Iana Scopel Van Nouhuys,
Marília E. B. Kelen, Débora Balzan da Silva, Lia C. K. Kehl, Paulo Brack.
Qualquer pessoa que observar com atenção
algum canteiro, jardim ou horta, seja no campo ou na cidade, perceberá a
riqueza de plantas que nascem sozinhas, nativas ou espontâneas que habitam cada
cantinho de terra. Algumas delas sofrem caracterização pejorativa e
preconceituosa, sendo classificadas de “inços” ou “plantas daninhas”, pois
muitas vezes aparecem em locais onde não foram cultivadas. Entretanto, muitas
dessas plantas são comestíveis e apresentam índices nutricionais iguais ou
superiores às hortaliças, raízes e frutos que estamos habituadas a comer.
O termo PANC foi criado
em 2007 pelo Biólogo e Professor Valdely Ferreira Kinupp e refere-se a todas as
plantas que possuem uma ou mais partes comestíveis, sendo elas espontâneas ou
cultivadas, nativas ou exóticas que não estão incluídas em nosso cardápio
cotidiano. Aqui no Rio Grande do Sul, destacamos hortaliças (folhas, raízes,
tubérculos, caules, flores), as frutas, as sementes, as castanhas ou nozes,
que, segundo Kinupp (2007), tiveram 312 espécies alimentícias nativas
encontradas na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), o que representa
3,5% da superfície do Estado.
Existem no Brasil, pelo menos, 3 mil espécies
de plantas alimentícias com ocorrência conhecida no Brasil. Estima-se que em
nosso País, pelo menos 10% da flora nativa (4 a 5 mil espécies de plantas)
sejam alimentícias.
Breve contexto da produção de alimentos hoje
Nossa alimentação é baseada em uma pequeníssima
parcela de alimentos. Mais de 50% das calorias que consumimos no mundo provêm
de no máximo quatro espécies de plantas. Cerca de 90% dos alimentos consumidos
vêm de somente 20 tipos de plantas. Por outro lado, temos uma oferta potencial
de alimentos de pelo menos 30 mil plantas diferentes. A FAO, órgão da ONU,
envolvido com a questão da alimentação mundial, estima que 75% das variedades
convencionais de plantas alimentícias já foram perdidas.
No que toca às hortaliças (verduras, legumes,
etc.), sabe-se que a oferta destes alimentos é também pobre. E a maioria das
hortaliças comercializadas provém de poucas empresas de sementes, e também não
corresponde a plantas nativas. A seleção ou "melhoramento" que sofreram
as deixou ainda mais suscetíveis às alterações ambientais, situação que hoje é cada vez mais comum. Seu modo de cultivo,
muitas vezes em gigante escala, desenhado para suprir enormes demandas
induzidas pelo mercado, com a pobreza alimentar em que vivemos, é feito por
meio de monoculturas:
um modelo simplificado e disfuncional de trato com os
ecossistemas.
Transformamos partes de biomas inteiros, sendo
grande parte da Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia, Pampa e até partes do
Pantanal e Caatinga, no sentido (?)de que as diferentes fitofisionomias se adaptem a uma só planta: a soja. Esta cultura
já alcança 30 milhões de hectares no Brasil (2013-2014), e mais da metade dela é para
exportação de grãos (commodities), com baixo ou nenhum valor agregado. Não importam as
diferenças de solo, relevo, proximidade de rios, clima, etc. Se inverte o
processo natural, em que as milhares de plantas alimentícias nativas, com suas
vocações adaptadas a cada condição particular, são exterminadas para dar lugar
a uma só espécie. Isso é Ciência? Onde está a inteligência no processo?
É uma
tecnologia para exterminar a biodiversidade e forjar uma produção elevada, o que
é, em longo e médio prazos, insustentável, como bem diz o ecólogo Eugene Odum, do qual falaremos mais adiante. E isso,
ademais, chamam de "agricultura de precisão". Certo! "Necroculturas"
que PRECISAM de um coquetel de biocidas e outros agroquímicos, sem se esquecer
dos agrotransgênicos, para ter sobrevida e manter o círculo vicioso, na
linearidade da dependência crescente de insumos, que mantém a lucratividade de
oligopólios mundiais de sementes.
Neste
antissentido, as monoculturas dependem de um aporte energético muito elevado,
além do uso intenso de biocidas (herbicidas, pesticidas, inseticidas), que
contaminam os ecossistemas, a saúde do trabalhador e a população brasileira. E
muitos dos chamados “alimentos”, por meio da produção de grãos, vão ser
transformados em ração para aves, suínos e bovinos, confinados e transformados em
carnes e outros produtos industrializados. O próprio Ministério da Saúde, via Guia de alimentação, adverte para a alimentação exageradamente
industrializada, que está gerando doenças nos brasileiros, como o diabetes. Os
alimentos estão cada vez mais contaminados. Algumas destas informações
divulgadas pelo governo federal deveriam ser motivo para a população ficar em alerta.
