sábado, 4 de novembro de 2023

CARTA AO SENADOR PAULO R. PAIM SOBRE OS RISCOS DO PL 4653/2023 FRENTE À EMERGÊNCIA CLIMÁTICA (04/11/2023)



Porto Alegre, 04 de novembro de 2023.

Ao Exmo. Senador Paulo Renato Paim

Prezado Senhor:

            Nós, entidades e movimentos socioambientais vimos parabenizá-lo pelo lançamento de seu livro “Brasil, O Grito Calado – Reflexões na Pandemia” na 69º Feira do Livro de Porto Alegre, obra que reafirma seu papel de senador com histórico e compromisso com a defesa das causas sociais e ecológicas do nosso Estado.

Na oportunidade, também, aproveitamos para lhe entregar um documento denominado ALERTA URGENTE SOBRE OS DANOS SOCIOAMBIENTAIS DA RETOMADA DO USO DO CARVÃO MINERAL DO RS (em anexo), elaborado em 2021 pela Assembleia Permanente de Entidades Ambientalistas em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (APEDEMA-RS), que resgata, com dados científicos importantíssimos, nossa preocupação socioambiental em relação ao tema, e neste momento ao PL no 4.653/2023, de iniciativa dos Senadores do Rio Grande do Sul.

Consideramos que este PL, a despeito de ser denominado como “Transição Energética Justa”, é profundamente contraditório, pois prevê o prolongamento de subsídios ao uso do carvão mineral, como fonte energética e outros usos até 2040, bem como o desenvolvimento de Indústrias Carboquímicas e de Gaseificação do Carvão Mineral, desconsiderando sua condição de combustível fóssil e a poluição, inclusive decorrente da inevitável expansão da mineração do carvão, pelo menos até 2040.

Destacamos nossas profundas discordâncias já que o PL 4.653/2023:  

1) não reconhece o compromisso do governo brasileiro, e seu destaque de liderança nos acordos internacionais (COPs do Clima), no sentido de fortalecer a redução paulatina do uso do carvão mineral e demais combustíveis fósseis, e tenta resgatar e copiar os fundamentos da inconstitucional Lei Federal no 14.299/2022, sob judice no STF, do período do governo Bolsonaro, que esticou até 2040 o subsídio às térmicas a carvão em Santa Catarina;  

2) viola a Lei no 13.594/2010, que estabelece a Política Gaúcha de Mudanças Climáticas e a necessidade de ser elaborado um Decreto de Emergência Climática no Rio Grande do Sul, após os eventos desastrosos, ligados ao fenômeno El Niño, que atingiram as populações do Vale do rio Taquari e Litoral Norte;

3) não reconhece que 2023 foi o ano mais quente da história (temperatura média de 17º C da atmosfera da Terra em 2023), com chuvas torrenciais inéditas no Sul e secas extraordinárias nunca vistas na Amazônia, em parte agravadas pelo fenômeno El Niño e a elevação nunca vista de Gases de Efeito Estufa (GEE), em especial o CO2 (que atingiu seu valor recorde de 420 ppm), em decorrência do contínuo crescimento da queima dos combustíveis fósseis, em especial o carvão mineral, que deveria ser urgentemente reduzido;

4) não reconhece que os subsídios ao carvão mineral são pagos pela população, em sua conta de luz, e em subsídios anuais atualmente entre 750 milhões e 1,1 bilhão de reais, podendo alcançar neste período de 15 anos, a partir de 2025, em pelo menos 15 bilhões de reais, o que corresponde a um valor muito maior do que hoje se utiliza para investir em mudança de matriz energética renovável;

5) não reconhece a elevada poluição decorrente da implantação de um inédito Complexo Carboquímico e de Indústrias de Gaseificação do Carvão no Rio Grande do Sul, que demandariam mais mineração e mais prejuízos ambientais e à saúde dos trabalhadores e moradores do entorno das minas. Lembramos que existe um extraordinário comprometimento da saúde das crianças de Candiota, onde (segundo levantamento do CEVS- RS) quase 54% de internações hospitalares estiveram associadas a doenças respiratórias, o que representa mais de 6 (seis) vezes o valor encontrado em atendimentos a crianças em municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre;

6) incrementa o uso do carvão mineral, a partir do fortalecimento explícito da Lei Estadual n. 15.047/2017, referente à Política Estadual do Carvão Mineral, em especial no Pampa, e que prevê a maior exploração das jazidas carboníferas, altamente poluentes em um recurso de baixa qualidade, já que o carvão gaúcho tem elevada quantidade de cinzas (ao redor de 54%), elevado teor de enxofre (que causa acidificação dos cursos dágua, chuvas ácidas e compromete a saúde humana e ambiental), além de diversos metais pesados tóxicos (chumbo, mercúrio, cromo, cádmio, etc.);

