terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A POLUIÇÃO LUMINOSA E A BIODIVERSIDADE

Paulo Brack

Plantas e animais dependem do ciclo diário (circadiano) de luz e escuridão que regem os comportamentos que sustentam a vida, como reprodução, migração, nutrição, sono e proteção contra predadores. Evidências científicas comprovam que a luz artificial à noite tem efeitos prejudiciais e até mortais em muitas criaturas, com destaque a anfíbios, répteis, aves, mamíferos, insetos e plantas. A intensa luminosidade artificial decorrente de atividades antrópicas representa efeitos negativos ao ciclo circadiano dos animais, implicando em alteração do comportamento e possibilidade de aumento de mortes de animais atraídos pela luz, o que pode ser enquadrado como poluição luminosa.



A poluição luminosa, de acordo com Longcore e Rich (2004), pode ser dividida empoluição luminosa astronômica”, que obscurece a visão do céu noturno, atingindo de uma forma dispersa, e “poluição luminosa ecológica”, que altera os regimes de luz natural em ecossistemas terrestres e aquáticos. Segundo estes autores, algumas das consequências catastróficas da luz para certos grupos taxonômicos (espécies de flora, fauna, etc.) são bem conhecidas, como mortes de aves migratórias em torno de postes iluminados e de tartarugas marinhas recém-nascidas desorientadas pelas luzes em suas praias para nidificação.

A poluição luminosa, ou também fotopoluição, é causada principalmente pela iluminação pública de ruas, parques, edifícios e pelas luzes dos veículos (Longcore e Rich 2004). De acordo com documento de Henrique Paranhos Sarmento Leite (2021), a poluição luminosa se caracteriza pelo "uso excessivo ou indevido da iluminação artificial, em níveis capazes de causar efeitos adversos à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, suas atividades sociais e econômicas ou à biota". Quanto aos impactos à biodiversidade, centenas de estudos vem demonstrando que a poluição luminosa causa um conjunto diverso de perturbações sobre respostas biológicas como nos casos de padrões migratórios, seleção de habitats, comunicação animal, reprodução, ritmo circadiano, fuga de predadores, fenologia ads plantas.

Para se conhecer os efeitos do excesso de luminosidade nos ecossistemas há que se levar em conta os efeitos em muitos organismos que possuem vida noturna em florestas e em outros ambientes naturais. Infelizmente, os seres humanos, que vivem em ambientes urbanos profundamente artificializados, não se dão conta de que os ecossistemas naturais estão desaparecendo, por sua influência, e com eles cresce a ameaça de extinção de espécies. O Painel Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês), ligado a ONU, estima a existência de cerca de 1 milhão de espécies ameaçadas de flora e fauna no mundo[1]. No RS, existe uma lista oficial de 280 espécies de fauna ameaçada (Decreto Est. n. 51.797/2014)[2] e 804 espécies da flora nestas condições (Decreto Est. n. 52.109/2014)[3].  A fragilidade é evidente, então cabe seguirmos o Princípio da Precaução que não agrave a situação de nossa biodiversidade. A expansão sem limites de iluminação artificial noturna pode não causar, sozinha, a extinção de espécies, mas agrava a situação.

A expansão de urbanização traz consigo o impacto da poluição luminosa associada ou não a outros impactos, como poluição sonora e outras modalidades de poluição. A região do RS que mais vem crescendo em urbanização, com oscilação de população maior no verão, é o Litoral Norte (BRACK, 2006). É importante destacar que existem ecossistemas bem ricos em diversidade biológica no Litoral Norte[4], e que estão em estado crítico tanto no Rio Grande do Sul[5] como também é o caso do       Litoral Sul de Santa Catarina. Estes ecossistemas pertencem às Zonas Costeiras, consideradas como Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988, fazendo parte da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal n. 11.428/2006) [6], caracterizadas no mapa do IBGE (2004), como Formações Pioneiras, englobando diferentes habitats, não somente florestais. Dunas e diferentes tipos de vegetação de restingas (complexo de ecossistemas sobre a Planície Costeira) possuem comunidades animais e vegetais em equilíbrio ecológico ou próximos deste equilíbrio. Alguns animais mais comumente conhecidos em nossas matas são noturnos ou predominantemente de hábitos noturnos, como gambás, gatos-do-mato, corujas-buraqueiras, morcegos (destacando-se os frugívoros dispersores de sementes), bacuraus, sapos, pererecas, invertebrados, entre outros, alvos da poluição luminosa. Há que se considerar que animais diurnos dormem durante a noite, sendo que a iluminação artificial noturna tem impacto ao período de sono ou descanso dessas espécies.

