quarta-feira, 15 de março de 2023

PESTICIDAS, PRAGUICIDAS, DEFENSIVOS OU AGROTÓXICOS?

O CONTEXTO E UM POUCO DO HISTÓRICO

Existe muita confusão, induzida pelo Setor da Indústria de Agroquímicos e seus associados, na denominação relacionada a biocidas organossintéticos utilizados na agricultura. Comumente, em vez de agrotóxicos, são chamados de pesticidas, praguicidas, defensivos agrícolas, defensivos fitossanitários, entre outros. 

É importante destacar que no Brasil a palavra Agrotóxico foi legalmente aceita a partir do Estado do Rio Grande do Sul (Lei n. 7.747/1982) e depois no país (Lei n. Federal 7.802/1989, a chamada Lei dos Agrotóxicos). Entretanto, o nome surgiu em 1977, com base em uma publicação ("Pragas, praguicidas e a crise ambiental: problemas e soluções") do Dr. Adilson D. Paschoal (1979), do Departamento de Entomologia e Acarologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/ USP). A denominação incorpora prioritariamente os efeitos nefastos desses produtos à saúde humana e ao meio ambiente, já denunciados de forma pioneira pelo livro publicado, em 1962, pela bióloga norte-americana Rachel Carson (Primavera Silenciosa). Na época, na legislação do Rio Grande do Sul (também pioneira) e do Brasil contribuíram, com destaque, os engenheiros agrônomos e ambientalistas, ligados à Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), José Lutzenberger e Sebastião Pinheiro (Franco & Palaez, 2017)





A LEI DOS AGROTÓXICOS E O PACOTE DE VENENOS

A denominação Agrotóxico, na realidade, reúne uma gama de biocidas, principalmente os organossintéticos, com alvos distintos a cada grupo de organismos "prejudiciais", assim chamados como herbicidas, inseticidas, fungicidas, nematicidas, molusquicidas, etc. De acordo com o Dr. Adilson Paschoal, agrotóxico seria a denominação mais adequada, principalmente no que se refere aos riscos que representa à saúde humana e aos ecossistemas. O conceito, então, foi incorporado no Art. da Lei dos Agrotóxicos de 1989. O que diz o artigo desta Lei ? 

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se:

I - agrotóxicos e afins:

a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos;

b) substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento;

II - componentes: os princípios ativos, os produtos técnicos, suas matérias-primas, os ingredientes inertes e aditivos usados na fabricação de agrotóxicos e afins

Até agora, com base na resistência dos movimentos ambientalistas e de setores técnicos e da academia, segue vigendo o Artigo e a Lei dos Agrotóxicos de 1989. Todavia, a denominação agrotóxico causa muito incômodo à bancada ruralista, poderosíssima no Congresso do Brasil. Como consequência, uma série de mudanças seguem em tramitação no Senado, a partir da aprovação (fevereiro de 2022) do Projeto de Lei n. 6.299/2002, na Câmara de Deputados, o chamado Pacote do Veneno (agora tramitando no Senado via PL n. 1.459/2022), prevendo-se, entre outras modificações, a substituição do nome Agrotóxico por Pesticida. Este é um dos tantos retrocesssos previstos no novo PL, que tenta diminuir a sensação negativa ligada à toxicidade desses produtos, também denominados "defensivos fitossanitários", termo frequentemente utilizado pelo setor das indústrias produtoras de insumos agrícolas. O novo nome "Pesticida" é defendido pelo setor do agronegócio como forma de uniformização com nome mais usado em nível internacional (Pesticide, em inglês). Mais detalhes da aprovação do Projeto na Câmara de Deputados no sítio-e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

Entre outras mudanças embutidas no novo projeto, além do abandono do termo agrotóxicos, em favor de pesticida ou defensivo fitossanitário, está a retirada do papel atual do Ibama e da Anvisa (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária) na análise do registro de produtos, concentrando-se o poder de emitir registro limitado ao Ministério da Agricultura. Soma-se, no novo projeto, a retirada da autonomia de Estados e Municípios em legislarem ou restringirem o uso de agrotóxicos, enquadrados somente à legislação federal, além de "inovar" na possibilidade de emissão de Registros Temporários, caso os órgãos governamentais não cumpram os prazos máximos de análise de registros a novos produtos, independentemente do grau de toxicidade e risco que representem.

