sábado, 26 de março de 2022

OS 250 ANOS DE PORTO ALEGRE PERTENCEM À POPULAÇÃO E NÃO AOS GOVERNANTES DE PLANTÃO: contra a venda do patrimônio público e as “boiadas” que degradam nosso meio ambiente

            Nas comemorações dos 250 anos da cidade de Porto Alegre, vimos trazer a público e ao prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, nosso protesto quanto a um conjunto de descasos e enfraquecimentos deliberados da gestão ambiental, que incluem a venda do patrimônio público da capital do Estado. Entretanto, um dos pontos de esquecimento de parte do governo, nesta data, é que o território de nossa cidade já era habitado por povos indígenas, há milhares de anos.

Os retrocessos na área ambiental da Prefeitura Municipal (PMPA) são vários, representados não somente pelo enfraquecimento da estrutura de gestão ambiental, já referida como “apagão” na área, em documento elaborado por diversas entidades, em 11 de fevereiro de 2021, encaminhado à prefeitura, mas nunca respondido tanto pelo chefe do executivo municipal quanto pelo chefe da pasta de meio ambiente.  

Foto do Centro da cidade de Porto Alegre. Foto do Diagóstico Ambiental de Porto Alegre. Paulo Renato Backes, 2008.

Um dos principais itens reivindicados no documento acima citado é justamente a ausência de prioridade na área ambiental, enquanto é constatada como prioridade pelo mercado imobiliário, onde, na crista da onda neoliberal, privatizam-se espaços e patrimônios públicos, mantendo um ambiente de negócios e clientelismo também nos espaços de poder da cidade.

Ou seja, um dos principais eixos da administração municipal, em consonância com a maioria dos membros da Câmara de Vereadores, se traduz no ataque à proteção do meio ambiente, como estratégia de fortalecer grandes setores econômicos e seus oligopólios, com visão e práticas gananciosas e imediatistas.

O processo acelerado de desmanche da proteção da área ambiental do município de Porto Alegre vem, pelo menos, desde o governo de Nélson Marchezan Jr., e se consolida hoje. Recentemente o executivo elaborou e encaminhou um projeto de lei que permite a venda do prédio da Primeira Secretaria Municipal do Meio Ambiente do Brasil, fundada em 1976, junto com mais de 90 outros próprios municipais. A proposta representará um ataque à estrutura física da prefeitura e também maior dependência financeira do setor privado que providenciará, então, alugueis - com nosso dinheiro - para sediar áreas de serviços públicos essenciais, até então em imóveis públicos. Cabe lembrar, entretanto, que há cerca de um ano, o secretário de meio ambiente, Germano Bremm, havia declarado publicamente a permanência da Biblioteca Municipal na sede da SMAMUS, após protestos e mobilizações contra a ideia de retirarem, da sede da Secretaria, um dos maiores acervos de publicações ambientais do Estado. Por outro lado, já funciona com maior ênfase um escritório de licenciamentos ou balcão de licenças em áreas fora da SMAMUS.

No início da atual gestão municipal, em 2021, o prefeito Sebastião Melo modificou o nome, o caráter e a atribuição da SMAM, passando para ser chamada de Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, SMAMUS, por meio da aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) n. 001/21. A área de urbanismo não consta no marco da legislação ambiental brasileira, ou seja, a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) define o papel central do órgão de meio ambiente nas políticas e na gestão do tema. Tal mudança não passou por consulta ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) e à população porto-alegrense. A inclusão de urbanismo, ou infraestrutura urbanística, no órgão ambiental destrói a autonomia da pasta de meio ambiente, principalmente no que tange ao licenciamento, criando conflito de interesse com relação ao poder de Estado e dos serviços públicos entregues de bandeja a grandes grupos econômicos do setor imobiliário e da construção civil.

