terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Contribuição para superarmos o Apagão Ambiental e a insustentabilidade ecológica no Rio Grade do Sul

Ofício/InGá/nº02/2019
Porto Alegre, 19 de fevereiro de 2019

Ilmo. Senhor Artur Lemos
Secretário da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, Presidente do Consema

Prezado Senhor:

O Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais, entidade ecologista pertencente à Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do RS (Apedema-RS), vem saudar o novo Secretário e Presidente do Consema, no início desta nova gestão governamental, aproveitando para apresentar nossas preocupações e breves contribuições sobre a situação ambiental e os desafios para o Estado do Rio Grande do Sul e à Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura e ao Consema.
Neste ano, em 29 de junho de 2019, completar-se-ão 20 anos da criação da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (SEMA). Cabe destacar que a criação da SEMA representou uma conquista histórica, tanto dos técnicos dos órgãos ambientais do Estado como dos movimentos ambientalistas e de todos os gaúchos. Entretanto, no final de 2018, o governador eleito Eduardo Leite apresentou à Assembleia Legislativa um questionável projeto que atrelou a área de Meio Ambiente à Infraestrutura, desconfigurando a SEMA e seu papel legalmente constituído pela Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal n. 6.938/1981). Os órgãos ambientais compõem um Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) e um Sistema Estadual de Proteção Ambiental (SISEPRA), conforme a legislação nacional e estadual, que não inclui o termo “Infraestrutura”. Ademais a palavra infraestrutura não parece ser autoexplicativa, pois, como José Lutzenberger, questionamos o atual modelo de infraestrutura que vem corroendo as bases da sustentabilidade do Planeta.
Consideramos, assim, esta mudança um profundo equívoco tanto na forma como no conteúdo. A AGAPAN, entidade das mais antigas do País, já havia manifestado, em dezembro de 2018, sua crítica[1] ao PL 224/2018, a qual compartilhamos:Parece-nos que os fins últimos dos órgãos de meio ambiente são distintos e muitas vezes opostos aos de infraestrutura. Então, se os objetivos e funções são radicalmente diferentes, qual seria a motivação desta proposta?” [...] a fusão atende mais a interesse econômicos do que de proteção ambiental”. Consideramos que a nova configuração da Secretaria de meio ambiente retira a autonomia dos órgãos ambientais tanto no licenciamento como na fiscalização, agora potencialmente tutelados a um modelo de desenvolvimento cada vez mais em crise. Ademais, causou-nos surpresa o encaminhamento e a aprovação no dia 2 de janeiro de 2019 da Lei n. 15.246/2019, com uma nova configuração desta nova secretaria, no afogadilho, sem nenhum debate com a sociedade.
Quanto ao conflito entre Infraestrutura e Meio Ambiente, é necessário que possamos colocar em discussão uma contradição que não deveria existir, mas que é dominante e natural devido ao modelo econômico imediatista, que prioriza o crescimento econômico ilimitado, a qualquer custo, flexibilizando o controle ambiental. Fato ilustrativo disso é a calamidade socioambiental que ocorreu em Brumadinho (MG), pelo crime de negligência da empresa de mineração Vale, reincidente e que mesmo autuada em dezenas de vezes, nunca pagava as multas ambientais. Do ponto de vista mundial, as entidades ecologistas, baseadas em especialistas e intelectuais do mundo inteiro, vêm alertando para temas como as Mudanças Climáticas, a Sexta Extinção em Massa e a contaminação ambiental de água, ar, ecossistemas e de seres humanos.
Infelizmente, no caso do Brasil e de outros países da semiperiferia do mundo econômico globalizado e competitivo, é priorizada a infraestrutura para exportação de recursos naturais, via commodities, ou mesmo priorização em indústrias que geram produtos com obsolescência programada dentro da lógica de crescimento contínuo de consumo. A partir da priorização do Mercado, vimos enormes pressões econômicas para rebaixar a legislação ambiental, fato que ocorreu com o Código Florestal, e está na pauta a flexibilização via Código Minerário, Lei dos Agrotóxicos e novas leis de Licenciamentos Ambientais.
A infraestrutura decorrente do modelo hegemônico de economia de crescimento infinito em um planeta finito, com o agravante das regras de mercado se sobreporem aos direitos socioambientais garantidos pela Constituição Federal, é legalmente questionável e profundamente contraditória com a proteção ambiental. 
É necessário que se estabeleça uma discussão democrática sobre a economia hegemônica, levada a cabo por grandes setores, atrelados a uma lógica de mercados competitivos globais, que muitas vezes encaram o meio ambiente como um entrave. Testemunhamos inúmeras declarações e ações do governo anterior, por meio da ex-secretária de meio ambiente, Ana Pellini, junto a grandes setores da economia do Estado, concentrando seus esforços na agilização de licenças a despeito do enfraquecimento da gestão ambiental da SEMA, em especial a FZB, a FEPAM e o DEBio.
Ao longo das últimas duas décadas, a economia do Rio Grande do Sul acabou, em grande parte, dependendo das exportações de matérias primas (grãos de soja) ou semimanufaturados (pasta de celulose)[2], com valor agregado baixo ou nulo, sem falar das isenções de impostos (Lei Kandir).
 Monoculturas de soja no Alto Uruguai, do RS
 A obsessão pelo potencial uso de carvão, dentro dos combustíveis fósseis, responsáveis pelas mudanças climáticas e contaminação ambiental[3], representa um enorme risco ao Estado, pois corresponde a uma matriz altamente poluente que está sendo abandonada em muitos países, mas incrementada aqui. Correm maior risco o município de Candiota e mais recentemente em Eldorado, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). 