7) não dá destaque ou aponta de forma objetiva a valorização do potencial das vocações socioeconômicas do Pampa, longe dos combustíveis fósseis, como a pecuária familiar, seus produtos derivados, a apicultura, a olivicultura, o turismo rural e ecológico, crescentes, ou mesmo o estabelecimento de uma potencial indústria de equipamentos ligados às fontes de energias renováveis necessárias e urgentes (eólica, solar, bioenergia diversificada).+’

Com base nos argumentos acima, vimos solicitar um debate mais amplo com a sociedade gaúcha e brasileira em relação ao Projeto de Lei do senado n. 4.653/2023, e que se construa urgentemente um caminho democrático que busque, de forma participativa, uma Transição Energética Justa e Verdadeira, que aponte para a valorização dos modos de vida diversos (sociobiodiversidade) da região do Pampa e suas vocações econômicas locais e com apoios dos governos, das instituições de pesquisa e articulação com a sociedade, fortalecendo o papel protagonista necessário do governo brasileiro no cenário mundial do combate às mudanças climáticas.

No aguardo para um encontro com as entidades signatárias deste documento

Cordialmente

- Assembleia Permanente de Entidades em Defesa de Meio Ambiente – RS

- Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior – (ANDES), Sec.UFRGS

- Acesso Cidadania e Direitos Humanos

- Grupo Viveiros Comunitários (GVC- UFRGS)

- Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá

- Instituto Preservar

- Movimento Laudato Si (RS)

- Pastoral da Ecologia Integral do Brasil - RS

- Preserva Zona Sul

- Movimento SerAção 


domingo, 10 de setembro de 2023

REFLEXÕES FRENTE AO DESASTRE CLIMÁTICO-AMBIENTAL DO RIO TAQUARI-ANTAS

Paulo Brack* e Eduardo Luís Ruppenthal** (14/09/2023)

O cenário preliminar 

O cenário de destruição ocasionada pelas chuvas extraordinárias e enchentes do rio Taquari-Antas, ao que tudo indica, não tem precedentes nem mesmo nos registros históricos de chuvas, se tornando uma calamidade de grandes proporções ainda a serem calculadas. A enchente catastrófica, em suas dimensões social, ambiental, econômica e histórica, não pode ser expressa somente em números, apesar de serem impressionantes como umas das maiores já vividas no Rio Grande do Sul. Pelo menos 47 mortos, além de desaparecidos, milhares de desalojados, destruição total ou parcial de milhares de casas e prédios urbanos, comunidades inteiras e municípios devastados, danos psicológicos, perdas de animais de criação e de plantios de subsistência, prejuízos econômicos e perdas ambientais significativas. A retomada da vida de milhares de famílias será muito difícil, após a perda de parentes, de lares e de bens materiais e imateriais. 

Levará ainda muito tempo para se conhecer, em maior profundidade, as causas, as consequências e o cenário futuro de aumento da frequência de eventos extremos verificados e previstos para se agravar no mundo inteiro. Os comunicados da Organização Meteorológica Mundial (OMM) já apontavam que 2023 seria o ano com maior temperatura já registrada na atmosfera do planeta, o que se comprovou a partir de junho deste ano. 

Figura 1. Foto aérea do GZH, mostrando a a enchente, a destruição e a água barrenta na área urbana de Muçum. 

Do ponto de vista climático, as previsões já traziam potenciais chuvas históricas, ressaltando-se os alertas da plataforma Metsul Meteorologia, em 31 de agosto e 1o de setembro de 2023, com os títulos respectivos: “Setembro começa com chuva extrema, onda de tempestades e enchentes” e “ALERTA: Chuva virá com volumes excepcionais de até 300 mm a 500 mm. Volumes excepcionalmente altos são previstos pela MetSul Meteorologia para o Sul do Brasil nestes primeiros dez dias do mês [de setembro]”

Também cabe lembrar que em meados de junho de 2023 ocorreu outro ciclone extratropical e uma chuva excepcional devastadora no vale do rio Maquiné e no rio dos Sinos, no município de Caraá, tendo chovido no Litoral Norte do Rio Grande do Sul quase 300 mm em 48 horas. Houve a morte de 16 pessoas, somando-se o Litoral Norte e o Vale do Rio dos Sinos.