Torna-se evidente a submissão da administração à lógica da expansão urbana predatória, carro chefe desta e das últimas gestões da Prefeitura de Porto Alegre. A administração municipal retoma, na prática, a extinção da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, desejo explícito do ex-prefeito. Coincidentemente, ou não, o secretário da SMAMUS é o mesmo do governo anterior, a despeito do ex-prefeito ter sido derrotado na eleição de 2020.

Na esteira de fragilização do poder público na gestão ambiental, a prefeitura vem levando a cabo, de forma atropelada, leis de flexibilização ambiental. Em destaque, podemos citar o Licenciamento Ambiental por Compromisso (LAC), ou Autolicienciamento, contestado pela Procuradoria Geral da República (PGR) no Supremo Tribunal Federal (STF), pois tenta retirar o papel constitucional intransferível dos órgãos de Estado no licenciamento, o que resulta em benefícios evidentes a setores econômicos.

Outras iniciativas de perversidades, em meio a Covid-19, têm relação à modificação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), sem a possibilidade da realização de reuniões presenciais e participação da população, situação que motivou recomendações do Ministério Público Estadual para que fosse interrompido o processo de mudanças no PDDUA, em meio ao quadro da pandemia, tornando-os mais permissivos à especulação imobiliária.

Neste aspecto, destacamos projetos urbanísticos em áreas da orla e áreas naturais, que se consolidou por meio do PLC 016/2020, favorecendo o grande empreendimento imobiliário Fazenda Arado Velho. A nova lei, que atropela os órgãos de meio ambiente, permite a ocupação urbana adensada numa das maiores Áreas de Proteção ao Ambiente Natural (APAN) da Zona Sul de Porto Alegre.  Trata-se de um empreendimento com 426 hectares (10 vezes a área do Parque Farroupilha), com predomínio de ecossistemas naturais, ocupação de comunidade guarani e paisagem rural, especialmente na Ponta do Arado, transformada em Área de Uso Intensivo. Este projeto visa sua implantação urbanística com mais de 2 mil residências de alta e média classe, com muito concreto e asfalto, na última maior área verde natural do bairro Belém Novo. Pode expulsar ocupação secular de território do povo Guarani, destruindo também Áreas de Preservação Permanente da orla do Guaíba, como banhados, matas, restingas e campos nativos, que abrigam muitas espécies de flora e fauna ameaçadas de extinção, protegidas pela Lei da Mata Atlântica (Lei Federal 11.428/2006) e Lei Orgânica de Porto Alegre. 

Da mesma forma, outras investidas de parte da prefeitura tentam facilitar a ocupação privada de áreas da orla do Guaíba, especialmente em áreas públicas no Cais do Porto, ou outras áreas descaracterizando a paisagem, por meio de altas edificações, como no caso de empreendimentos ou torres elevadas junto ao Esporte Clube Internacional, em área de aterro público realizado na década de 1970, junto à avenida Padre Cacique.

No clima da entrega do patrimônio público, recentemente, a PMPA deu continuidade à transferência de 80% da propriedade do terreno, com áreas naturais, do Parque Municipal Saint-Hilaire à prefeitura de Viamão, que não tem recursos e capacidade de gerenciar a área de enorme relevância em proteção à biodiversidade e também ao lazer. A prefeitura de Porto Alegre desvencilhou-se de um patrimônio público que que correspondia a maior área verde de próprio municipal, em área que representa cerca de 20 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. A Prefeitura Municipal de Porto Alegre já vem, desde a administração anterior, elaborando esta proposta de entregar este patrimônio natural, à outra prefeitura vizinha, junto com a Câmara de Vereadores, sem ao menos consultar a área técnica da Secretaria de Meio Ambiente nem mesmo o COMAM.

Outro aspecto que consagra o esvaziamento da histórica Secretaria Municipal de Meio Ambiente é a manutenção do fechamento das Zonas de Arborização, além da permissão de mutilações e cortes indiscriminados de árvores, denunciados semanalmente pela população, com o simultâneo abandono do Plano Diretor de Arborização Urbana, praticamente abandonado também pela aposentadoria, sem reposição, de técnicos na área. Apesar da declaração de compromisso do atual prefeito em retomar o Viveiro Municipal, o contingente de funcionários é insuficiente para uma produção com qualidade de mudas de árvores nativas e outras plantas que compõem a biodiversidade do município.