Os projetos de grandes hidrelétricas nas bacias dos rios Uruguai e Taquari-Antas também correspondem a grandes impactos[4], com perdas para sempre de terras de muitos milhares de pessoas e de muitos milhares de hectares de florestas e campos nativos, destacando-se resultado de fraudes, reconhecidas pela justiça, em licenciamentos, como no caso da UHE Barra Grande, na década passada.
 Área alagada pela Hidrelétrica de Barra Grande
A mineração sobre o Pampa, principalmente na bacia do rio Camaquã, é uma grande ameaça. Parte da mineração de areia no rio Jacuí, para construção civil, também é um problema recorrente. No setor industrial, é preocupante o fator sinérgico da poluição aérea e hídrica na Região Metropolitana de Porto Alegre, por meio do Polo Petroquímico, da Refinaria Alberto Pasqualini, da empresa Celulose Rio-grandense, da enorme frota de veículos automotores da região que concentra pelo menos 1/3 da população do Estado. O setor automobilístico e a fumicultura também são setores fortes e questionáveis na ênfase da produção econômica do Estado, mas com itens de sustentabilidade nem sempre presentes. Nestes patamares convencionais de Infraestrutura dos negócios de sempre, com maior peso em relação ao meio ambiente, segue sendo um tema praticamente tabu dentro da lógica econômica dominante e deveria ser objeto de discussão tanto no Consema como em outros fóruns da sociedade.
No momento, levantaremos alguns dos itens que consideramos mais graves no que toca ao quadro ambiental negativo e negligenciado por vários governos, principalmente o governo do Estado antecessor, onde houve retrocessos tremendos, vias leis, decretos e portarias com profunda fragilização do setor técnico da área ambiental (tentativa de extinção da FZB, enfraquecimento da gestão ambiental da Fepam e DEBio). Tal fragilização no licenciamento não é exclusividade do Estado, sendo um fenômeno nacional e internacional que pode aumentar os riscos de danos ou desastres socioambientais de grande monta como aqueles que ocorreram pela negligência nos licenciamentos.
Infelizmente, a guerra fiscal entre os Estados e a redução de recursos para os órgãos ambientais são elementos que conspiram contra a gestão ambiental qualificada.
A seguir, assinalamos alguns dos problemas ambientais prioritários a serem enfrentados no Rio Grande do Sul:
1)       O Estado possui os dois biomas, Mata Atlântica e Pampa, com menor superfície de remanescentes no Brasil (7,9% e 36%), conforme dados oficiais do MMA[5]. O Rio Grande do Sul, também, é o que apresenta menor quantidade e extensão de Unidades de Conservação (2,6%)[6] entre os três estados Estado da Região Sul, lembrando que as Metas da Biodiversidade 2020 (Metas de Aichi)[7], assinadas pelo Brasil com mais de 190 países da Convenção da Diversidade Biológica, preveem 17% de cada território com áreas protegidas; 
2)      No que se refere às espécies ameaçadas, possuímos 280 espécies ameaçadas da fauna (Decreto Estadual 51.797/2014) e 804 espécies ameaçadas da flora do RS (Decreto Estadual 52.109/2014), tendo os números crescido desde a década passada;
