segunda-feira, 22 de julho de 2024

As enchentes e a devastação na Bacia do Guaíba, em maio de 2024, vão ser esquecidas e naturalizadas?

Paulo Brack (22 de julho de 2024)

No Brasil, o tema ambiental praticamente só vem às manchetes a partir das calamidades, e depois de um tempo tudo se naturaliza ou se esquece. As tragédias do rompimento das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais, que trouxeram juntas quase 300 perdas de vidas humanas e a destruição do rio Doce e outros rios da região, são resultantes do descaso privado e público, infelizmente até hoje sem a punição dos responsáveis.

No Rio Grande do Sul, fica a pergunta: haverá esquecimento e naturalização progressiva quanto à dimensão, as causas e as responsabilidades pela inação prévia à calamidade climática-ambiental sem precedentes que viveu o Estado, no mês de maio de 2024, na região da bacia do Guaíba e Laguna dos Patos?

É fato que as chuvas torrenciais tiveram valores de 400 a 500% acima dos valores médios para o mês de maio, atingindo as bacias dos rios Pardo, Jacuí, Taquari, Caí, Sinos, Gravataí, além do rio Guaíba e a Lagoa dos Patos. Porém, as mudanças climáticas e seus efeitos socioambientais têm suas causas ligadas à economia dos negócios de sempre (business as usual). Realmente, ocorreu um fenômeno extraordinário, já que a pluviosidade para o mês de maio de 2024, no caso de Porto Alegre - cuja média era de 112,8 mm - alcançou 539,9 mm, sendo a maior da história para todo o mês. A outra maior enchente de maio de 1941, na Capital, teve volume de 405,5 mm.

Além das enchentes, houve violenta dinâmica na bacia dos rios, com desmoronamentos também sem precedentes, nas encostas da região da serra. Foram pelo menos 182 pessoas que perderam suas vidas, permanecendo mais de duas dezenas desaparecidas, 806 feridas, cerca de 600 mil desalojadas. Foram mais de 400 municípios atingidos, com mais de 2 milhões de pessoas afetadas (Figura 1). Famílias sofreram a perda de seus parentes e da destruição total ou parcial de dezenas de milhares de residências. Algumas cidades quase desapareceram totalmente ou parcialmente, pela violência das águas ou mesmo em decorrência das enchentes extraordinárias, como Arroio do Meio, Cruzeiro do Sul, Sobradinho, Encantado, Muçum, Lajeado, Estrela, Eldorado do Sul, Canoas, entre outras dezenas, principalmente na bacia do Guaíba (Figura 2).

Os altos volumes pluviométricos incidiram também em uma superfície de milhões de hectares de solos cada vez mais desestruturados pela agricultura que avança nos campos de altitude, a partir da retirada de vegetação nativa substituída por usos antrópicos inadequados (agricultura industrial com agroquímicos) nas cabeceiras e nas áreas de inundação das margens dos cursos de água. Impermeabilização do solo, escoamento superficial das águas da chuva, que não infiltaram no solo pela compactação dos tratores nas lavouras, erosão decorrente da agricultura, antes não existente na região das cabeceiras, e consequente  assoreamento dos arroios e rios, foram ingredientes que contribuíram para a rápida subida da água, em uma dimensão muito superior a outro evento, ocorrido em setembro de 2023, que devastou algumas cidades concentradas na bacia do rio Taquari-Antas.

Figura 1. Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini. Publicada no Sul21

Figura 2. Bacia do rio Guaíba (IBGE).

O recente evento climático e ambiental incorpora múltiplos fatores, além dos aspectos anteriores, os problemas sociais, políticos associados ao despreparo governamental e de políticas públicas fragilizadas pelo neoliberalismo e seu “Estado Mínimo”. No cenário atual, não se prevê planejamentos para habitações, construções e infraestrutura urbana decente e vida digna para a maioria das populações afetadas nas cidades, no campo e no meio ambiente. Esta situação dramática ainda levará muito tempo para ser dimensionada e o trauma às populações atingidas provavelmente durará meses ou muitos anos para ser, minimamente, superado, caso isso seja possível.