Em 2013, a Anvisa, (Agência de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde)
anunciou que em sua análise
de agrotóxicos em hortaliças e frutas, encontrou 29% de amostras com resíduos
destes produtos acima do limite permitido ou com produtos não aprovados no
Brasil.
Estamos, no Brasil, transformando nossos biomas
em imensos desertos verdes, compostos de paisagens homogêneas de soja transgênica, milho
transgênico, eucalipto, cana, entre outras monoculturas inviáveis, entre a pobreza que representa o modelo de agricultura baseado na
venda de insumos químicos, com destaque aos agrotóxicos, ou biocidas. O
sufixo CIDA
corresponde a MATAR,
e BIOS
significa vida...
O sistema
hegemônico atual (monoculturas) é desajustado por natureza, não mantém ciclos
fechados (ex. os adubos vêm de fora) e praticamente todo o processo de preparo
da terra, uso de biocidas, colheita, transporte, depende do petróleo (sugere-se
a leitura do Livro “Monoculturas da Mente”, de Vandana Shiva).
Portanto, a forma de se “ajustar” à produção, evitando que surjam, por exemplo,
o que se costuma chamar de “plantas daninhas” ou “pragas” é a
quimicodependência (adubos químicos, herbicidas químicos, inseticidas
sintéticos, etc.).
A agricultura
convencional, portanto, baseada no uso de agrotóxicos, foi desenvolvida na
primeira e na segunda guerras mundiais, para servir como armas químicas, portanto armas
de guerra! O DDT, por exemplo, é resultado disso. Este tipo de agricultura,
não respeitando os princípios necessários da vida, ou seja, a diversidade e
a complexidade - no caso dos agroecossistemas – vem semeando a
disfuncionalidade, principalmente depois da chamada “Revolução Verde”,
alegando substituir “com vantagem” a diversidade e a complexidade dos
ecossistemas agrícolas, pela artificialização extrema. A pedra de toque
é a venda de insumos, que vai parar nos mesmos oligopólios de sementes e
agroquímicos daqueles que a defendem e mandam na agricultura mundial e na nossa
alimentação.
Muitas dessas
mesmas empresas vendem, além de sementes e agrotóxicos associados, as vitaminas
e os remédios para tratar das nossas doenças (resultado da disfuncionalidade de
nossa alimentação). O que é mais absurdo nisso tudo é que o Brasil,
detentor da maior diversidade biológica até então, a partir de 2008 se
tornou o país que mais consume agrotóxicos em todo mundo!. São 5 Litros
de agrotóxico por habitante/ano. No RS, este valor é quase o dobro!
Cabe destacar as palavras de um dos mais renomados e pioneiros da Ciência Ecológica em nível mundial, Eugene P. Odum, já citado, quando prefaciou o livro Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável, de Stephen Gliessman (2000), referindo-se à agricultura convencional: "Torna-se evidente, a cada ano que passa, que o uso corrente e excessivo de produtos químicos e de água para a irrigação não apenas contribui intensamente para a poluição dispersa, mas é, a longo prazo, insustentável. Portanto, é urgente o desenvolvimento de uma abordagem mais ecológica na produção de alimentos."
Bom, essa é uma
longa história do atual modelo hegemônico que tem como o intuito o lucro, a
qualquer modo, da qual devemos buscar conhecer melhor, para evitar que a
natureza, nosso futuro e de nossos filhos estejam cada vez mais comprometidos.
O que, talvez, poderíamos resumir sobre as monoculturas é isso: a nossa
alimentação e a forma de produção de alimentos dependem atualmente de um
círculo vicioso, que reproduz vulnerabilidade nos sistemas vivos
(ecossistemas, comunidades, populações e nossos corpos), enriquecendo alguns
poucos agentes que sofrem da “acumulação mórbida do capital”.
Sem perceber,
vivemos uma servidão alimentar que é controlada por oligopólios de
empresas de agroquímicos e “bio”tecnologia, associadas a mercados financeiros,
e não baseada nas reais necessidades alimentares da população. Seis grandes empresas controlam cerca de 60% das sementes das principais culturas no mundo.
Além disso, nessa
produção de alimentos, em larga escala, e com resíduos de venenos, nossos paladares se tornam também viciados cada
vez mais em sal, açúcar e conservantes químicos. Monoculturas de paladares?
Felizmente
emerge na agricultura a agroecologia, com base também nas plantas da
agrobiodiversidade, algumas delas aqui chamadas de PANC. Então, vamos lá!
Onde entram as PANC?