3)      No que se refere à qualidade ambiental hídrica, possuímos três rios entre os 10 mais poluídos do Brasil (rio Gravataí, rio dos Sinos e rio Caí)[8], o que contribui em muito para a perda de qualidade de abastecimento de água na RMPA, além do aumento dos fenômenos de florescimento de cianobactérias no rio-lago Guaíba. Os barramentos de rios para geração de energia e para irrigação correspondem à morte de matas ciliares e sua biota associada, morte de peixes e eutrofização que compromete inclusive a qualidade da água;
4)      No que toca à qualidade do ar, temos o sistema de monitoramento da qualidade o ar praticamente totalmente sucateado na RMPA[9]. Consideramos inadequada a ênfase ao processo de autolicenciamento e automonitoramento por parte de empresas, o que diminui o controle do Estado e a alimentação de dados isentos e confiáveis para a gestão ambiental, isso vale para todos os âmbitos de poluição;
5)      No campo, conversão acelerada de vegetação dos Campos Sulinos em lavouras, com um aumento exagerado e sem limites do modelo baseado nas monoculturas de soja transgênica e de outros grãos para exportação, muitas vezes com uso indiscriminado de agrotóxicos e outros insumos, com uso acentuado de recursos hídricos, vindo a comprometer a saúde dos agricultores e da sociedade, dos alimentos, das abelhas, dos rios e da saúde dos ecossistemas, estrangulando a diversidade econômica, o que também é um problema ecológico. A morte em massa de colmeias de abelhas e outros polinizadores é um enorme problema para a apicultura resultante disso, já que perdemos a produção de mel e da polinização de mais de 50% das culturas que dependem destes insetos; 
6)      Crescimento desordenado de urbanização na Região Metropolitana do Rio Grande do Sul e do Litoral Norte, sem controle e planejamentos necessários, comprometendo a qualidade ambiental. A extinção da Metroplan é um processo de desregulamentação deliberado que permite a expansão sem regras e que acarreta múltiplos problemas;
7)      Crescimento das espécies exóticas invasoras, segundo fator de perda de biodiversidade, necessita de maior esforço da SEMA no enfrentamento deste tema de forma efetiva;
8)      Apagão ambiental, pela fragilização do corpo técnico dos órgãos e setores de meio ambiente estaduais (Fepam, FZB, DBio) e nacionais (IBAMA, ICMBio), com desestruturação do SISEPRA (Sistema Estadual de Proteção Ambiental), sem controle e sem fortalecimento necessário do licenciamento e gestão ambiental, inclusive das regionais da Fepam e DEBio, e repasse indiscriminado de responsabilidades às prefeituras. A contratação, sem concurso, de técnicos da área dos órgãos ambientais deixa todo sistema de licenciamento sob a ênfase dos interesses e pressões políticas e econômicas;
9)      Unidades de Conservação sofrendo grave descaso de parte do governo, com desfalque de técnicos gestores, sem equipe de apoio, com escassez de guarda-parques, falta de equipamentos, sem recursos e com graves conflitos em suas áreas de amortecimento, e sem planos que possam viabilizar o Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC).
Como sugestões, trazemos aqui alguns itens como:


1)       Revisão da Lei 15.246/2019, que incorporou a Infraestrutura a SEMA e revisão de todos os atos que resultaram em licenças ambientais questionadas na justiça, na gestão do governo antecessor;
2)      Fortalecimento dos órgãos ambientais, resgatando as atividades essenciais realizadas pela Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, FEPAM e Departamento de Biodiversidade (DEBio), valorizando os técnicos e demais funcionários destes órgãos em programas de gestão ambiental onde se possa manter e fortalecer as informações da capacidade de suporte de atividades por bacia e/ou unidade de paisagem, integrando pesquisa, fiscalização, licenciamento, monitoramento, a fim de se superar o Apagão Ambiental atual. Manter um contingente de técnicos necessários para as diversas atividades de gestão ambiental, por meio de concursos e salários dignos;
3)      Avançar no resgate de pioneirismos na gestão ambiental, tomando em conta de que a FEPAM e a FZB tornaram o Estado do Rio Grande do Sul como o primeiro Estado do Brasil a realizar o Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS) e as Avaliações Ambientais Integradas (AAI) dos rios Taquari-Antas (2001), retomando-se com discussão séria e transparente em relação ao Zoneamento Ecológico-Econômico, com inclusão das universidades e instituições de pesquisa e setores da sobiobiodiversidade, que contemple a Zonas da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e as Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (Portaria MMA n. 9, de 23 de janeiro de 2007);
4)     Interação da SEMA com as áreas que visam o desenvolvimento da agroecologia e produção orgânica, já que o RS é um dos poucos do Brasil que desenvolveu estas atividades sustentáveis. Haverá Infraestrutura para seu desenvolvimento? Temos no Estado a maior produção de arroz orgânico da América do Sul, justamente em um assentamento. Apesar da lamentável extinção da Secretaria de Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo (SDR), o Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica – PLEAPO teve articulação de entidades e avanços importantes. Porém o PLEAPO depende de ações da FZB, principalmente do Jardim Botânico e de seu viveiro para produção de mudas como de erva-mate, araucária, juçara, butiá, entre outras. Incentivo às agroflorestas na Região da Mata Atlântica; proteção e valorização do Pampa e da Mata Atlântica.
Agroflorestas no Litoral Norte do RS
5)      Valorização dos Biomas do Estado. No Pampa, retomando uma segunda edição do Projeto RS Biodiversidade, com incremento à pecuária sobre campos nativos altamente produtivos, incentivo ao turismo rural e ecológico, e desincentivo econômico à conversão dos campos nativos em lavouras. Criação de UCs de uso sustentável no Pampa, eivando esforços em prol da PEC n. 05/2009 que prevê a incorporação do Pampa, da Caatinga e Mata Atlântica como Patrimônios Nacionais na Constituição Federal. Na Mata Atlântica, fortalecer o Comitê da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, incrementando ações demandadas e propostas pelo Comitê;
                                     Guaritas - Caçapava do Sul


6)      Incentivo às fontes de energia renovável e alternativa, com respeito às energias de fontes eólica, solar e biomassa e o resgate de uma matriz industrial de bens de longa duração e sustentáveis, como painéis solares, equipamentos de geração eólica, produção de veículos mais sustentáveis, como bicicletas e veículos coletivos menos poluentes, com base em energia elétrica ou gás, entre outros;
7)      Debater o desenvolvimento do Estado e a sustentabilidade ambiental, com base nas demandas locais, de forma ampla com a participação da sociedade, retomando as Conferências Estaduais de Meio Ambiente, que não ocorrem há mais de uma década;
8)      Agilizar o Cadastro Ambiental Rural, coordenado pela SEMA, como instrumento importante para reverter a perda da biodiversidade, incrementando-se Reservas Legais em malhas de corredores ecológicos ;

9)      Retomar a Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar na Região Metropolitana de Porto Alegre e outras regiões industriais do Estado, integrando monitoramentos de ar, água e biodiversidade em sistemas de informação geográfica e bancos de dados unificados em todo o Estado.



Era o que tínhamos para o momento,
Atenciosamente
Paulo Brack, Coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais - Ingá