos indígenas têm suas terras invadidas, corre solta a grilagem de terras públicas, agricultores familiares são expulsos à bala – vide o massacre de Eldorado -, extensas regiões de castanhais e floresta são desmatados para que passe a estrada de ferro Carajás, águas contaminadas, trabalho escravo, prostituição de crianças, tráfico de drogas. Enfim se há um exemplo de como a mineração não compensa, é Carajás.

Aliás, a história econômica e a sociologia do desenvolvimento têm uma interpretação bem diferente do papel da exploração de minérios e recursos não renováveis nas economias dos países. Longe de trazer benefícios às coletividades onde se situe, a exploração de minérios, embora possa gerar durante algum tempo uma grande riqueza, não costuma reparti-la entre o conjunto das sociedades, constituindo o que se costuma chamar de uma “economia de enclave”, com graves impactos ambientais e sociais. A economia dessas regiões descreve uma curva simples, elevando-se no início da exploração, atingindo um ápice e depois deixando um cenário de terra arrasada e um IDH ainda mais deprimido do que antes do seu começo, quando se esgota o recurso. O ouro e a prata da América Espanhola e de Minas Gerais foram a causa da decadência do Império Espanhol e do primeiro país capitalista do mundo, Portugal, porque enquanto suas elites se locupletavam comprando bens de luxo na França, a Inglaterra, a Holanda e em seguida os Estados Unidos, se industrializavam.

Em apoio a Alckmin e Fávero, ainda na mesma matéria, vemos o governador do Estado do Amazonas, o bolsonarista de carteirinha Wilson Lima (União Brasil), se declarar a favor de “diversificar as atividades da Zona Franca” por meio da exploração do gás natural e do potássio. Como tentei explicar acima, mineração não diversifica, exclui e impede outras atividades econômica, social e ambientalmente mais adequadas. Bom lembrar também que Mariana e Brumadinho são resultado dessa “diversificação de atividades”, que há muito tempo infelicita as nossas (da Vale) Minas Gerais.

Finalmente, para completar essa nova "Frente Ampla pela Mineração em Terras Indígenas", (já, já vão anunciar a sua formação), vem Omar Aziz (PSD), que teve uma atuação tão digna na CPI da Covid, dizer que seria favorável a uma “lei sustentável” que permitisse a exploração desse ouro que escapa por contrabando para a Venezuela, de modo a “ajudar a população do interior”. Minerações sustentáveis, são por definição uma contradição em termos. Por mais que se cuide, inutilizam-se quilômetros de terras aráveis e abrem-se crateras que nunca mais se fecham, consomem-se e contaminam-se quantidades inimagináveis de água que faltarão para propósitos mais nobres, gasta-se muito petróleo, diesel e carvão na extração, transporte, metalurgia etc e...de vez em quando, quando o preço do metal desaba no mercado externo, reduz-se os gastos com segurança e terceiriza-se a mão de obra, e daí, acontecem Marianas, Brumadinhos e uma lista enorme de grandes catástrofes minerárias em grandes empresas no Brasil e no mundo.

Mas não podia faltar a essa Frente que está se formando, o PT, o partido majoritário do governo. O deputado estadual do Amazonas, (leio ainda na reportagem), Sinésio Campos, presidente do PT do Amazonas e, coincidência, sogro de Juliano Valente, diretor-presidente do Ipaam, declara com orgulho que defende a mineração em terras indígenas há mais de três décadas, ao contrário de Lula que só se meteu no assunto recentemente.

Em síntese, para qualquer um que entenda como funcionam as coisas em Brasília, a leitura da reportagem só pode ser a seguinte: o governo Lula já tomou posição em relação à mineração em terras indígenas e já autorizou seu vice-presidente e ministro da agricultura a se manifestarem publicamente a respeito. Fica o constrangimento para Marina Silva e Sonia Guajajara de abrirem divergência pública com o governo Lula ou se limitarem aquelas notas protocolares, como fizeram ambos ministérios, referindo-se às disposições legais sobre o tema e à necessidade de que se siga os procedimentos burocráticos.

Outros sinais alarmantes de como poderão ser as políticas ambientais e de proteção aos povos indígenas do Lula.0.3 já piscam no horizonte. Um submarino cheio de amianto foi afundado por decisão do Ministério da Marinha, da Defesa e da Advocacia da União contrariamente à posição do IBAMA. De outro lado, Lula não consegue refrear seu entusiasmo com a ideia de importar gás de folhelho da Argentina, apesar dos enormes estragos ambientais e prejuízos aos povos mapuche da Argentina que a exploração de Vaca Muerta ocasiona, já tendo falado disso duas vezes. Seu ministro de Minas e Energia é um entusiasmado com a exploração de petróleo na Foz do Amazonas e com a a retomada do programa nuclear brasileiro, e seria estranho supor que Lula o escolheu sem ter conhecimento do seu portfólio de investimentos preferidos. Não adianta, contudo, de um ponto de vista da física mais elementar, reduzir o desmatamento de uma lado e aumentar a produção de petróleo de outro lado. Matematicamente, um anula o outro. E, se o Brasil de fato leva a sério as mudanças climáticas, não faz sentido essa pressão sobre o Ibama para liberar a prospecção de petróleo na foz do Amazônia. Aliás, o argumento de que não se está requerendo licença ambiental para a exploração, mas apenas para a prospecção é cômico. Quer dizer, que é só curiosidade, mesmo que descubramos que há uma enorme reserva de petróleo a nossa espera? Ou aí começa uma nova temporada de investidas petroleiras?

Infelizmente já vimos esse filme nos governos Lula 1, 2 e Dilma 1 e já sabemos também que ele não tem happy end. Apesar de Marina Silva e Carlos Minc nos governos petistas passados, o balanço ambiental não foi nada positivo: liberação de soja e milho transgênicos, aumento do uso de agrotóxicos, retomada do programa nuclear brasileiro, um novo Código Florestal que mais pareceu licença para desmatar, construção de monstrengos como Belo Monte e as hidroelétricas do rio Madeira, fiscalização frouxa das atividades de mineração, junto com uma sensível redução do ritmo de Reforma Agrária e de demarcações de Terras Indígenas. Pelo visto, Lula insiste na mesma receita: nomeação de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente e Sônia Guajajara para o novo a Ministério dos Povos Indígenas, no desejo de que elas se resignem a um papel de “rainhas da Inglaterra”, somente para ingleses verem. Enquanto isso, na Praça dos Três Poderes, os membros do seu governo, bem como da oposição, que desse ponto de vista não tem divergências, tratam de encontrar jeitinhos para atender aos interesses do grande agronegócio, do extrativismo predatório e do lobby nuclear entre outros. Assim, enquanto o país discute taxas de juros, autonomia do Banco Central, massacres em escola e até o papel do Brasil como mediador da paz entre a Ucrânia e Rússia, uma nova boiada vai passando sem ser notada.

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* Marijane Vieira Lisboa, professora do Curso de Ciências Socioambientais e de História da PUC-SP, membra da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e uma das fundadoras do Movimento Ciência Cidadã (MCC), tendo sido Secretária de Qualidade Ambiental dos Assentamentos Humanos de 2003 a 2005 no Ministério do Meio Ambiente.

Assuntos Relacionados: https://brasil.mongabay.com/2020/01/mega-projeto-para-exploracao-de-potassio-no-amazonas-gera-controversias/

segunda-feira, 3 de abril de 2023

A DANÇA DOS SARANDIS

Sabes a origem do verbo sarandear (dançar)?
eu sarandeio
tu sarandeias
ele sarandeia
nós sarandeamos
vós sarandeais
eles sarandeiam

Tudo indica que vem de algumas plantas exclusivas de beira de rios, chamadas sarandis, que, com as enchentes, tremem seus galhos altamente flexíveis, num balanço que parece uma dança. Sarandi é um nome de origem tupi-guarani. Tem cidade, bairro e localidades com esse nome, principalmente no Pampa internacional (Rs, UY, AR). Então o verbo sarandear deve ter sido inventado por algum(a) amante das danças gaúchas, sendo o termo mais conhecido no Rio Grande do Sul.
 
Bom, agora vamos à Botânica. A espécie de sarandi mais conhecida é o sarandi-vermelho, Gymnanthes schottiana, da família das euforbiáceas (a mesma da mandioca, seringueira e mamona). É uma planta anfíbia, um arbusto alto, quase uma árvore, muito ramificado e que tolera enchentes e corredeiras. No Salto do Yucumã, no Parque Estadual do Turvo, se pendura nas corredeiras, sem problema. As folhas são pequenas e estreitas, para aguentar o atrito com a água, os ramos são altamente flexíveis, para aguentar o tranco, e as raízes são bem ramificadas, geralmente aderidas a frestas de rochas. O pequemo fruto, quando seco, explode, jogando três sementes na água, até encontrarem um remanso ou uma fresta e virem a germinar.

Gymnanthes schottiana, sarandi-vermelho, talvez o mais comum. Frutos e flores. Foto: Sérgio Augusto Bordignon

Salto do Yucumã, limite do Parque Estadual do Turvo, no rio Uruguai. Os sarandis-vermelhos ficam quase pendurados nas rochas em meio à correnteza. Esta paisagem e as matas ciliares sofrem ameaça do projeto da hidrelétrica de Panambi, mas sob nossa resistência na justiça federal. Era uma das hidrelétricas do PAC...


 Os outros sarandis são também arbustos, raramente árvores baixas, em geral com folhas estreitas, cuja base é aguda, em "V", justamente para diminuir o atrito com a água, ou seja, permitir maior hidrodinâmica em rios caudalosos. Existem os sarandis-branco (Phyllanthus sellowianus e Cephalanthus glabratus), o sarandi-amarelo (Terminalia australis), o sarandi-mata-ollho (Pouteria salicifolia), entre os mais conhecidos, pertencentes a outras famílias botânicas, mas que têm em comum convergências morfológicas, ecológicas e sobretudo evolutivas. 

Phyllanthus sellowianus, sarandi-branco, sendo estudado por apresentar substâncias bioativas com potencial medicinal.

Cephalanthus glabratus, sarandi-branco, ocorre mãos em remansos de rios e banhados. São plantas anfíbias, entre terra e água.

Pouteria salicifolia, sarandi-mata-ollho, árvore que tem frutos para fauna de peixes e outros animais.

Terminalia australis - sarandi-amarelo, uma árvores com frutos em forma de barquinhos, para flutuar e dispersar


Milhões de anos para se adaptar a este habitat altamente seletivo, que poucas plantas conseguem ocupar. Mas são habitats ameaçados...Estas e outras plantas de zonas ripárias (margem inundável), adaptadas aos pulsos de água de enchentes e secas, são denominadas ecologicamente de Reófitas, estando associadas à borda das matas ciliares, ribeirinhas, ripárias, em galeria, infelizmente a maioria destruída por atividades humanas (agricultura, hidrelétricas, mineração de areia, construção civil, aterros...).

Infelizmente, na construção de hidrelétricas atualmente é a principal causa do desaparecimento de sarandís e demais Reófitas, um assunto pouco conhecido da maioria, tanto na engenharia de quem projeta a construção, no licenciamento ambiental, na justiça que, ao fim e ao cabo, libera as obras contestadas judicialmente pelos ambientalistas e acadêmicos que lidam com o assunto.
 
É um tema de enorme lacuna de conhecimentos, inclusive nas pesquisas botânicas e ecológicas. Pra piorar a situação, em um estudo que fizemos e publicamos em 2015, constatamos que haviam 278 projetos de hidrelétricas previstos para a bacia do Rio Uruguai, afetando seus habitats. Imaginem o que sobrará é onde irão se empoleirar as garças, os socós, os martins-pescadores....E que sombra e que peixes terão os(as) pescadores(as) que vivem dessa atividade que alimenta suas famílias?


Rio Pelotas alagado pela UHE Barra Grande a partir de 2005. 6 mil hecyares de florestas foram perdidos nesta área.


Esperamos que os seres humanos, se racionais, respeitem a vida de outros seres que vivem nestes ecossistemas há milhares e milhões de anos e não façam "dançar" com os sarandis e toda a biota associada embaixo de colunas de água das hidrelétricas...

Outra coisa, é bom destacar que todas essas espécies de sarandis ocorrem nas margens do Guaíba, correspondendo a características de Rio, ou curso de água, o que representa na lei ambiental uma faixa de proteção, como Áreas de Preservação Permanente (Lei Federal n. 12.651/ 2012), de 500 m desde o Guaíba para dentro dos terrenos dos municípios que o margeiam, com destaque à Porto Alegre.
 
Pensem nisso e boa semana!