Alguns elementos relacionados ao cenário dramático da questão climática

No que se refere ao tema da emergência climática que afeta o Planeta, consolida-se como um dos maiores problemas dos tempos atuais e futuros, cada vez mais distante de soluções. No ano de 2023, foram registradas as temperaturas mais elevadas na atmosfera, associadas aos gases de efeito estufa (GEE), que não param de crescer. O gás carbônico (CO2) já atinge cerca de 420 ppm (partes por milhão) na atmosfera, em níveis não observados pelo menos nos últimos 800 mil anos (Figura 3). Segundo informe da Organização Meteorológica Mundial (OMM, 2023), os últimos oito anos foram os mais quentes já registrados. Recente trabalho sobre o clima mundial, realizado por uma equipe coordenada pelo cientista estadunidense William J. Ripple (2023), demonstra mudanças rápidas não só no clima da atmosfera, mas na elevação recorde na temperatura dos oceanos, além do rápido degelo de calotas polares e de geleiras das montanhas.


Figura 3. Crescimento de CO2 nos últimos 800 mil anos. Fonte: Global Monitoring Laboratory.
https://gml.noaa.gov/ccgg/trends/history.html

Quanto ao clima da América do Sul nesta região, o fenômeno El Niño, mesmo que natural, é agravado pelas mudanças climáticas de origem antrópica ou econômica, atuando no aumento das chuvas no RS e parte do Sul do Brasil. O El Niño corresponde, em parte, ao aquecimento do Oceano Pacífico, trazendo excesso de chuvas e umidade para o Rio Grande do Sul. O Oceano Atlântico também está mais quente, trazendo muitas chuvas para o norte da Amazônia e muita umidade que, em parte, é escoada para o sul e o sudoeste do Brasil. Esta grande quantidade de umidade trazida para o sul do Brasil concentrou chuvas na metade norte do Rio Grande do Sul, ou seja, acima do paralelo 30º de latitude sul. As frentes frias de origem austral, comuns nesta época do ano, em geral avançariam para o norte e levariam estas nuvens de chuva para outras regiões. Entretanto, parte das chuvas associadas à frente fria sofreu um bloqueio atmosférico, ou um centro de alta pressão, com muito calor e baixa umidade relativa do ar, na parte do centro do Brasil. A magnitude das chuvas represadas no RS, concentradas em alguns municípios, com valores pluviométricos em um mês, entre 500 mm e 800 mm, gerou devastação em vales, várzeas, planícies de inundação de rios e em encostas mais íngremes.

A economia segue igual, apesar do aumento dos eventos climáticos extremos

A instabilidade climática é uma realidade cada vez mais presente. Há 2 anos, vivíamos no RS uma seca histórica, não registrada nos últimos 70 anos. O alerta para secas e enxurradas fortíssimas já estava sendo anunciado, principalmente em relatório histórico de 2007 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês). O descontrole e o agravamento do cenário climático são situações de difícil ou quase impossível estancamento ou solução em curto ou médio prazos. Existe um conjunto grande de processos que mantém a inércia do sistema climático que causa a liberação crescente de gigantesca quantidade de GEE.

As causas atuais antropogênicas estão associadas a um modelo econômico energívoro. Isso significa que o sistema de produção capitalista provoca um alto consumo energético, como uma máquina devoradora e insaciável que faz girar uma economia que não tolera limites, o que por si só é insustentável, já que incorpora exploração de recursos sem limites e desperdícios como forma de gerar lucros a oligopólios econômicos que não querem perder tempo em pensar no futuro. Trata-se de um problema de difícil solução, já que cerca de 80% da energia utilizada no mundo provêm de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural)(Figura 4). Os fatores climáticos antropogênicos configuram não só o que vem sendo chamado de Antropoceno, mas fortalecem um cenário de aprofundamento do tema do metabolismo socioeconômico, caracterizado por alguns autores como Capitaloceno.

Figura 4. Matriz energética mundial em 2021. Fonte International Energy Agency (IEA), e ilustração da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

Ou seja, o modelo do crescimento econômico capitalista é, por si só, indomável e não admite redução de consumo de energia, ainda mais tendo em vista a recente privatização das fontes de energia de abastecimento à população (fontes hídricas, térmicas, eólicas, etc.). O setor privado das concessionárias não admite a redução ou mesmo um uso racional que gere estabilização dos níveis de consumo, e sempre vai cobrar do governo que as políticas econômicas não afetem seus negócios em concessões de 30 anos ou mais. Assim, não é razoável e justo imputar a responsabilidade aos seres humanos (=“antropo”), de forma genérica, no que se considera Antropoceno, já que existem culturas humanas diversas (modos de vida não apegados à acumulação capitalista), em especial aos povos originários, e nem todas contribuem ao problema da liberação de GEE, à degradação e à poluição do meio ambiente.

Se os povos indígenas e as comunidades tradicionais não têm responsabilidade neste processo associado a um modelo de economia do esgotamento, é profundamente equivocado imputar a responsabilidade ao “homem”, de forma genérica, como se o ser humano fosse uma entidade uniforme e monolítica, além de naturalmente poluidor. Na realidade, segundo a organização Oxfam, 1% da população, dos chamados países desenvolvidos, emite a mesma quantidade de poluição que 5 bilhões de pessoas, e as emissões de CO2 de 1% mais rico da população mundial alcançou em 2019 cerca de 16% das emissões totais do planeta.

Segundo o Professor Dr. Luca Ferrari, da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), para se buscar uma solução verdadeira, “o decrescimento é inevitável”, ou seja, não se pode seguir crescendo porque já não há tanta energia disponível e porque os danos que o sistema econômico está fazendo à Ecosfera são cada vez maiores. Entretanto, segundo ele, “todo o sistema [econômico] que temos está adicto ao crescimento”.

Em meio aos conflitos bélicos, que fazem girar parte de uma economia dissociada da busca da paz e do equilíbrio ecológico, em nível mundial ganha mais ênfase a indústria das armas, principalmente pelas grandes potências, com gastos de um trilhão de dólares anuais. Desta forma, vários acordos internacionais do clima vêm fracassando, trazendo à tona o real desinteresse no enfrentamento do problema, como bem assinala o professor Luiz Marques, da UNICAMP, autor do livro Capitalismo e Colapso Ambiental. Assim, não se prevê, na prática, que os grandes atores que comandam economia atual, mesmo nos diferentes acordos das conferências entre as partes (COP) do clima, possam promover muitas mudanças no contexto de agravamento das tragédias climáticas. Neste sentido, tudo leva a crer que estamos diante de um futuro incerto e ameaçador.

E já que a diminuição do crescimento do consumo de energia, necessária para reduzir a liberação de GEE, não faz parte das pautas da maior parte dos governos e do mercado global, ganham espaço privilegiado as falsas soluções de mercado (hidrogênio verde, carros elétricos, monoculturas arbóreas, entre outras), correspondendo, muito mais, a jogadas especulativas e que não enfrentam as verdadeiras causas do problema. O falso enfrentamento do problema climático cria imaginários de forma fantasiosa, para diminuir as consequências, sem atingir as causas relacionadas ao aumento contínuo do consumo, mesmo que supérfluo, com a continuidade atual da elevada liberação dos GEE. Basta ver a naturalização do esbanjamento do consumo desnecessário de energia, no avanço recente da instalação indiscriminada de painéis luminosos, de propagandas de consumo dispensável e poluição visual, em Porto Alegre, a recente capital da calamidade climática mundial.

Figuras 5 e 6. Se espalham centenas de totens luminosos, refletindo o esbanjamento de energia elétrica e o consumo, que promovem a crescente liberação de Gases de Efeito Estufa, justamente em Porto Alegre, a capital da calamidade climática do mundo, em maio de 2024.

As políticas públicas de proteção socioambiental seguem na contramão da calamidade

Estes eventos climáticos extremos, em intensidade e frequência, estão sendo alertados por cientistas, de maneira incontestável, há mais de duas décadas. A confirmação desses fenômenos estamos sentindo na pele. Mas, infelizmente, outras enchentes e enxurradas que ocorreram em junho, setembro e novembro de 2023, com as principais consequências no vale do rio Taquari, no início de setembro de 2023, não parece ter surtido efeito da prevenção necessária para novos e atuais cenários de calamidades. No final de agosto de 2023, institutos meteorológicos renomados alertavam alguns dias antes dos primeiros dias de setembro o que ocorreria no que toca às chuvas históricas nunca vistas, com valores de pluviosidade entre 300 e 500 mm em poucos dias. O governo do Estado do Rio Grande do Sul não tomou providências naquele momento, semelhante ao que fez agora, entre o final de abril e início de junho deste ano.

Vários elementos associados a uma maior vulnerabilidade socioambiental teriam atuado de forma sinérgica: despreparo de parte de governos municipais e governo estadual para preparar a população para ações emergenciais, a partir dos alertas dos institutos meteorológicos; negacionismo climático; ausência de planejamento da localização de cidades e de habitações humanas rurais; despreparo e improviso dos administradores públicos em manter a defesa das pessoas e da infraestrutura urbana frente às enchentes, situação que ficou evidente em Porto Alegre, pelas falhas múltiplas no sistema de defesa da cidade (diques, comportas e bombas), concebido nas décadas de 1960 e 1970. O desmonte ou flexibilização do Código do Meio Ambiente no Rio Grande do Sul, em mais de 400 itens refletidos na Lei Estadual n. 15434/2020, trouxe maior facilitação da retirada de vegetação protetiva e ao mau uso e ocupação do solo, agravando ainda mais o problema das cheias, como apontaram os professores do Instituto de Biociências da UFRGS.

Como resposta, os políticos gaúchos dos partidos das bases do governo do Estado e da prefeitura de Porto Alegre seguem negacionistas climáticos, trabalhando no prosseguimento do enfraquecimento dos órgãos públicos aos quais incumbe maior papel no preparo do enfrentamento de tais situações.

Em vez de se fortalecer os órgãos de meio ambiente e da infraestrutura pública de proteção de Estado, nas áreas de meio ambiente, aos serviços públicos e às habitações mais resilientes e/ou distantes das áreas de risco, os governos Estadual e da capital do Rio Grande do Sul privilegiam a contratação de consultorias privadas, apostando ainda mais na flexibilização e no enfraquecimento deliberado da legislação e do controle público na área ambiental. Alguns setores econômicos aproveitam a situação da calamidade para congelar multas ambientais e criar um estado de exceção que favoreça ainda mais licenças aos negócios ecologicamente insustentáveis e de maior risco. Exemplo disso foram as licenças expedidas de forma urgente pela FEPAM para a permissão de localização de grandes depósitos de milhares de toneladas de entulhos e resíduos resultantes da destruição de casas, automóveis e equipamentos urbanos, provocada pelas enchentes, sem regras claras de controle, monitoramento ambiental, eventual reaproveitamento parcial e desativação.

Os comitês de bacias hidrográficas poderiam ter sido fortalecidos, já que surgiram no Rio Grande do Sul para colaborar nas políticas públicas, onde a sociedade deveria ter seu espaço de intervenção garantido. As populações poderiam ter sido alertadas e mais preparadas para a ocorrência destes eventos. Em outubro de 2023, no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), o InGá (por meio do presente autor deste artigo de opinião) e as demais entidades ambientalistas se pronunciaram pela criação de uma força-tarefa no Estado para encarar o problema das cheias, principalmente no que se refere às Áreas de Preservação Permanente na bacia do Rio Taquari-Antas, que estavam sendo alvo de flexibilização, inclusive nos municípios. Nada disso ocorreu até o novo evento mais devastador de maio de 2024. E, como resultado posterior, o governo cria, em junho deste ano, um Conselho de Reconstrução RS que, entre mais de 170 representantes de diversos setores, esqueceu de convidar qualquer entidade ambientalista

A bacia do Guaíba, reunindo caracteres de rio e lago, é incontestavelmente um curso de água, o que requer legislação ambiental de proteção de sua APP de 500m

A grande região da bacia do Guaíba é formada pela junção dos rios Jacuí, Sinos, Caí e Gravataí, recebendo o deságue de outras sub-bacias que se estendem pelo centro-norte e nordeste do Rio Grande do Sul, em uma área de 84.763 km², ou seja, cerca de 30% da superfície do estado.

Lembramos que o Guaíba segue sendo classificado como rio, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ademais, seu caráter fluvial é reforçado por trabalhos de pesquisa de campo recentes (Nicolodi et al. 2010; Scottá et al. 2019; Andrade et al. 2017), em especial em seu canal central norte-sul, desde a desembocadura de seus tributários até seu limite Sul com a Lagoa (ou Laguna) dos Patos. No Guaíba, prevalecem os escoamentos que acompanham os gradientes do terreno submerso, numa direção noroeste para sudeste, com velocidades médias registradas entre 20 a 30 cm por segundo, durante a maior parte do ano. A vazão é tão expressiva, em volumes e velocidades, que o tempo de residência das suas águas é de cerca de 10 dias, em média, entre a Usina do Gasômetro e a Ponta de Itapuã.

Este olhar de atualizações científicas amplia a necessidade também de se adotar o princípio da precaução para a proteção das margens do Guaíba, em especial de suas Áreas de Preservação Permanente (APP), previstas no Artigo 4º da Lei Federal n. 12.651/2012. A condição incontestável de curso de água determina a obrigatoriedade da manutenção dos 500 metros de faixa de APP em todas as suas margens, excluindo-se as áreas urbanas consolidadas, ou seja, as áreas urbanizadas historicamente. Assim, adotada a compreensão de que o Guaíba é um curso de água, demonstrado por pesquisas mais atuais, teríamos maior proteção da orla contra a erosão, deixando crescer as matas ciliares e demais tipos de vegetação ripária que fornecem o chamado efeito esponja e maior resiliência às enchentes amplificadas pelas ondas. Em Porto Alegre, o movimento da correnteza e das ondas devastaram parte da orla do Guaíba, nos bairros Belém Novo, Lami, Ipanema, entre outros, destruindo também trechos com equipamentos urbanos recentes, entre o Parque Marinha do Brasil e o Gasômetro, concedidos ou previstos para concessões e inclusão de estruturas urbanas.

No que se refere ao governo do Estado, ao contrário das providências necessárias, as políticas estaduais na área ambiental seguem o rumo imediatista dos setores econômicos e políticos negacionistas, não só ignorando as medidas necessárias, em curto, médio e longo prazos, o que se denota na aposta na diminuição da proteção das APPs, como ocorreu recentemente com a Lei Estadual n.16.111/2024, que permite intervir na beira dos cursos de água e banhados, com o artificio de utilidade pública e interesse social. Esta lei, de origem das bancadas obscurantistas alinhadas ao governo do estado, apoiada pelas federações que promovem a economia depredadora, permite obras e barragens para irrigação de monoculturas que, em sua maioria, servem para a exportação de soja e outros grãos, e não para produção de alimentos para a população, já que o Brasil está importando feijão e arroz, em decorrência da diminuição de suas áreas de plantio nos últimos cinquenta anos.

A expansão de atividades agrícolas nos campos de altitude, nas cabeceiras da região da bacia hidrográfica do Guaíba

A lama, que se mostrou presente na água dos rios tributários e no próprio Guaíba, corresponde, em grande parte, à erosão em decorrência do mau uso da terra. As espessas camadas de barro e lama carreadas pelos rios em áreas de várzeas atingiram construções, principalmente ao longo das margens dos cursos de água, indicando que o problema não é só excesso de água. A ausência de planejamento urbano é uma característica típica do Brasil e o imediatismo quanto à má ocupação do solo é outra marca das administrações neoliberais. A flexibilização da legislação permite destruir ainda mais a vegetação nativa, em especial as florestas de beira de rios, impermeabilizando o solo com máquinas pesadas e permitindo a erosão do agronegócio, lavrando solos virgens de campos de altitude, principalmente pelos excepcionais plantios de soja no Planalto das Araucárias, destruindo a vegetação das cabeceiras dos rios e demais cursos de água da bacia.

No caso da bacia do rio Taquari-Antas, o assoreamento e as demais condições favoráveis ao escoamento (e menos infiltração de água no solo) trouxeram uma rápida e histórica elevação das águas, em níveis não registrados pelo menos nos últimos 150 anos, alcançando a cota de 32 m, incrementando uma dinâmica, mais uma vez, devastadora, ainda maior do que aquela do início de setembro de 2023, com enorme caudal de água e lama, escoando pelo Guaíba e depois na Laguna dos Patos.

 

Figura 7. A vegetação nativa dos Campos de Cima da Serra está desaparecendo, e com ela a pecuária (vocação destes campos) dá lugar a monoculturas de soja e grandes plantios de hortaliças.


Figura 8. A recente e rápida substituição da vegetação nativa milenar dos campos do Planalto das Araucárias por lavouras convencionais quimicodependentes compromete os mananciais hídricos da bacia do Guaiba e provoca erosão e assoreamento de rios.

Figura 9. Máquina agrícola pulverizadora de agrotóxicos, além de compactar o solo e torná-lo mais impermeável, contamina com biocidas agrícolas sintéticos. 

Flexibilizar ainda mais a legislação dos Campos de Altitude e as Áreas de Preservação Permanente?

Como agravante, as bancadas ruralistas do atraso querem destruir a Lei da Mata Atlântica que protege os campos de Altitude, acima de 700m, com vocação para pastagem nativa, para permitir monoculturas de soja (Figuras 7 e 8), batatinha, hortaliças, eucalipto, pinus que atingem justamente as cabeceiras da bacia do rio Guaíba.

Outro agravante é a proposta de lei que está para ser aprovada no Congresso, por iniciativa da bancada ruralista, que retira os Campos de Altitude (portanto nas cabeceiras dos rios, em especial justamente na bacia do rio Taquari-Antas) da proteção da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). Ou seja, a proposta, se passar - e tudo indica que sim - vai provocar ainda mais destruição do solo, mais erosão e assoreamento, via maior escoamento de água, ao contrário da infiltração da água da chuva no solo coberto por vegetação nativa.

Em resumo, as bancadas da economia imediatista e ecocida, com o lobby fortíssimo de setores econômicos do círculo vicioso das monoculturas de exportação, com apoio dos principais meios de anticomunicação e desinformação, estão aproveitando o momento da calamidade no RS, para passar as boiadas. Não por acaso, nesta quarta-feira, 8 de maio, foi aprovada uma lei na Câmara de Deputados que promove, de forma anticonstitucional, a retirada da silvicultura (monoculturas arbóreas de árvores de eucalipto e outras árvores exóticas) da obrigatoriedade de licenciamento ambiental. Na pauta do Congresso, estão outras propostas de afrouxamento da legislação ambiental.

As Barragens

Para aumentar o tema complexo (climático-ambiental) das enchentes, o assunto das barragens de hidrelétricas no rio Taquari-Antas deve ser tratado de forma mais aprofundada, já que houve risco real, admitido pelo governo do Estado, de rompimento das mesmas, o que poderia trazer uma tragédia ainda maior. As empresas. A Hidrelétrica 14 de Julho sofreu rompimento parcial e do risco de outros colapsos de barragens e potenciais tragédias. Os estudos independentes, do ponto de vista técnico-científico, devem ser realizados inclusive evitando-se fatos como o que ocorreu com o rompimento parcial da barragem. É importante lembrar também que as barragens criam desníveis tanto na linha do barramento como em tuneis, gerando quedas de fluxo acelerado de água que potencializam turbulência e aumento da velocidade da água a jusante de cada uma delas. Como consequência, as matas ciliares abaixo das represas de hidrelétricas do rio Taquari-Antas quase desaparecem quanto mais próximas da linha de barramento. E além do problema de destruir as matas ciliares, ocorre a destruição da biodiversidade das margens dos rios, da piracema, da pesca e das moradias e atividades dos ribeirinhos, entre outros problemas ignorados.

https://www.youtube.com/watch?v=5fuL1553NcY&t=18s&ab_channel=UOL