terça-feira, 9 de agosto de 2016

PROJETOS DE HIDRELÉTRICAS NO RIO URUGUAI: PERDAS E DESAFIOS SOCIOAMBIENTAIS*



Paulo Brack[1], Eduardo Luis Ruppenthal[2], Ismael Verrastro Brack[3]

Origem autoritária do planejamento de empreendimentos de geração hidrelétrica, que segue a despeito do avanço do marco legal da sociobiodiversidade 


As grandes hidrelétricas no Brasil, e também para a bacia do rio Uruguai, são originárias de planos elaborados entre 1977 e 1979, resgatados em sua maioria no Programa de Aceleração do Crescimento de 2007 e em edições mais recentes. Fazem parte, portanto, de uma concepção de grandes obras derivadas do período militar, como as hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí e Balbina, agregadas a uma concepção de outros megaprojetos como Transamazônica e Usinas Nucleares de Angra. Desde então, em um intervalo de três décadas e meia, o modelo hidroenergético que implica megainfraestrutura e extensas áreas de alagamentos segue imperando a despeito da perda do que resta dos territórios da sociobiodiversidade do Brasil, em especial da região Sul do País. De acordo com Bermann (2012):

Sob a influência de grandes grupos econômicos, nacionais e internacionais, e seus aliados políticos, que formam a base da “indústria das barragens” (dam industry) no Brasil, o governo federal construiu um sistema elétrico que prioriza fortemente a geração hidrelétrica, estimulando sub-setores industriais e atendendo o suprimento a determinados setores em detrimento de outros. Por este desenvolvimento histórico criou-se um emaranhado de interesses que não nos permite afirmar que possa existir uma capacidade previsível de planejamento além de um viés concentrado em hidrelétricas no lado da geração, menosprezando a eficiência energética e outras fontes, com a utilização de cenários de crescimento de demanda, sem o questionamento de seus pressupostos, (Bermann, 2012, p. 19).


Neste intervalo de tempo, a Constituição Federal do Brasil (1988) consolidou garantias para a conservação do meio ambiente e dos direitos humanos. A garantia de serem mantidos os processos ecológicos dos rios e de sua biota protegida mediante os impactos dos empreendimentos hidrelétricos está presente principalmente no seu Art. 225, que define em seu parágrafo 1o a responsabilidade do poder público em “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (inciso I), “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País” (inciso II) e “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (inciso VII). Além disso, a Constituição considerou a Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal e a Zona Costeira como Patrimônios Nacionais. Assim sendo, fica evidente na Carta Magna a necessidade de que qualquer atividade, e neste caso as hidrelétricas, não venha causar extinção de espécies com a transformação dos rios, em geral com corredeiras, em lagos de represas, também em biomas como a Mata Atlântica, no caso da bacia do rio Uruguai – situações graves que permanecem sendo negligenciadas.
Externamente, o Brasil assinou importantes acordos internacionais na área ambiental, destacando-se durante a Conferência Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, a chamada “Rio 92”, por meio da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ratificada em 1994. Tivemos também a instituição da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA), reconhecida pela UNESCO, no início da década de 1990, com destaque ao estabelecimento de três zonas: Zona Núcleo, Zona de Amortecimento e Zona de Transição. Como demonstração dos esforços do Brasil em implementar políticas internas nesse âmbito, dez anos após a Rio 92, em 22 de agosto de 2002, foi publicado o Decreto 4.339, que instituiu os princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Biodiversidade, fundamentada em conceitos referendados nas leis existentes e em novos temas e tratados internacionais em matérias afins pelo Congresso. A Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), depois de mais de 14 anos em trâmite no Congresso, foi aprovada e promulgada em 22 de dezembro de 2006, visando proteger e ampliar a extensão de 7,84% de cobertura original do segundo bioma mais ameaçado de extinção no mundo. No que se refere à territorialidade protetiva de todos os biomas brasileiros, em 2004 e em 2007, foram publicados os mapas das Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (APBio), a última versão pela Portaria do Ministério de Meio Ambiente (MMA) n. 09, de 23 de janeiro de 2007 (figura 1). É necessário enfatizar também que nestes últimos anos têm avançado os esforços para a atualização das listas de espécies brasileiras ameaçadas de extinção da flora (Port. MMA 443/2014), fauna (Port. 444/2014) e peixes e invertebrados (Port. 445/2014), incluindo as respectivas listas estaduais.
Na bacia do rio Pelotas-Uruguai, as políticas públicas em relação à proteção da biodiversidade têm uma dimensão especial: a presença do Parque Estadual do Turvo, criado em 1947, no estado do Rio Grande do Sul, onde estão abrigados os principais remanescentes florestais mais contínuos da bacia. No aspecto humano, cabe dar destaque também à criação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) por meio do Decreto n. 6.0407, de fevereiro de 2007. 


Figura 1 – Recorte do Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade (MMA, 2007), onde aparece o estado do Rio Grande do Sul (Fragmento do Mapa da Portaria n. 9 do MMA, de 23 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.biodiversidade.rs.gov.br/arquivos/1189431095MMA___2006_mapa_areas_prior.gif   Acesso em 20 de fevereiro de 2015).
Em resumo, o marco legal de proteção à sociobiodiversidade avançou, mas os projetos de hidroeletricidade seguiram basicamente os mesmos, com algumas mudanças aqui ou ali. A premissa de que os rios são passivos de construção praticamente indiscriminada de hidrelétricas, transformando os ecossistemas de cursos d’água corrente em “escadarias” de grandes lagos de reservatórios, permanece até hoje vigendo no setor elétrico. Ignora-se o desaparecimento de muitos milhares de hectares de florestas, de modos de vida e de terras produtivas, bem como desprezam-se alternativas menos impactantes de geração e uso racional de energia (eólica, solar e bioenergética).
Uma grande contradição entre a localização prevista para os projetos de hidrelétricas e a biodiversidade pode ser exemplificada na comparação dos mapas dos empreendimentos do Sistema de Informações Georreferenciadas do Setor Elétrico (SIGEL) da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e o mapa das áreas prioritárias para a biodiversidade (APBio, Port. MMA, n.9/2007) (tabela 1). Os resultados indicam que a maior parte das hidrelétricas (UHEs) no Brasil segue sendo construída (62,5%) e planejada (62,1%) nas áreas prioritárias, sendo que 50% dos empreendimentos em construção estão localizados justamente na categoria de “Extrema Importância”, denotando descompasso e contradição entre as políticas públicas. 
Tabela 1 – Número e percentual de empreendimentos hidrelétricos (UHE, acima de 30 MW, ou PCH até 30 MW) no Brasil em construção ou planejados, atingindo as Áreas Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira (APBio) (Port. MMA, n. 9 de 23 de janeiro de 2007), conforme cruzamento de dados disponíveis e obtidos em janeiro de 2015 no Sistema de Informações Georreferenciadas do Setor Elétrico / Agência Nacional de Energia Elétrica – SIGEL/ANEEL[1] e os dados do MMA[2].
Hidrelétricas
                           /Categorias


Extrema
(%)
Muito Alta (%)
Alta
(%)
Fora
(%)
Total APBio
(%)
UHEs em construção (8)
50,00
12,50
0,00
37,50
62,50
UHEs planejadas (261)
26,05
27,97
8,05
37,93
62,07
PCHs em construção (30)
16,67
23,33
3,33
56,67
43,33
PCHs planejadas (1720)
25,17
16,34
3,90
54,59
45,41