No caso de plantas, o fotoperíodo que as afeta, definido pela relação de horas de escuro/claro, vai determinar o período do ano de fenômenos fenológicos (eventual queda biológica de folhas, florescimento, formação de frutos). O fotoperíodo altera a fenologia, acelerando ou alterando o período de florescimento, frutificação e queda de folhas, por exemplo, segundo Bennie et. al. (2016).

No caso de insetos, ocorre a atração em massa de diferentes organismos pelos holofotes em áreas próximas ao seu habitat. Alguns morcegos seguem em grandes quantidades os insetos voadores, principalmente na proximidade de lâmpadas. Sapos também são atraídos para busca de insetos junto a lâmpadas. De certa maneira, a luminosidade em áreas predominantemente urbanas tem efeito mais restrito, até porque a diversidade de fauna é baixa. Mas, mesmo assim, aves, como o sabiá (Turdus rufiventris), em áreas urbanas com iluminação artificial, vêm cantando em horas mais cedo do que o normal, como a partir das 3h ou 4 h da manhã[7]. Situações como essa alcançam outras aves, mas faltam estudos sobre o tema, atualmente.

Animais noturnos dormem durante o dia e são ativos durante à noite. A poluição luminosa altera radicalmente seu ambiente noturno, transformando a noite em dia. De acordo com o pesquisador Christopher Kyba, para os animais noturnos, “a introdução da luz artificial provavelmente representa a mudança mais drástica que os seres humanos fizeram em seu ambiente[8]. Segundo o Sítio-e Dark Skies Ranger, onde é citada a fala de Christopher: “próximo das cidades, o céu nublado é centenas ou milhares de vezes mais brilhante do que há 200 anos. Este fato pode ter um efeito drástico na ecologia noturna, por exemplo ao favorecer os animais predadores que usam a luz para caçar e ao prejudicar as espécies que usam a escuridão para se esconder” (grifo nosso).

            A iluminação artificial intensa e crescente nas circunvizinhanças de ambientes naturais provoca imensa alteração no ciclo circadiano de vários animais. No caso do Litoral, onde cresce a urbanização de uma forma descontrolada e desenvolvem-se múltiplas iniciativas para atrair turistas e veranistas, há que se considerar que determinados impactos ambientais, inclusive a poluição múltipla decorrente de atividades de turismo crescente em remanescentes de ecossistemas naturais, como as matas de restinga, dunas e diferentes formas de vegetação com flora e fauna nativas.

Qualquer iniciativa que implique desenvolvimento de empreendimentos públicos ou particulares que envolvam projetos de iluminação artificial, principalmente durante o veraneio, em que animais estão em mais intensa atividade, poderá ter impactos ambientais múltiplos com alteração no comportamento ou mesmo aumento de risco de desaparecimento de espécies raras e ameaçadas extinção. A implantação ou incremento de iluminação artificial poderá afugentar, diminuir a reprodução ou causar mudanças radicais no comportamento de espécies que estão em declínio populacional no litoral, inclusive pelo avanço urbano nos balneários. Ou seja, evitar-se o aumento de fontes luminosas é também auxiliar a proteger a natureza. 

O astrônomo Falchi Fabio (https://www.ecycle.com.brafirma que os níveis da luminosidade artificial podem ser milhares de vezes mais elevados se comparados com o ambiente noturno sem lâmpadas. Essa luminosidade, principalmente proveniente de centros urbanos, vem afetando processos naturais de acasalamento, migração, alimentação e polinização das espécies, sem que elas tenham tempo de se adaptar.

A iluminação noturna altera comportamentos de animais silvestres, inclusive em processos fundamentais ligados à regeneração da vegetação, como no caso da dispersão de sementes por aves, morcegos, gambás, cuícas e demais marsupiais, além de outros animais. Da mesma forma, a poluição luminosa altera comportamentos e prejudica animais silvestres considerados predadores de insetos, como no caso de sapos, répteis, aranhas, etc. Polinizadores, com estaque a lepidópteros e himenópteros poderão ser atraídos pela luz artificial e também prejudicar o êxito na fecundação das flores e reprodução de vegetais. A defaunação ou desaparecimento ou diminuição drástica de fauna de florestas e demais ecossistemas é um fenômeno cada vez mais atual, provocado por impactos de atividades humanas, que deixa florestas e outros ecossistemas naturais vazios em fauna. 