Infelizmente, o comunicado prévio da plataforma de divulgação meteorológica MetSul foi desconsiderado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul.  O governador Eduardo Leite, em entrevista a um programa da TV GloboNews, em 6 de setembro, alegou que os modelos matemáticos de previsão do tempo não indicavam o elevado volume de chuva que atingiu o estado no evento daquela semana. Como resposta, a MetSul divulgou uma nota pública contestando a declaração do governador, demonstrando que o alerta realmente tinha sido dado.

Quanto à atuação do governo do Estado do Rio Grande do Sul, à semelhança de outros governos estaduais diante de eventos climáticos extremos, o que geralmente se nota, de um lado, é “surpresa” e uma certa dose de cinismo e, não raro, oportunismo em uma narrativa de retirar sua responsabilidade e ao mesmo tempo imputar a culpa em fenômenos naturais. A grande imprensa também reverbera tratar-se de um fenômeno "natural", desconsiderando que o agravamento de tais eventos está associado também às alterações ambientais provocadas por atividades humanas. O atual excesso de  chuvas, temporais, ciclones, secas e ondas de calor são ainda considerados, por governos, como fenômenos “inesperados”, pois, pelo menos na prática, impera o negacionismo da emergência climática-ambiental. 

Além do negacionismo por parte de agentes públicos, vários setores econômicos rezam pela mesma cartilha a fim de afastar parte de sua responsabilidade ou inação diante das mudanças climáticas e à destruição ambiental decorrentes de atividades de origem antrópica que agravam essas calamidades. Do outro lado, quem mais paga o custo da tragédia é a população mais vulnerável do ponto de vista social, tanto na perda de dezenas de vidas, de quem mora mais precariamente na beira dos rios, mas também nas perdas materiais e nas condições de sua sobrevivência, na agricultura familiar ou nos pequenos e médios comércios. Qual é o custo de uma vida? Como restabelecer as condições mínimas dignas de vida aos atingidos que sobreviveram a estas calamidades? 

As mudanças climáticas negligenciadas

No atual contexto de crise climática, além dos alertas da OMM, os seis relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) vêm trazendo um conjunto de informações incontestáveis. Principalmente, a partir do 4º relatório, consagra-se cientificamente que os eventos climáticos extremos são predominantemente antropogênicos e cada vez mais intensos e frequentes. No caso da Região Sul do Brasil, em especial o Rio Grande do Sul, além das secas severas dos últimos verões, associadas ao fenômeno La Niña, agora ganha destaque o fenômeno inverso, o El Niño.

O El Niño, previsto para 2023 e que representa a maior quantidade de chuvas no sul do Brasil, está ligado ao aquecimento, em temperaturas maiores do que a média na superfície do Oceano Pacífico, em decorrência do aumento de gases de efeito estufa, influenciando a formação de nuvens e outros processos climáticos. É importante lembrar que no caso do gás carbônico (CO2) seus valores subiram, desde meados do século XVIII, de 270 ppm (partes por milhão) para 421 ppm, na atualidade. 

Vale destacar que as enchentes fazem parte da dinâmica de um rio. Entretanto, o uso mais intenso ou a alteração do solo da bacia, como um todo, especialmente suas margens, várzeas inundáveis e as matas ciliares, a intensidade e as consequências desses eventos se torna de maiores dimensões. A intensidade das cheias, em várias partes do mundo, está ultrapassando os registros históricos. O ciclo da água na natureza está sendo rompido por atividades humanas, o que também é comprovado cientificamente. Ademais, a vegetação das bacias tem papel neste ciclo e atua no amortecimento parcial dos picos de cheias. No Brasil, esta proteção está amparada pela Lei n. 12.651/2012 (Código da Vegetação Nativa, ou “Código Florestal” Brasileiro ), em especial no que toca às Áreas de Preservação Permanente (APP) que, se não preservadas, além de ambientes de beira de rios ficarem mais vulneráveis a impactos socioambientais, se tornam áreas de risco quando ocupadas pela construção de moradias, prédios, etc. 