AS TERMINOLOGIAS LIGADAS AO ESPECISMO

Etimologicamente, entretanto, verificamos inadequações profundas nesta mudança. Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra PESTE refere-se a: "1. Doença contagiosa transmitida pela pulga do rato. 2. Qualquer epidemia mortal. 3. Pessoa má". Outros dicionários também associam o termo Peste a doenças, em geral contagiosas ou que causam infecção humana ou animal. PESTICIDA, portanto, reúne os termos PESTE (=doença) + CIDA (=matar). Existe um substituto similar, no caso o termo PRAGUICIDA, com a finalidade de matar "PRAGAS", mesmo que atinjam, em maior número, outros organismos que não se inserem como "pragas" (plantas espontâneas indesejáveis e insetos fitófagos, etc.).

Os termos “peste” ou “praga” induzem à associação a doenças, reforçando uma concepção antropocêntrica e injusta que se enquadra como ESPECISMO (uma forma de racismo contra outros seres que não os humanos), de maneira quase binária (seres "prejudiciais" x"uteis") reforçada pela cadeia de insumos agroquímicos e os laboratórios de pesquisa a eles associados. A condição de juízo de valor pejorativo e anticientífico também é milenar e já naturalizada (como exemplo a expressão " o joio e o trigo"). Infelizmente, terminologias desqualificadoras, relacionadas a seres "prejudiciais", acabam ganhando espaço hegemônico e favorecendo a agricultura convencional quimicodependente.

O QUE ESTÁ POR TRÁS DA CONFUSÃO SEMÂNTICA?

Portanto, consideramos que o tema não é meramente semântico. Já passou a hora de se  promover a desconstrução da naturalização de um enquadramento automaticamente discriminatório quanto a seres vivos considerados "prejudiciais". Esta concepção fica atrelada a uma visão a favor de tratamentos químicos na eliminação total de organismos que não o objeto da cultura agrícola desejada(?). Eliminação similar a uma assepsia, neste caso uma forma de "assepsia agrícola", vinculada ao modelo de uniformização e homogeneização reinante e obsessivo na agricultura dita moderna. Uma agricultura regada, de forma intencional ou não, no uso "justificado" de pesticidas ou praguicidas. Naturalizar conceitos equivocados mantém a superficialidade na abordagem corrente e o círculo vicioso reducionista, frente a desequilíbrios naturais nos agroecossistemas, em favor do uso massivo de agrotóxicos.

A agricultura convencional, conjugada a instituições de pesquisa atreladas aos laboratórios das gigantes empresas da indústria de biocidas, tende a desprezar ou não tolerar formas sistêmicas na abordagem da problemática ligada aos desequilíbrios biológicos nos sistemas agrícolas. A abordagem convencional abstrai inclusive o fato de que o excesso de adubos químicos, como no caso do Nitrogênio, induz a um maior risco de ocorrência de insetos fitófagos. Além disso, grande parte da carga de agrotóxicos vai parar fora da planta, atingindo água, ecossistemas e outros organismos não alvo, atingindo até mesmo inimigos naturais ou mesmo polinizadores. Daí, segue também nossa crítica ao eufemismo relacionado ao termo "DEFENSIVO AGRÍCOLA", já que esses produtos muitas vezes desajustam os agroecossistemas. Reproduzimos aqui um trecho de uma abordagem interessante de um material  da Esalq-USP, na Revista Cultivar (https://revistacultivar.com.br/artigos/doencas-e-pragas-agricolas-geradas-e-multiplicadas-pelos-agrotoxicos):

Todos os desequilíbrios nutricionais das plantas levam, direta ou indiretamente, ao acúmulo de açúcares e aminoácidos livres e isso as tornam suscetíveis às doenças e pragas. O desconhecimento dos efeitos colaterais dos agrotóxicos, corretivos e fertilizantes estão gerando nas culturas maior necessidade de agrotóxicos, criando um círculo vicioso, o qual é necessário romper e corrigir para que a nave espacial Terra seja capaz de sobreviver ao ataque da terrível praga Homem, que a dominou e a trata como se fosse sua dona, considerando-se superior aos demais seres vivos do planeta. O homem só é capaz de enxergar as causas do ponto de vista humano e esquece que ele faz parte do ecossistema e que qualquer ser vivo é importante neste ecossistema. (grifo nosso).