Por outro lado, a manutenção de praças e parques e o manejo de árvores em locais públicos, que deveria ser atribuição da SMAMUS, segue sendo realizada pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSURB). A nova (des)estrutura da secretaria de meio ambiente, além do desvio de sua finalidade, teve prejuízos na gestão ambiental municipal, sendo a parte da arborização a mais evidente, com a transferência de funções para outra secretaria que promove a poda, a supressão e a intervenção drástica na vegetação urbana.

A aposentadoria progressiva, sem reposição, e a crônica ausência de técnicos concursados na área ambiental, com os últimos concursos públicos realizados há cerca de 25 anos, facilita a terceirização e a mistura entre interesses privados e públicos, o que não é concebível na área ambiental. Os técnicos que analisam pedidos de licenças têm que ter estabilidade, autonomia, tempo suficiente para analisar processos de requerimentos e possuir liberdade de julgamento e decisão.

No que toca ao Fundo Pró-Ambiente do Município (FUNPROAMB), que obtém recursos de multas e visa a compensação de danos ambientais, correspondendo a muitos milhões de reais que deveriam ser investidos em projetos especiais de proteção ambiental, o mesmo continua sendo alvo de tapar buracos do orçamento da prefeitura. Permanece há 5 (cinco) anos o cancelamento do último Edital Público (2016) que contemplava projetos de entidades ambientalistas, para a melhoria da proteção e gestão ambiental. Infelizmente, tal fundo atualmente configura desvios de sua finalidade, em áreas de custeio de atividades diárias, que vão desde a varrição de praças, investimento de concreto em áreas verdes e a manutenção do Cemitério Municipal. Enquanto isso, as Unidades de Conservação, que não recebem os aportes devidos do orçamento da PMPA, esperam há anos, quase sem sucesso, para receber os recursos do FUNPROAMB. Lembrando-se das Unidades de Conservação Municipais têm seus Conselhos Consultivos também desfeitos há mais de dois anos.

Na área de meio ambiente urbano, rural ou natural do município, torna-se também evidente a continuidade do esvaziamento de atividades como a fiscalização do ambiente natural, mesmo frente à grilagem de terras e loteamentos ilegais no extremo sul do município, corte indiscriminado de árvores, a fragilização da Educação Ambiental por parte do quadro da SMAMUS e demais secretarias associadas ao tema, em especial a SMED, onde a Educação Ambiental foi desfeita junto com a desvalorização constantes dos professores municipais, nestas últimas gestões.

No que se refere ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM), desde meados de 2017, a partir da gestão do prefeito Marchezan Jr., houve um Edital que excluiu a representatividade das entidades ambientalistas, reunidas há mais de três décadas em seu fórum legítimo, a Apedema. Este processo, que incorporou um sorteio, ou “bingo”, à semelhança de iniciativa do governo Bolsonaro, em esvaziar o CONAMA, segue atualmente na gestão do Prefeito Sebastião Melo. A intenção é tirar a autonomia e combatividade das entidades que representam a sociedade e alinhar outras entidades, que não representam o setor, aos pleitos da prefeitura e dos setores econômicos que lhe dão apoio.

O Conselho do Plano Diretor Urbano e Ambiental (CMDUA) também é submetido à pressão governamental para aprovações repentinas de projetos altamente questionáveis, em processos de modificações estruturais que envolvem o regime urbanístico de áreas do município ou mesmo em temas que impliquem em facilitação de licenciamentos de projetos de lei ligados à área ambiental enviados à Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

Que município e que cidade queremos?