A vegetação e seu efeito de maior amortecimento às chuvas e às cheias

A vegetação natural (campos, banhados, florestas, etc.) tem papel fundamental na maior função regulatória sobre o ciclo da água, exercendo maior capacidade de estabilização ou efeito tampão em relação às chuvas volumosas e às cheias. Quando as chuvas caem sobre a estrutura da vegetação (folhas, caules, raízes), a água infiltra no solo, facilitada pela matéria orgânica de sua superfície e a trama de raízes que atuam, em seu conjunto, quase como um efeito esponja em épocas de maiores quantidades de água pluvial. Solos cobertos por vegetação, portanto, permitem que a água da chuva penetre no solo, infiltre e alimente nascentes e lençóis freáticos e não escoe superficialmente de forma rápida para os arroios e rios (Figura 2)



Figura 2. Ciclo da água e a vegetação, de forma simplificada, onde a infiltração da água da chuva é máxima e o escoamento é mínimo 

A vegetação conserva a maior umidade no solo, evitando a erosão, auxiliando a manutenção da permeabilidade e a fertilidade do solo, suavizando o escoamento superficial rápido da água, em solos mais secos e compactados pela agricultura. A vegetação contribui, assim, para a maior regulação do ciclo hidrológico, além de dar abrigo à fauna, mantendo o patrimônio da biodiversidade e suas funções ecológicas e econômicas, proporcionando paisagens diversas que valorizam inclusive o turismo ligado à natureza.

Nas cabeceiras da bacia que inicia-se nos Campos de Cima da Serra, a partir de pelo menos 1000 m de altitude, a maioria dos cursos d’água é drenada ao rio Tainhas e, na sequência, ao rio das Antas com confluência do rio Carreiro que formam rio Taquari. Este é afluente do rio Jacuí, que escoa no rio-lago Guaíba. Seus principais afluentes pela margem esquerda são os rios Camisas, Tainhas e Lajeado Grande e São Marcos, e, pela margem direita, os rios Quebra-Dentes, da Prata, Carreiro, Guaporé, Forqueta e Taquari-Mirim. Nos altos do Planalto das Araucárias, tanto em relevos suaves como nas encostas mais íngremes, a vegetação, que era predominantemente composta por campos, turfeiras, banhados e florestas, com importante proteção e garantia de recarga de nascentes, está se transformando em lavouras, gerando erosão do solo. 

Se essa vegetação da região (figuras 4 e 5) seguir sendo retirada, progressivamente, o escoamento das águas da chuva continuará com riscos de picos bruscos, como foi na primeira semana de setembro deste ano, no vale do rio Taquari-Antas, aumentando as chances de cheias mais violentas decorrentes das chuvas torrenciais. O uso cada vez maior de máquinas pesadas de plantios de monoculturas, em especial de soja em campos até então virgens. Grandes superfícies impermeáveis ou sem vegetação podem incrementar a erosão do solo e das margens dos rios, levando ao maior assoreamento e a possibilidade de enchentes de maiores proporções

Além disso, sem vegetação, que atuaria como filtro para reter parte da lama e resíduos das cheias, as águas dos rios ficam mais barrentas após sua elevação, situação verificada nesta grande enchente do rio Taquari-Antas. A maior perda de vegetação nativa pela agricultura (Figuras 6,7,8 e 9) está conduzindo a maior instabilidade hídrica, menor qualidade das águas e maior vulnerabilidade ambiental. Ou seja, centenas de milhares de hectares de campos nativos de pastagem, com  vocação para a pecuária, transformados em agricultura e silvicultura nas cabeceiras do maior rio da região, com mais erosão, assoreamento e escoamento de água que antes infiltrava no solo e alimentava as nascentes. 

Figuras 4 e 5. Vegetação original das cabeceiras da bacia do rio Taquari-Antas, nos Campos de Cima da Serra


Figuras 6, 7, 8 e 9. Substituição da vegetação de campos nativos virgens nas cabeceiras da bacia do rio Taquari-Antas, Campos de Cima da Serra, por monoculturas 


Destruição das matas ciliares e avanço urbano em APPs e a consequente impermeabilização do solo 

Segundo a Lei 12.651/2012, em seu Art. 6º, consideram-se como Áreas de Preservação Permanente (APPs), entre outras, aquelas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a  (Inciso I) “conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha”. Entretanto, o que se constata é, em grande parte, o contrário, onde as matas ciliares estão sendo destruídas, e não recuperadas como a lei prevê e obriga, 


Figura 10. Margens erodidas do rio Taquari e rio barroso, em decorrência dos sedimentos em grande parte pelo mau uso do solo.  

Hidrelétricas 

Na bacia se destacam três Usinas Hidrelétricas (UHE) e dezenas de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH, com até 30MW). As Hidrelétricas são UHE Castro Alves (130MW), UHE Monte Claro (130 MW), UHE 14 de Julho (100MW). É importante destacar que a FEPAM já realizou, há cerca de 20 anos, uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da bacia do rio Taquari-Antas, recomendando que ⅓ de um conjunto de mais de 50 hidrelétricas não fosse construído e que outro tanto passasse por rígidos estudos de impacto ambiental. 