Em resumo, o combate químico, como única solução, além de tratar das consequências, e não das causas, pode incrementar os desajustes e os desequilíbrios dos sistemas agrícolas. O mesmo ocorre na medicina convencional, onde a doença (consequência) é tratada de forma reducionista e com uso de substâncias químicas, não raramente de forma indiscriminada, sem ver o contexto do todo que deu origem à doença. O superdimensionamento do problema, com combate químico, muitas vezes, também incrementa a resistência biológica de alguns organismos indesejáveis frente aos venenos agrícolas. Ou seja, o organismo considerado prejudicial tende a se fortalecer, mesmo diante de biocidas sintéticos e tóxicos.  Assim, o incremento do consumo de agrotóxicos tem efeitos maléficos comparáveis ao uso indiscriminado de antibióticos, onde bactérias patogênicas adquirem resistência aos medicamentos. Não por acaso, empresas como a Bayer e a Basf atuam nos ramos dos insumos agrícolas e de medicamentos, vendendo sementes, biocidas e remédios. Um bom negócio ao lucro fácil, mas Ecocida...

POR QUE NÃO RECONHECER O PAPEL DA DIVERSIDADE NA ALIMENTAÇÃO OU NO EQUILÍBRIO ECOLÓGICO?

Por outro lado, cabe destacar outra visão de contra-argumento às mal faladas "plantas daninhas" ou "plantas invasoras", também chamadas popularmente de "inços" ou "matos" no Brasil, no caso plantas nativas ou espontâneas alimentícias, resgatando culturas alimentares de povos indígenas e de comunidades tradicionais, que conhecem e convivem com a biota que os cerca há séculos ou milênios, sem o especismo das culturas "modernas". A partir da década de 1990, vários autores -  entre eles podemos citar alguns pioneiros como Cida Zurlo e Mitzi Brandão (1990), Eduardo Rapoport (1998), Rapoport & Ladio (1999) e Valdely Kinupp (2007) - vêm chamando a atenção para o resgate da importância das hortaliças não convencionais nativas ou exóticas espontâneas (que nascem sozinhas), chamadas de PANC, mas que no setor agrícola convencional são consideradas como "daninhas" ou "infestantes". 

Segundo Kinupp, o uso de herbicidas pode provocar inclusive a perda de mais de 1 ou 2 toneladas de hortaliças PANCs por hectare no Brasil (dente-de-leão, beldroega, caruru, serralha, almeirão-do-campo, e a própria buva, entre dezenas de espécies de hortaliças não convencionais). Inclusive, muitas se constituem em alimentos funcionais para humanos e animais de criação, sem falar nas chamadas "plantas companheiras", que facilitam a produção em comunhão com a biodiversidade em determinado local. O equívoco da abordagem convencional, no que chamam de pragas ou pestes, atinge também insetos herbívoros, com o uso de inseticidas não específicos, e morte indiscriminada de artrópodes, não somente os fitófagos, mas também aqueles animais predadores (vespas, aranhas, aves, anfíbios, etc.) de insetos "pragas" ou mesmo outros polinizadores (abelhas, vespas, mamangavas, mariposas, ertc.) .





Portanto, terminologias como “pestes”, “pragas”, “plantas infestantes” ou “daninhas” entram no bojo de uma forjada sensação de gravidade, e sem controle, no que se refere a organismos prejudiciais ou mesmo não tolerados pelo setor agrícola dominante. 

QUEM GANHA COM O MERCADO BILIONÁRIO DOS AGROTÓXICOS?

Assustar ou exagerar faz parte das estratégias de um mercado de agrotóxicos de 73 bilhões de dólares anuais no mundo, e 13 bilhões de dólares/ano no Brasil (mais de 65 bilhões de reais), com o agravante da isenção de impostos em 10 bilhões de reais/ano, gerando riquezas crescentes ao oligopólio das gigantes indústrias transacionais de agrotóxicos no mundo. Cinco empresas do setor concentram 82% do mercado (Grupo Syngenta- ChemChina, Bayer CropScience, Corteva AgriScience, BASF e UPL Ltd.).  "Curioso" é que as empresas são do Hemisfério Norte, onde muitos produtos são banidos por lá, mas exportam para os países periféricos do Sul, no caso o Brasil (Lombardi e Changoe, 2022). 