Porto Alegre é um município de cerca de 49 mil hectares, que envolve áreas urbanas, rurais e naturais, e conta com muita história, cultura e sociobiodiversidade. Temos que comemorar a beleza paisagística dos morros graníticos, bordeados de formações florestais de Mata Atlântica, ponteados de nascentes e coroados por campos nativos do Pampa, cortados por arroios que vão desembocar na excepcional paisagem da orla do rio-lago Guaíba, com suas lindas praias e vegetação de restingas, fortemente ameaçadas por condomínios fechados, grandes empreendimentos que destroem biodiversidade e paisagem.

Imagem do Morro da Extrema, foto de Paulo R. Backes, no Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre, 2008. 

Lembremos que aqui surgiu o Fórum Social Mundial, por um Outro Mundo Possível e cada vez mais Necessário. Aqui surgiu a primeira Secretaria Municipal de Meio Ambiente e a primeira Reserva Biológica do Brasil. Não por acaso, aqui nasceu a entidade ambientalista mais antiga do país, a AGAPAN. Assim, não vamos deixar de comemorar as conquistas da sociedade, com alegria, junto aos porto-alegrenses, e os 250 anos de Porto Alegre pertencem à população e não aos governantes de plantão.

Queremos uma estrutura pública de gestão da cidade que fortaleça os órgãos públicos, sem a venda do nosso patrimônio, mantendo o histórico de órgãos que muito contribuíram para a qualidade de vida dos habitantes humanos e não humanos da cidade, como o DMAE, o DMLU, a SPM, a SMAM e suas Zonais, a SMED, a SMS, o DEMHAB, entre outros setores hoje esvaziados pela lógica da  terceirização, estado mínimo e negócios máximos.

Temos que promover uma inversão de prioridades, com retorno de ênfase na urbanização em áreas mais centrais, com infraestrutura já consolidada, e não a extensão de infraestrutura, hoje inexistente, para áreas que são alvo da especulação imobiliária, mas têm vocação para a manutenção de paisagem natural, biodiversidade, produção rural orgânica e agroecológica. Destacamos a importância da constituição de um Cinturão Verde no Município, tema que foi um dos eixos da última Conferência Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre[1].

Este patrimônio natural e histórico-cultural pode gerar maior autoestima à população que aqui vive, turismo ecológico e rural, incremento da cultura local e do turismo que incentiva a valorização de diferenciais locais, nos aspectos típicos da capital. Lembremos de alguns diferenciais de Porto Alegre, no tocante ao aspecto histórico, das construções antigas da Cidade Baixa, no Cais do Porto, Cultural e Público, na Zona Rural que é importantíssima para a agroecologia e a menor dependência de alimentos, que vêm de fora e com resíduos de agrotóxicos. Nossa capital é uma das que mais reúne número de morros (44), a maior quantidade de feiras agroecológicas e orgânicas do País e possui também os Caminhos Rurais, que são uma estratégia de mostrar aos habitantes da capital e aos que vêm de fora de que aqui não precisamos do concreto para o convencional e questionável modelo de desenvolvimento, que concentra, degrada a biodiversidade, descaracteriza a paisagem e cria desigualdades.

Assinam:

-       Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais - InGá

-       Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - Agapan

-       Associação de Mães e Pais pela Democracia

-       Coletivo Ambiente Crítico

 


[1] https://www2.portoalegre.rs.gov.br/smam/default.php?reg=9&p_secao=279

 

segunda-feira, 14 de março de 2022

DIA INTERNACIONAL DE LUTA CONTRA AS BARRAGENS: A Bacia do Rio Uruguai sofreu 115% de aumento de hidrelétricas, em oito anos.