No caso atual da tragédia do rio Taquari-Antas, o Ministério Público Federal solicitou informações de providências à Defesa Civil e também cópias de todas as comunicações eventualmente recebidas de parte da Companhia Energética Rio das Antas (Ceran), responsável por hidrelétricas no rio, sobre o monitoramento do aumento do nível das águas do rio em decorrência das chuvas e, eventualmente, abertura de comportas, situação que vem sendo imputada à empresa por parte de moradores atingidos à jusante dos empreendimentos hidrelétricos. A empresa negou apresentar comportas com abertura em fluxos mais elevados dos rios.

Por outro lado, um documento da CERAN, no caso da UHE Castro Alves, denominado “PACUERA - Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno a Das Águas” (ABG, 2013) admite a presença de comportas e modificação eventual de vazão da mesma para facilitar esportes, em especial rafting (página 43): “ ‘comporta do rafting’ pela qual é possível regular o fluxo de água e liberar mais volume de água para a prática do esporte”. Ou seja, não se pode afirmar que as hidrelétricas ou pequenas centrais hidrelétricas da bacia tenham alguma influência no problema das cheias. É um assunto delicado, ainda mais em um momento desses. Mas, evidentemente, as hidrelétricas, em outras regiões, influneciam desde a retirada da mata ciliar até algumas mudanças na vazão dos rios, principalmente pela abertura de comportas, alteração na sedimentação do rio, etc.,criando, pelo menos em outros rios, picos abruptos de elevação dos rios à jusante das barragens após a abertura das comportas. De qualquer maneira, é papel do órgão ambiental, em especial a FEPAM, monitorar a gestão do fluxo da água dos rios por parte de UHEs e PCHs.  

Em trabalho coordenado pela ONG WWF (2012) foram identificados treze fatores de risco  na bacia do rio Paraguai, entre eles, os três primeiros, nesta ordem, são: centrais hidroeléctricas, urbanização e agricultura

Na Amazônia, o ecólogo Philip Fearnside (2015)do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, afirma que na Hidrelétrica de Balbina (PA), na estação de chuvas, a grande quantidade de chuvas que pudesse passar por cima do limite do barramento, causaria danos, o que “obrigou a ELETRONORTE a abrir as comportas completamente. Em consequência disto, o nível do rio entre Balbina e Cachoeira Morena subiu vários metros acima do seu máximo normal, assim inundando as casas e muitas das roças dos residentes ao longo do rio, assim como os poços que a ELETRONORTE tinha cavado para eles”. Há informações desencontradas quanto à abertura de comportas durante as cheias do rio Taquari por parte de hidrelétricas, o que deve ser esclarecido pelos órgãos responsáveis.

Sugestões quanto ao que pode e deve ser feito

  1. Trazer o tema das mudanças climáticas e seus eventos extremos, com base em instituições de referência internacional e nacional para o centro do debate, localmente, regionalmente e mundialmente, no âmbito governamental, legislativos, conselhos, ministério público e demais setores que tratam de políticas públicas socioambientais. A questão climática tem relação estreita com o aumento dos GEE, o que remete, obrigatoriamente, a que se discuta a matriz energética atual e, de forma inescapável, o modelo de economia hegemônico e energívoro que emite elevadas quantidades de gases de efeito estufa, diminuindo-se o uso de combustíveis fósseis, mas revendo-se a concentração de megaparques de geração elétrica, que vêm gerando impactos ambientais importantes. Em resumo, rever a pegada ecológica e dabater com a sociedade, principalmente questionando-se os setores que concentram capital e encabeçam as maiores fontes de liberação de GEE ou mineração predatória em minerais raros, em especial o lítio, associados às fontes de geração mais renováveis, no que chamam de transição energética, porém ainda presa ao paradigma do crescimento econômico e concentração ilimitados. 

  2. Diagnosticar os maiores riscos sobre as bacias hidrográficas, por parte dos órgãos de meio ambiente e instituições de pesquisa, juntamente com as prefeituras locais. 

  3. Fortalecer os Comitês de Bacia, em uma recomposição democrática, longe da influência, muitas vezes dominante, de representação de setores econômicos. Os conselhos devem ser compostos, predominantemente, por membros da sociedade, superando-se os atuais conflitos de interesse de representantes vinculados a setores empresariais ou governamentais, recorrentemente com visão econômica imediatistas. Também devem receber apoio e recursos financeiros da cobrança pelo outorga ou uso da água por parte de grandes usuários.