É importante destacar que aves do litoral, como no caso de garças, que costumam ter hábitos gregários (juntas) se abrigam à noite na copa de árvores, e de dia são vistas pescando junto ao mar ou em enseadas de sangradouros, arroios ou mesmo rios que desembocam no mar.

Muitos pássaros, também atraídos pelas luzes artificiais, saem do seu curso migratório e morrem ao colidirem com construções humanas, como por exemplo, os outdoors luminosos, que também matam milhares de insetos.

Segundo o Projeto Tamar, a implantação de luz artificial principalmente nas praias, acompanhada pela expansão urbana descontrolada sobre o litoral, vem prejudicando tartarugas marinhas em seu processo de desova, atingindo assim fêmeas e filhotes. As fêmeas acabam por alterar seus locais de desova, devido à iluminação inadequada nas praias. E no caso dos filhotes, podem ficar desorientados logo após a eclosão dos ovos, e saírem de seus ninhos. Comumente, em vez de seguirem para o mar, guiados pela luminosidade natural do horizonte, acabam rumando para o continente, atraídos pela iluminação artificial. Também, na sequência, muitas vezes são alvo de atropelamento, pisoteio não intencional ou mesmo sendo devorados por predadores como cães que vagueiam sem dono nestes locais.



O que fazer?

Tanto no que se refere à fotopoluição atronômica como para a poluição luminosa ecológica, segundo declaração do professor Enos Picazzio[9], do Departamento de Astronomia da USP, duas frentes são fundamentais para mudar o cenário de fotopoluição no Brasil:  a educação e a legislação, criando-se regras obrigatórias, com punições para quem infligir as mesmas. Entretanto, o professor salienta que o processo precisa contar com o diálogo entre sociedade, setores técnicos, econômicos e ambientais, além da participação do governo.

Também, em relação à fauna e flora, evitar ao máximo a poluição luminosa, mantendo áreas naturais protegidas e desenvolvendo estudos que avaliem o problema e indiquem as melhores condições de habitat para as espécies, prioritariamente, aquelas ameaçadas de extinção.

 Referências.

BENNIE, J., DAVIES, T. W., CRUSE, D., & GASTON, K. J. Ecological effects of artificial light at night on wild plants. Journal of Ecology. 104, 611–620, 2016.

BRACK, Paulo. Vegetação e Paisagem do Litoral Norte do Rio Grande do Sul: patrimônio desconhecido e ameaçado.  In: Encontro Socioambiental do Litoral Norte do RS: ecossistemas e sustentabilidade. Livro de Resumos. Imbé: Ceclimar- UFRGS, p. 46-71, 2006.

DAVIES, Thomas; SMYTH, Tim. Why Artificial Light at Night should be a Focus for Global Change Research in the 21st Century. Global Change Biology, v. 24, Issue 3, p. 872-882, 10 Nov. 2017. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/gcb.13927 . Acesso em: 20 out. 2020.

DIAS, Karina Soares; DOSSO, Elisa Stuani; HALL, Alexander S.;  SCHUCH, André Passaglia; TOZETTI, Alexandro Marques. Ecological light pollution affects anuran calling season, daily calling period, and sensitivity to light in natural Brazilian wetlands. The Science of Nature 106: 46, 2019.

GALLAWAY, Terrel. On Light Pollution, Passive Pleasures, and the Instrumental Value of Beauty. Ecological Economics, v. 69, n. 3, p. 658-665, 15 Jan. 2010.

LEITE, Henrique P. Sarmento. Poluição luminosa: seus impactos sobre a saúde, a segurança, a economia e o meio ambiente – e propostas para a sua regulação no Brasil. Brasília: Câmara de Deputados, 2021. 39 p.

LONGCORE, T., RICH, C. (2004) Ecological light pollution. Front Ecol. Environ. (4):191–198. https://doi.org/10.1890/1540-9295(2004)002[0191: ELP]2.0.CO;2 



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