No sentido do resgate da
funcionalidade sistêmica, as PANC, adaptadas aos diferentes
ambientes, nascendo sozinhas, buscam sua reinserção natural, na retomada
dos processos dos sistemas vivos (bioprocessos) e
que também estão associadas à busca de maior autonomia, no que hoje vem se
fortalecendo o conceito de SOBERANIA ALIMENTAR.
Assim, não precisam necessariamente ser cultivadas, e sim mantidas e manejadas
de acordo com as condições de solo e interesse em sua manutenção e propagação.
Por nascerem em ambientes diversificados em organismos, interagem com os
demais, mantendo a
DIVERSIDADE que é a BASE DA VIDA.
Desta maneira, os
ecossistemas complexos e com seus fluxos fechados de energia e matéria, que
diminuem a entropia, ficam menos sujeitos a desequilíbrios. É como um jogo de
varetas chinesas. A estrutura intrincada da interação entre os organismos (diversos)
de um ecossistema é fator elementar para manter o maior equilíbrio ecológico.
Se algum elemento do sistema é retirado, ele fica mais frágil. Muitas plantas,
denominadas de “daninhas”, pela agricultura industrial (convencional), poderiam
ter seu papel de reintegração como plantas companheiras no sistema. Outro fator
positivo é a situação de que os inimigos naturais também aparecem nos sistemas
diversificados. Deste modo, a vulnerabilidade do
sistema biodiverso é menor! As doenças de plantas, provocadas por eventuais
desajustes no sistema (ex. superpopulações de lagartas, chamadas erroneamente
de “pragas”) serão menores. Outro aspecto, é que as PANC, associadas a cada
região ou bioma, em forma de culturas permanentes (permaculturas), vão manter o
ciclo da água, e também menor compactação e mais vida do solo, requerendo menor
uso de energia no sistema.
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Foto de Beldroega no meio da soja |
Neste sentido, é
importante destacar o papel das PANC como alimentos funcionais, em nosso
organismo (microssistema) por meio de vitaminas essenciais,
antioxidantes, fibras, sais minerais, que nem sempre são encontradas em outros
alimentos. Poderíamos citar aqui algumas destas espécies: palmeira-juçara, butiazeiro, pinheiro-araucária, araçazeiro, guabirobeira, taioba, cará, araruta, raiz amarga, serralha, dente-de-leão, ora-pro-nobis, caruru, bertalha, erva-gorda, beldroega, menstrus, urtigão, cactos-tuna, cactos-arumbeva, etc.
Cada hectare de culturas convencionais, como a soja, milho, por exemplo, pode comportar várias toneladas de plantas alimentícias não convencionais. Daí, porque, é um contrassenso simplesmente eliminá-las, com capina química, sendo mais racional a retirada manual ou mecânica (ou manutenção para proteção do solo) com uso alimentar e/ou econômico como verdura de alto valor nutricional, sendo este o caso da beldroega, que tem proteínas e Omega-3.
As PANC, naturalmente
funcionais, são imprescindíveis, gerando mais AUTONOMIA para
cada ser humano que deseja buscar, por suas próprias mãos, os nutrientes de que
necessita e os sabores que mais lhe agrada e também ajuda a todos. Em conjunto,
integradas com as comunidades humanas, culturas biodiversas, esta autonomia é
também fator de autoafirmação e emancipação, no que se pode chamar de SOBERANIA ALIMENTAR
E ECOLÓGICA.
Assim, com o desejo de
que, cada vez mais, pessoas, tanto agricultores quanto consumidores, se
apropriarem dos conhecimentos relacionados às PANC, e possam
compartilhá-los com cada vez mais parceiros, muitas iniciativas e materiais de divulgação dessas plantas
estão sendo criados.
Da
mesma forma, espera-se que este conhecimento faça parte de um processo
necessário de transformação sociopolítica, que busque o reequilíbrio ecológico
e junte o resgate cultural, a maior alegria nos pratos, com base nos
alimentos de nossas culturas em resgate e nova construção. Assim, alimentação,
práticas libertárias e emancipatórias andam juntas, buscando-se mais dignidade,
soberania e alegria!
Vivam as hortaliças e as
frutas não convencionais, nativas ou espontâneas do Rio Grande do Sul e do
Brasil, ou de onde for!
Quem quiser mais detalhes
sobre estas plantas, pode obter no recente livro das Plantas Alimentícias Não
Convencionais, de V. F. Kinupp e H. Lorenzi (2014) (ver www.plantarum.com.br)
E se quiser também
interagir com o Projeto de Extensão-Comunicação - Grupo Viveiros Comunitários,
da Biologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), escreva para
gvc.botanica@ufrgs.br, ou entre em contato com o InGá (inga@inga.org.br).
Segue breve notícia do evento, no Blog RS Urgente