Paulo Brack, Eduardo Luís Ruppenthal e Ismael Verrastro Brack (14/03/2022)

O dia 14 de março vem sendo comemorado pelos movimentos do mundo inteiro, e aqui no Brasil capitaneado pelo Movimento pelos Atingidos pelas Barragens (MAB)[1] e por movimentos ambientalistas, há algumas décadas. Sempre vale a lembrança, a reflexão e o protesto contra a construção de hidrelétricas e outras barragens que destroem rios e causam grandes impactos ambientais. As estimativas reconhecidas por organizações como a Comissão Mundial de Barragens[2], há quase 20 anos, era de que mais de um milhão de pessoas teriam sido expulsas de suas terras, na beira dos rios, para a construção de milhares de barragens, com incomensuráveis impactos sobre povos ribeirinhos, modos de vida e acentuada ameaça de extinção de ecossistemas de margens de cursos de água e suas respectivas espécies de flora e fauna.



No Brasil, grandes obras hidrelétricas foram planejadas e construídas em meio ao período da ditadura civil-militar de 1964, principalmente na década seguinte. Megaobras, com tecnocracia associada, sempre foram criticadas por ambientalistas como os gaúchos José Lutzenberger e Sebastião Pinheiro. As principais hidrelétricas que destruíram florestas e expulsaram enorme contingente de pessoas foram: Tucuruí (285 mil hectares), Balbina[3] [4] (236 mil hectares) e Itaipu (135 mil hectares). As duas primeiras foram construídas na Amazônia, onde muitas dezenas de povos indígenas e centenas de comunidades tradicionais foram expulsas, inclusive com o uso de herbicidas semelhantes ao agente laranja, utilizado na Guerra do Vietnam, sobre a floresta e suas comunidades. A madeira era tanta que quase toda ficou embaixo d’água, gerando gases de efeito estufa[5]. Balbina, com uma área equivalente a 4,5 vezes o território do município de Porto Alegre, gera quase nada ou o equivalente ao Parque Eólico de Osório, no Rio Grande do Sul. Atualmente, durante o dia, a geração de energia fotovoltaica, em grande parte mais descentralizada do que as grandes obras, já equivale à produção de energia de Itaipu[6]. Estimativas dão conta de que há mais de 400 usinas hidrelétricas na Amazônia operando, planejadas ou em construção.


Foto da National Geographic - https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2019/07/novas-hidreletricas-na-amazonia-ignoram-normas-e-causam-estragos-ambientais


Célio Bermann, professor da USP que conhece profundamente o tema, sempre denunciou a origem autoritária do planejamento de empreendimentos de geração de energia, em especial as hidrelétricas. A visão autoritária, que exclui a sociedade na participação do Conselho Nacional de Política Energética, segue até hoje, a despeito do avanço dos marcos legais e de acordos internacionais que dão amparo à manutenção da sociobiodiversidade, destacando-se aqui a Política Nacional de Meio Ambiente, que fez 40 anos, em 2021, a Constituição Federal de 1988 e a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) que surgiu há 30anos, justamente no Brasil, durante a Rio 92.
A produção de energia e a proteção da biodiversidade não se conversam [7]. Em 2014 constatamos que mais de 60% das centenas de hidrelétricas previstas para a construção ou mesmo em construção no Brasil coincidiam com as Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (Portaria MMA, n. 9 de 23 de janeiro de 2007), sendo que 25% em áreas de Extrema Importância. Transcrevemos aqui as palavras do Professor Célio Bermann: “Sob a influência de grandes grupos econômicos, nacionais e internacionais, e seus aliados políticos, que formam a base da ‘indústria das barragens’ (dam industry) no Brasil, o governo federal construiu um sistema elétrico que prioriza fortemente a geração hidrelétrica, estimulando subsetores industriais e atendendo o suprimento a determinados setores em detrimento de outros”. De certa forma, também, Bermann destacou que setores chamados eletro-intensivos, de materiais semimanufaturados para a exportação, como as produções de alumínio, minério de ferro, pasta de celulose e cimento, que geram baixo valor agregado em seus produtos, demandam grande quantidade da energia elétrica, além da ausência de programas de uso eficiente e racional de energia. Na realidade, o setor privado de geração não admite redução de lucros e, ao contrário, tem interesse no crescimento exponencial e infindável de consumo, bem como no crescimento irrestrito de fontes de geração, inclusive de hidrelétricas.