As propagandas de seus produtos, por consequência, superdimensionam os problemas como estratégias no aumento de suas rendas. Abstrair a complexidade de relações nos ecossistemas agrícolas conduz, ainda mais, à venda de biocidas agrícolas sintéticos em oposição inclusive aos biocidas naturais, pouco tóxicos e quase nunca persistentes ou cumulativos (óleo de neem ou produtos à base de fumo, por exemplo), admitidos na produção orgânica, mas que não ganham apoio da maior parte dos governos e das grandes empresas do setor, pois não fazem girar o círculo vicioso da dependência de insumos

No Brasil, as empresas do setor de agrotóxicos têm a obrigação de comunicar e repassar anualmente a quantidade de produto comercializado ao órgão ambiental federal, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama). Este órgão reúne e disponibiliza Relatórios Anuais de Vendas de Agrotóxicos no Brasil. Em 2021, o Ibama contabilizou cerca de 720 mil toneladas de ingredientes ativos, sem contar a quantidade de substâncias adjuvantesmuitas vezes também tóxicas. Ou seja, a quantidade total da carga de agrotóxicos, além do ingedientes ativos, adicionados na mistura e pulverização, poderia alcançar mais do que o dobro deste valor. Em 2014, o total era de 1,552 milhão de toneladas de agrotóxicos (Ministério da Saúde, 2018)Infelizmente, faltam informações atualizadas e mais completas, de parte do governo federal, neste tema e nas consequências à saude, principalmente entre 2016 e 2022, período de um certo "apagão" nas informações relacionadas a estes produtos e suas consequências.



CONCLUSÕES, SE POSSIVEL...

Sabemos que as mudanças de terminologias levam certo tempo e reconhecemos que o termo pesticida ainda irá se manter, inclusive em documentos valiosíssimos de denúncia como o Atlas dos Pesticidas, encabeçado pela Fundação Heinrich-Böll-Stiftung, mas esperamos uma transição justa e necessária nesta denominação ultrapassada.

Da mesma forma, reiteramos a importância de uma campanha para a manutenção do termo AGROTÓXICOcomo consta na Lei Nº 7.802, de 11 de julho de 1989, haja vista a possibilidade ou o risco iminente da aprovação do PL Nº 1.459/2022, com algumas das consequências aqui abordadas

Obviamente, desejamos, sem muita demora, o banimento de TODOS os biocidas agrícolas sintéticos, dominados por empresas da quimiodependência na agricultura, pois já estamos comendo venenos de sobra e já temos técnicas agrícolas agroecológicas e orgânicas que demonstram a incompatibilidade destes produtos com a vida diversa, saudável e digna para todos os organismos. Exemplo deste Outro Mundo Possível e Necessário, como ocorreu em 17 de março de 2023, na Festa da maior Colheita de Arroz Agroecológico e Orgânico da América Latina, realizada pelo MST, em Viamão, RS..
 











 


Referências:

Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (https://contraosagrotoxicos.org/)

FRANCO, Caroline da Rocha & PELAEZ, Victor. Antecedentes da Lei Federal de Agrotóxicos (7.802/1989): o protagonismo do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 41, p. 40-56, agosto 2017. 

LOMBARDI, Larissa M. & CHANGOE, Audrey. Comércio Tóxico: A ofensiva do lobby dos agrotóxicos da União Europeia no Brasil.  Friends of The Earth Europe. 2022. Disponível em: https://friendsoftheearth.eu/wp-content/uploads/2022/04/Toxic-Trading-POR.pdf 

Ministério da Saúde. Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos. Brasília: Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador), 2018.  

MORAGAS Washington Mendonça & SCHNEIDER Marilena de Oliveira. Biocidas: suas propriedades e seu histórico no Brasil. Caminhos de Geografia 3(10)26-40, 2003. 
Disponível em: 

PASCHOAL , Adilson. Pragas, praguicidas e a crise ambiental: problemas e soluções. Rio de Jeneiro: FGV, 1979. 102 p. 

ZURLO, C.; BRANDÃO, M. As Ervas Comestíveis -Descrição, Ilustração e Receitas. 2 ed. São Paulo: Editora Globo, 1990. 167 p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário