sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Plantas Alimentícias Não Convencionais - Revista Agriculturas, Agosto, 2016

Revista Agriculturas, V. 32, Ed. 2. Agosto, 2016, Editor Convidado: Paulo Brack

Nossa alimentação, na sociedade ocidental dita moderna, reflete a lógica da grande escala, que visa a supremacia da acumulação e do lucro sobre os demais valores. As monoculturas, no campo, representam o ápice de modelos que lucram com a sobretransformação da natureza e aniquilam a diversidade, hoje reconhecida como sociobiodiversidade. 

Tornamo-nos, assim, reféns das monoculturas da mente, como diria Vandana Shiva, mas também da produção de alimentos, uma vez que nossa dieta está baseada em pouquíssimas espécies e controladas por gigantescos oligopólios de sementes e de insumos da agricultura industrial. Já na virada do milênio, a própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) alertou para o fato de que 75% de nossas variedades de plantas cultivadas e animais domesticados desapareceram.

Entretanto, em cada canto do planeta onde existe vegetação diversa, com exceção das regiões cobertas de gelo na maior parte do ano, temos biomas e seus respectivos ecossistemas com excepcional diversidade de flora e fauna com potencial alimentício. Esse enorme manancial sempre foi destacado por Eduardo Rapoport, ecólogo argentino da Universidade de Bariloche e um dos maiores especialistas e entusiastas da diversidade da flora alimentícia presente em cada continente. Rapoport assinalou que a razão para a nossa monotonia dietética é que vivemos um imperialismo alimentar e gastronômico e faz duras críticas inclusive à manutenção do conceito depreciativo de ervas daninhas (malezas, em espanhol), muitas delas chamadas pelo cientista de buenezas (termo que, em português, poderia ser traduzido como ervas benignas). Ele aponta ainda que, em todo o mundo, pelo menos 1/3 das plantas assim denominadas são comestíveis, algumas com extraordinário valor nutricional, cultural e ecológico, como ressalta o artigo de Miguel Altieri (pág. 30).

Antes de Rapoport, o pesquisador alemão Günther Kunkel foi um dos pioneiros catalogadores desse assunto, tendo citado 12,5 mil espécies com potencial alimentício no mundo. Aqui no Brasil, cumpre destacar o trabalho do professor e pesquisador Valdely Kinupp, que estuda e dissemina o que chama de plantas alimentícias não convencionais (Pancs). Com base em vários autores e em seus próprios levantamentos, Kinupp destaca que entre 10 a 20% da flora mundial tem potencial alimentício, definindo esse tipo de plantas como aquelas que possuem uma ou mais partes ou produtos utilizados ou com potencial para a alimentação humana, tais como: raízes, caules ou tubérculos, bulbos, rizomas, talos, folhas, brotos, flores, frutos e sementes, incluindo o látex, resinas e gomas ou outras partes usadas para a obtenção de óleos e gorduras comestíveis. Esse conceito engloba ainda especiarias, plantas condimentares e/ou aromáticas, assim como as que são utilizadas como substituintes do sal, corantes alimentares, endulcorantes naturais, amaciantes de carnes e também fornecedoras de bebidas, tonificantes e infusões. Isso, no Brasil, representaria, pelo menos, de três a quatro mil espécies de plantas nativas.

Somente na região metropolitana de Porto Alegre, Kinupp encontrou 311 espécies de Pancs nativas. Em linhas gerais, podemos dizer que a metade das nossas plantas alimentícias é composta de frutas ou castanhas, enquanto a outra metade, de hortaliças e outros produtos. Podemos destacar também, por exemplo, a presença no Rio Grande do Sul de 201 plantas nativas com frutos e sementes comestíveis (o que chamamos de frutíferas). Desse total, cerca de 40% ocorrem no bioma Pampa e pelo menos 90% no bioma Mata Atlântica. Em termos biológicos, cerca de 60% das frutíferas no Rio Grande do Sul são árvores ou palmeiras, mas o dado que chama a atenção é que os 40% restantes apresentam uma grande diversidade de formas biológicas, como ervas, arbustos, trepadeiras e epífitas. Ainda no que se refere a frutíferas nativas do Brasil, é importante mencionar que, já na década de 1940, o botânico autodidata e um dos pioneiros da flora de São Paulo, Frederico Hohene, lançou a primeira obra abordando o que ele denominou de frutas indígenas brasileiras. Mas as Pancs não se restringem às plantas nativas.

Poderíamos estender o conceito a todas as plantas que não são convencionais em nossos cardápios ou não são produzidas em sistemas convencionais (agricultura industrial ou convencional), daí a designação de plantas alimentícias da agrobiodiversidade. Portanto, o conceito enfatiza as especificidades das biorregiões e das formas de produção. Assim, incluímos sementes crioulas e outras plantas associadas a diferentes culturas tradicionais e culturas alimentares, resgatando nossa riqueza étnica e fortalecendo a autoestima das comunidades em cada canto do País e também em cada canto do planeta.

A diversidade de plantas e também de animais deixa claro o enorme potencial de seu uso em variados sistemas de produção, dentro de um paradigma não produtivista, necessário e urgente. O cultivo e a utilização são crescentes, devendo permanecer associados aos sistemas agroecológicos, em especial aos sistemas agroflorestais (SAFs), sob o resguardo dos agricultores familiares e das populações tradicionais. As plantas nativas alimentares, ou as plantas alimentícias da agrobiodiversidade, podem ser uma forma de autoafirmação de nossa autonomia, não somente em seu uso in natura, como também em processados, desde que não na forma de industrialização dos grandes conglomerados e oligopólios. O conhecimento acumulado das comunidades humanas sobre essas espécies em cada região onde ocorrem promove o resgate da cultura alimentar e da medicina popular regional, além de novas receitas saborosas e saudáveis, o que anima os grupos de agricultores e produtores a reintegrar o ser humano à natureza.

Os artigos desta edição da Revista Agriculturas abordam essa ampla temática, ressaltando a necessidade de uma profunda releitura de nossa relação ecológica perdida com as espécies da biodiversidade. Os artigos trazem reflexões a partir de experiências realizadas na Etiópia, na Alemanha, em diferentes países latino-americanos e em vários estados do Brasil, com destaque para as iniciativas em curso na Bahia, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.

sábado, 3 de setembro de 2016

Qual o papel do biólogo, em meio ao modelo de esgotamento atual?

No Dia do Biólogo, cabe o alerta  referente à situação da profissão que mais está ligada à vida e que também está sob o alvo da política rasa, dos fundamentalistas do crescimento econômico e do suposto resultado direto do que costumam chamar de desenvolvimento. Para isso, sempre é importante trazermos o contexto mundial e também nacional ou local para esta abordagem.

Em nível mundial, temos um cenário dramático da Sexta Extinção em Massa, reconhecida pelo desaparecimento em massa de muitas espécies, situação que ocorreu em períodos de dezenas ou centenas de milhões de anos devido a fenômenos naturais. Hoje, o fenômeno está sendo provocado pelas atividades econômicas ligadas a um modelo de crescimento ilimitado e concentrador, que quebra enormemente os ciclos biogeoquímicos da Biosfera e altera o clima planetário, com resultados catastróficos, anteriormente, pouco comuns. Modelo este que, em suma, degrada a natureza e compromete a vida das pessoas e o futuro das novas gerações. E em uma economia que concentra renda inédita, onde  1% da população mundial alcança a riqueza econômica equivalente ao restante dos 99% dos habitantes do planeta, sendo que os argumentos da lógica econômica reinante caem por terra.

No cenário nacional, seguimos sendo um país, como nossos vizinhos latino-americanos, exportador de matérias primas, com altíssima carga de esgotamento de recursos naturais e graves efeitos socioambientais colaterais, denominados de “externalidades”. Como exemplo, dos resultados nem sempre computados da economia, no final do ano passado, assistimos o maior desastre ambiental provocado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, do grupo Vale e BHP, em Mariana (MG). Quase duas dezenas  de mortos, centenas de lares e milhares de hectares de áreas de ecossistemas terrícolas e aquáticos destruídos, tudo isso para exportar milhões de toneladas de minério de ferro e "desenvolver" o país, voltando à lógica colonial. Assistimos a vida comprometida novamente pela ganância empresarial e negligência governamental.

Enquanto isso, igualmente,  segue no campo a supremacia a do modelo exportador , representado pelas commodities em escala extraordinária, com monoculturas de grãos, em especial a soja, para alimentar animais confinados em outras paragens, comprometendo ecossistemas originalmente florestais e biodiversos. No bioma Pampa, se plantam árvores, e na Amazônia se plantam capins e lavouras de plantas não florestais.  A venda de agrotóxicos, mesmo com as lavouras transgênicas, segue sendo campeã no Brasil.

Nas áreas urbanas, o apelo é para o consumo de bens de baixíssima durabilidade, como automóveis, por exemplo, a despeito da necessidade de investimentos em transporte público. A chamada infraestrutura, inclusive energética, baseada no resgate ao poluente carvão mineral e na retomada de megahidrelétricas sobre a Amazônia, é prioritária para manter o círculo vicioso exportador de uma economia sem perspectiva de futuro. Degradar a natureza segue sendo um bom negócio, para quem controla a economia. 

Neste momento, após o fatídico 31 de agosto, aprofunda-se o caminho insustentável, que poderá ser levado a cabo pelo grupo político mais corrupto e que assaltou o poder, num forjado “impeachment”, num cenário obscurantista de negócios escusos, via bancadas ruralistas, da mineração, da bala, e assim por diante.

Neste panorama pavimentado para o retorno do neoliberalismo, o costumeiro laissez-faire atropelador da legislação ambiental tende a vir mais forte. Vários projetos de lei tramitam no Senado e na Câmara com este intuito. E, paradoxalmente, este e outros profissionais, no caso do biólogo, que mais estudam e trabalham para a gestão e o  resgate da vida ecossistêmica com maior equilíbrio estão sofrendo e perdendo espaço de trabalho.

Os órgãos ambientais, sob a lógica crematística, governados por políticos de visão meramente eleitoral, financiados por empresas degradadoras, impõem forte restrição à atuação do biólogo e de outros profissionais da área ambiental, que emprega, ou deveria empregar, muita gente. Os estudos de impacto ambiental de baixa qualidade acabam sendo forçados a serem aceitos, por parte de chefias, desqualificando trabalhos importantíssimos e mantendo a mediocridade e a propaganda enganosa por parte de empresas nos EIA-RIMAs. 

Sendo assim, não nos resta outra alternativa que reverenciarmos o preparo técnico e nossas armas, via valorização de nossa biodiversidade vilipendiada, o conhecimento biológico na saúde, entre outras áreas, e irmos para a luta denunciando o ataque à nossa profissão, resgatando a economia verdadeira e a ecossoberania nacional. Os indicadores ambientais nunca estiveram tão de nosso lado. Existem milhares de espécies em via de extinção, e isso agora ninguém mais pode negar. As mudanças climáticas de origem da economia “business a usual” também são incontestáveis. Os ecossistemas e os biomas brasileiros devem ser melhor estudados, manejados e mantidos, também gerando renda quando possível, de forma sustentável, combatendo-se as monoculturas, inclusive as pesquisas que as incrementam. Os cursos de água e a atmosfera necessitam estudos com bioindicadores e monitoramentos, bem como a saúde humana depende da saúde ambiental.

Temos várias espécies desconhecidas para a Ciência. Algumas estarão desaparecendo embaixo de um megaempreendimento, sem sequer sabermos de sua existência. Temos, por exemplo, cinco mil espécies de plantas alimentícias e de outros tantos usos que dependem de biólogos, agrônomos, nutricionistas e outros profissionais para seu maior desenvolvimento aqui, já que dezenas delas já são alvo de biopirataria e fazem parte privilegiada da economia de outros países. Os diferentes órgãos de saúde e de meio ambiente devem valorizar este tema, que depende do conhecimento do biólogo.

O trabalho técnico não deve se curvar ao assédio moral, situação que é considerada crime, pois representa tentativa de impor o silêncio a este profissional que defende a vida. Situações que acontecem rotineiramente devem ser colocadas para fora e denunciadas, inclusive com processos na Justiça. Nisso, é necessário que não se tenha medo de delatar este tipo de ação no serviço público e também privado, em especial nos órgãos ambientais. Os chefes das pastas ambientais em todos os âmbitos, que tentam impor aos profissionais da área ambiental sua ingerência política, devem receber um basta de parte da Justiça. E os profissionais que trabalham na área técnica devem ter estabilidade, via realização de concursos, para que possam exercer de sã consciência sua profissão.

Mas para isso, o tratamento destes temas e a superação desta situação de estrangulamento da profissão, num dos momentos de maior necessidade, os Conselhos Federal e Regionais de Biologia, os Sindicatos de Biólogos e outras agremiações, organizações ou articulações tornam-se fundamentais para que o biólogo consiga exercer sua profissão, plenamente, com dignidade e alegria.