  4. Fiscalizar e proteger as cabeceiras do Rio Taquari-Antas e nas demais regiões de nescentes dos rios do Estado. Planejar e buscar programas e projetos para reflorestamento das matas ciliares conforme legislação vigente sobre as APPs, sem o retrocesso da inconstitucional da Lei n. 14.285/2021. Há que se controlar e coibir as licenças ambientais para atividades que, inclusive, estão a comprometer a qualidade, a quantidade e a vazão de água na bacia. Arquivar o PL 364/2019 do deputado Alceu Moreira, inconstitucional, que retira a proteção dos Campos de Altitude da Lei 11.428/2006, Lei da Mata Atlântica.

  5. Proteger as margens dos rios, em especial as matas ciliares da bacia do rio Taquari-Antas.. Há que se lembrar que o Rio Taquari-Antas constitui-se em um dos principais Núcleos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, enquadrado como Patrimônio da UNESCO e Patrimônio Nacional neste bioma reconhecido pelo Artigo 225 da Constituição Federal, sendo necessária, portanto, a revisão de todas as atividades que comprometam a vegetação nativa e a biodiversidade que, além de Patrimônio Internacional, desempenha papel fundamental nas funções ecológicas e econômicas (serviços ecossistêmicos) da bacia.

  6. Maior preparo para o enfrentamento dos eventos climáticos extremos. Onde há negacionismo, não se reconhece a gravidade e não há ações, neste caso de adaptação, precaução e prevenção. O efeito El Niño era esperado, houve alerta e não houve preparo de parte de governos para engajamento da população em tomada de medidas prévias e emergenciais, incluindo o deslocamento de pessoas das áreas potencialmente mais atingidas para áreas mais seguras e rotas de fugas. É necessário o treinamento de pessoas para a prevenção, que envolva todas as comunidades, e ações ligadas às medidas emergenciais. A implantação de um sistema de alerta por parte do governo do Estado, defesa civil e de governos dos municípios sujeitos a estas tragédias e preparo da população frente a novos eventos como o que ocorreu no vale do rio Taquari.  Avisos prévios, com instalação de sirenes  e comunicação pública com carros de som, nos municípios risco de eventos climáticos extremos, neste caso, em toda a Bacia Hidrográfica do Rio Taquari. 

  7. Revisão conjunta dos empreendimentos hidrelétricos na bacia. Dezenas de barragens, de médias e pequenas centrais hidrelétricas na bacia, alteram a vazão e devem ter controle para se evitar a abertura de comportas. Há que se averiguar a mudança na vazão do rio Taquari-Antas, em decorrência destes empreendimentos, em seu conjunto ou isoladamente, situação que deve ser avaliada por instituições de pesquisa independentes e pelo Ministério Público, e controlada por demais instituições públicas, em especial do executivo estadual e municipais. Há que se fazer modelagens de controle conjunto das comportas de barragens, evitando-se o efeito dominó da abertura conjunta e um pulso d'água agravante da situação. Tudo isso remete a que se estude a situação dos rios, frente a tantas hidrelétricas na bacia, reconhecendo-se um limite para tais, antes da emissão de novas licenças ambientais para novos empreendimentos que afetem matas ciliares e alterem a vazão dos rios da bacia. A integração de instituições de pesquisa, governos e outros setores é fundamental e urgente para se antecipar às tragédias climático-ambientais como as que ocorreram. Cabe se respeitar a Avaliação Ambiental Integrada de toda a bacia hidrográfica, prevista em 2001. A segurança das barragens deve ser avaliada, frente a novas cheias, pois do contrário as tragédias podem ser muito mais elevadas do que as que ocorreram em setembro de 2023 nos municípios da porção mais baixa do rio Taquari.

  8. Recuperar as condições naturais, vegetação ciliar e manutenção da sinuosidade dos rios e demais cursos de água (Baptista & Cardoso, 2013) com reflorestamentos genuínos, com diagnóstico e identificação prévia das áreas com maior demanda de recuperação da Mata Ciliar e demais tipos vegetacionais, com planejamentos de programas e projetos. Trazer à necessidade de MORATÓRIA À CONVERSÃO DOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA/ CAMPOS DE ALTITUDE (protegidos pela Lei 11.438/2006, compatíveis com a pecuária em campos nativos e turismo rural e ecológico).

* Biólogo, Dr, professor titular do Departamento de Botânica Instituto de Biociências da UFRGS. 

** Biólogo, professor da rede pública estadual, especialista em Meio Ambiente e Biodiversidade (UERGS), mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR-UFRGS)


Bibliografias indicadas:

Baptista, M.; Cardoso, A. Rios e cidades: uma longa e sinuosa história. Revista da UFMG, v. 20, n.2, p. 124-153, jul./dez. 2013. Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20-2/05-rios-e-cidades-marcio-baptista-adriana-cardoso.pdf 

Fearnside, P. Hidrelétricas na Amazônia: impactos ambientais e sociais na tomada de decisões sobre grandes obras. Vol.1. Manaus: Editora do INPA, 2015.  Disponível em: https://repositorio.inpa.gov.br/bitstream/1/4684/1/hidreletricas_na_Amazonia_v1.pdf .

Neiff, J. J. Bosques Fluviales de la Cuenca Del Paraná. In Arturi, M.F.; Frangi J.L. y Goya, J.F. Ecologia y manejo de los bosques de Argentina. s/d. Disponível em: https://cecoal.conicet.gov.ar/wp-content/uploads/sites/20/2016/01/Neiff-2004.-Bosques-Fluviales.pdf 

Wohl, Ellen et al. River Restoration. Water Resources Research. 41. W10301. 12 p.  Disponível em: http://bledsoe.engr.uga.edu/wp-content/uploads/2017/11/Wohl-et-al-2005-WRR-CUAHSI.pdf 

WWF. Análisis de riesgo ecológico de la cuenca del río Paraguay: Argentina, Bolivia, Brasil y Paraguay. 2012. Disponível em: https://wwfbr.awsassets.panda.org/downloads/26jan12_sumario_executivo_espanhol_1.pdf 


sábado, 2 de setembro de 2023

Neste 3/09, Dia do(a) Biólogo(a), a gente lembra de profissionais perseguidas por suas posições em defesa da vida

Trazemos aqui o caso de três biólogas, entre tantas(os) cientistas e técnicos de diferentes áreas, que foram perseguidos, e também sofreram psicologicamente, por suas posições em defesa do meio ambiente. 

Rachel Carson, bióloga marinha e escritora estadunidense (1907- 1964), lançou em 1962 seu livro “Primavera Silenciosa”, obra emblemática para o movimento ambientalista. A autora se empenhou em desvendar, com bases científicas, o problema para a saúde humana e para a natureza de parte dos agrotóxicos, chamados também de "pesticidas", ou biocidas sintéticos, utilizados na agricultura. Sua batalha em esclarecer os riscos por trás da utilização de venenos, como o DDT, também incluía a denúncia de lobby por parte das principais grandes empresas produtoras de agrotóxicos que tentavam negar os problemas. 
Sua luta lhe causou críticas e ataques infundados de parte de agentes de empresas de agrotóxicos que a chamavam de pseudocientista, buscando deslegitimar a validade de suas pesquisas e de sua denúncia, para seguirem comercializando sem restrição estes produtos. 
Diferentes porta-vozes de várias corporações e organizações afiliadas à indústria química de biocidas questionaram a motivação e os argumentos de Carson, atacando a autora de forma pessoal. A empresa Velsicol Chemical Corporation, uma grande fabricante de DDT, ameaçou processar a editora do livro Primavera Silenciosa. 
Entre os negacionistas das evidências cada vez maiores levantadas por Carson, decorrentes dos efeitos prejudiciais dos venenos agrícolas associados à “Revolução Verde”, destacam-se críticas maldosas do cientista (?) estadunidense William Darby, financiado pela Fundação Rockefeller. Rachel Carson sofreu muito com este bombardeio de críticas injustas e, adoecida por câncer, faleceu abril de 1964.
https://tapioca.ird.fr/primavera-silenciosa-conheca-o-legado-de-rachel-carson/ 

Um caminho óbvio para se enfraquecer uma causa é desqualificar a pessoa que a advoga e defende. Portanto, os mestres do invencionismo têm estado ocupados: dizem que eu sou uma “amante de pássaros”, “de gatos”, “de peixes”, uma “sacerdotisa da natureza”, uma “devota do culto místico”, envolvida com leis do universo, das quais meus críticos consideram–se imunes. Um outro mecanismo muito conhecido e usado é dar falsas interpretações as minhas posições e passar a atacar coisas que eu nunca disse. Eu não quero continuar batendo no óbvio, porque qualquer um que tenha realmente lido o livro sabe que eu não advogo o abandono completo do controle químico. Minha crítica a este método não é porque ele controla insetos nocivos, mas, sim, porque ele cria perigosos efeitos paralelos ao fazê–lo. Eu critico os atuais métodos, porque eles estão fundamentados num patamar de pensamento científico muito baixo. Nós realmente somos capazes de um grau maior de sofisticação para solução deste problema”. Dezembro, 1962. Rachel Carson.  (https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/19284/1/Moura.pdf) .

Infelizmente, passadas seis décadas, a situação do uso desses venenos segue se agravando, com o aumento de milhões de casos de contaminações, inclusive por meio de biocidas agrícolas detectados no leite materno ou mesmo no sangue de ursos polares, causando doenças e mortes, seguidas pelo crescimento exponencial do uso de agrotóxicos, em um mercado mundial que ultrapassa 60 bilhões de dólares/ano. No Brasil, o comércio atinge mais de 13 bilhões de dólares/ano, e o crescimento de seu uso foi de 395% entre 2000 e 2021, segundo o Ibama (2023). 

Débora Fernandes Calheiros, bióloga, pesquisadora e técnica da Embrapa Pantanal, ministrou palestras e elaborou e divulgou documentos alertando para atividades que impactavam o Pantanal. Entretanto, foi perseguida em 2012 por sua chefia após divulgar estudos que demonstravam grandes impactos ambientais da possibilidade da construção de 135 hidrelétricas nas cabeceiras do bioma. A bióloga penou por estar cumprindo sua função essencial de divulgação de seus trabalhos científicos que destacavam os riscos sobre os ecossistemas hídricos do Pantanal. Teve que recorrer à justiça e também teve apoio de centenas de pesquisadores brasileiros em um abaixo assinado em sua defesa. 
Bióloga e pesquisadora da Embrapa, Débora Calheiros, defensora incansável do bioma Pantanal. Fonte: https://www.viomundo.com.br/bichoestapegando/biologa-debora-calheiros-em-carta-aberta-aos-ministros-do-stf-votem-pela-salvacao-do-bioma-pantanal.html.

A bióloga segue defendendo o Pantanal, há mais de três décadas, apesar da pressão dos empreendimentos hidrelétricos e do agronegócio que vêm comprometendo o bioma. Ela encaminhou carta ao STF, em 2023, solicitando que os rios tivessem limitação de empreendimento, inclusive porque destacou que o bioma Pantanal não é apenas Patrimônio Nacional, pela Constituição Federal, mas também Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela UNESCO (2000). Ela iniciou sua carta ao STF com as seguintes palavras: “Peço desculpas pela ousadia, sou apenas uma bióloga que estuda há mais de 30 anos os processos ecológicos, no caso, hidroecológicos que regem o maior sistema de áreas úmidas do mundo. Refiro-me ao bioma Pantanal, que, pela Constituição do Brasil, é Patrimônio Nacional”. 

Mônica Lopes Ferreira, bióloga, imunologista e pesquisadora científica concursada do Instituto Butantan, por 30 anos, foi punida por suspensão pela instituição, por seis meses, por divulgar em 2019 resultado de pesquisas com diferentes doses de agrotóxicos em peixes-zebra (zebrafish) usados em laboratório.
Foto Plataforma Zebrafish 

Seus resultados demonstraram que doses que eram consideradas “seguras” para seres humanos, pelos órgãos de controle, causaram mortalidade nos embriões de peixes. E, surpreendentemente, quando a dose era diluída até mil vezes em água, os embriões ainda apresentaram anomalias. Além disso,  revelou que todos agrotóxicos, em qualquer quantidade usada, causavam alterações nos peixes e isso, potencialmente, poderia trazer graves danos à saúde humana. Os agrotóxicos causaram mortes e malformação de fetos em embriões dos peixes, até mesmo em dosagens equivalentes a uma trigésima parte do recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). As substâncias submetidas aos testes foram o herbicida glifosato e os inseticidas malationa, abamectina, (também acaricida e nematicida), acefato, alfacipermetrina, bendiocarb, carbofurano, diazinon, etofenprox e piriproxifem
Por serem usados em grande escala no país, os resultados dos experimentos causaram reação explosiva nos setores do agronegócio e tal efeito respingou em sua chefia
Em 2019, o diretor da Anvisa, Renato Porto e a então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, chegaram a dar entrevistas contestando o experimento da pesquisadora Mônica. A bióloga recebeu um comunicado, em agosto de 2019, proibindo-a de submeter projetos de pesquisa para aprovação durante seis meses. Entretanto, conseguiu uma liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo que suspendeu a punição.
Monica segue empenhando-se em esclarecer os riscos dos agrotóxicos e o mito de que existe limite seguro no uso destes produtos. 
https://www.youtube.com/watch?v=LOzRXm7wn2U 

A PERSEGUIÇÃO E/OU ASSÉDIO MORAL NO TRABAHO SÃO CRIMES E DEVEM SER DENUNCIADOS.