A geração de energia elétrica, que deveria ser descentralizada e diversificada, além de prezar pela busca honesta de diálogos e o reconhecimento dos direitos dos atingidos, até hoje nunca foi tema de preocupação de parte dos governos. Infelizmente, como agravante, no atual processo de privatização do setor elétrico, tendo como foco central hoje a empresa pública, Eletrobrás, aprofunda-se ainda mais o problema do uso racional e do acesso social à energia elétrica com um recurso essencial e não uma mera mercadoria.

Fontes de produção de eletricidade no Brasil, com dados de 2019


Infelizmente, desde a primeira década de 2000, várias obras de hidrelétricas foram resgatadas do portfólio do regimemilitar da década de 1970, como o caso das malfadadas hidrelétricas de Belo Monte (rio Xingu), Jirau e Santo Antônio (rio Madeira), Teles Pires (rio Tapajós), entre outras[8]. No caso da Amazônia, que se configura como a grande fronteira de construção de hidrelétricas devastadoras de ecossistemas e de modos de vida em meio à floresta, associadas a grandes empreiteiras e com investimentos de fundos de pensão, os impactos diretos e secundários também são imensos, atraindo um sem número de migrantes e empreendedores do minero-negócio e do agronegócio predador sobre a Amazônia.

Aqui no sul do Brasil, fomos testemunhos da maior destruição de florestas com Araucária, formação da Mata Atlântica, em um dos maiores corredores ecológicos para a Floresta Estacional Decidual do vale da bacia do rio Pelotas-Uruguai. Foram 6 (seis) mil hectares engolidos por uma hidrelétrica chamada Barra Grande, no norte do Estado, entre os municípios de Pinhal da Serra (RS) e Anita Garibaldi (SC). O licenciamento ambiental desta maior obra de destruição da Mata Atlântica no Sul do Brasil esteve associado a denúncias comprovadas de graves omissões e fraudes imputadas à empresa Engevix, responsável pelo EIA-RIMA, resultando na emissão leviana de licenças ambientais.

Além de 1200 famílias de pequenos agricultores familiares e ribeirinhos expulsos, houve, entre tantos danos à biodiversidade, a supressão de 5 milhões de árvores, correspondendo a cerca de um milhão de metros cúbicos de madeira. A maior parte da madeira tampouco foi aproveitada. Mais de 200 mil araucárias, a maior parte adultas, sucumbiu com o empreendimento. Da mesma maneira, milhares de espécies de flora e fauna desapareceram irreversivelmente ou por fuga para outras áreas nem sempre nas mesmas condições ou afogadas em uma área de mais de 9 mil hectares do lago de Barra Grande. Uma espécie endêmica de bromélia (Dyckia distachya) perdeu seus últimos habitats naturais de beira de rios.


Dyckia distachya, bromélia exclusiva de afloramentos rochosos em beira do rio Pelotas-Uruguai, vem perdendo quase toda a sua área de ocorrência pela construção de hidrelétricas.


Colaborou para o crime ambiental da UHE Barra Grande a terceirização de parte do licenciamento do Ibama, quando da emissão das Licenças Prévia e de Instalação, em 1999 e 2001, respectivamente. No mesmo período, o então governo (FHC) iniciou a privatização do sistema elétrico brasileiro, que segue se aprofundando atualmente. Tampouco, infelizmente, a Eletrobrás esteve preocupada com questões socioambientais. Mas a privatização visa retirar qualquer papel de soberania e de controle social, entregando-se a energia elétrica concentrada ao lucro das empresas privadas, em grande parte transnacionais.


Foto de Márcio Repenning. Alagamento decorrente da UHE Barra Grande

Em relação às hidrelétricas do rio Uruguai, que não constam nos dados da ANEEL (foram temporariamente retiradas), as maiores obras previstas para o rio, as UHEs de Garabi e Panambi, juntas, formariam dois lagos que, no total, alcançariam uma área de quase 100 mil hectares, ou o dobro da Usina de Belo Monte. Tais empreendimentos correspondem a riscos imensos à sociobiodiversidade, já que destruiriam as últimas matas ciliares da região do Noroeste do RS, além das corredeiras do rio, condição necessária para a eficiente oxigenação das águas e também condição para a piracema do dourado e outras tantas espécies de peixes. As águas paradas estão trazendo os fenômenos comuns de explosão de cianobactérias, que liberam substâncias tóxicas, em corpos de água praticamente sem movimento, ou mesmo proliferação de animais exóticos invasores como o mexilhão-dourado[9]. O rio Pelotas-Uruguai e dezenas de tributários estão morrendo pelos barramentos, pela eutrofização decorrente da agricultura que joga alta carga de nutrientes nos lagos das barragens e também pelos agrotóxicos.

Cabe lembrar que o empreendimento, de responsabilidade da Eletrobrás (Brasil), com participação da empresa Engevix, e Ebisa (Argentina), teve seu processo paralisado desde 2015 por força de uma liminar na Justiça Federal. Em abril de 2021, o processo foi julgado, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), uma ação de parte dos Ministério Público Federal e Estadual, com amicus curiae formado por advogados de entidades ambientalistas, que obteve decisão favorável à manutenção da interrupção, por parte daEletrobrás, em levar adiante o Projeto da Hidrelétrica de Panambi, no município de Alecrim, fronteira com a Argentina. Em termos práticos, pela existência do Parque, existe o impedimento dos estudos do Complexo Hidrelétrico Garabi-Panambi. UHEs que atingem, só do lado brasileiro, mais de 19 municípios gaúchos, inclusive de inundar cidades como Porto Mauá, em mais de 85% de seu território. Números estimados apontam para milhares de famílias atingidas.

Hidrelétricas previstas ou em construção na época do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em 2010. A política energética seguirá dependendo de mega-obras para justificar a "retomada do crescimento" econômico, concentrador e que desconsidera a sociobiodiversidade e a necessidade de uso racional de energia? 


Mesmo assim, Eletrobrás, o IBAMA e a União (AGU), sob gestão do governo de Jair Bolsonaro (PL), seguem apelando para instâncias superiores a continuidade do processo de licenciamento desta hidrelétrica, junto com o projeto da UHE Garabi. Cabe lembrar que a existência de hidrelétricas acima, já alteram significativamente a vazão do rio Uruguai, alterando a dinâmica hídrica e que afeta o Salto do Yucumã, sendo que não há mais previsibilidade natural de visualização, dependendo da abertura ou não das comportas, principalmente da UHE Foz do Chapecó, afetando a biodiversidade, a pesca e o turismo na região, forte e com enorme potencial devido a toda a beleza cênica do Salto, a maior queda longitudinal do mundo, com mais de 1.800 metros de extensão, uma das sete maravilhas naturais do RS.


Salto do Yucumã, Parque Estadual do Turvo, fronteira entre Brasil e Argentina


Com relação à bacia do Rio Uruguai (RS e SC), em 2014, tínhamos um número de 278 empreendimentos hidrelétricos previstos para a região e 71 hidrelétricas construídas ou em construção (59 PCHs e 12 UHEs). Atualmente, com base em dados obtidos no Sistema de Geoprocessamento da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), neste dia 14 de março de 2022, obtivemos dados de um número de 148 hidrelétricas construídas (84 CGHs, 51 PCHs, 13 UHEs). Houve, portanto, um aumento do número de empreendimentos hidrelétricos na bacia do rio Uruguai de 115,5%, desde 2014 até o presente, ou seja oito anos mais que dobrou o número de hidrelétricas na bacia.


Hidrelétricas na Bacia do Rio Uruguai, conforme a ANEEL (14-03-2022). Em vermelho, planejadas, em verde, em Operação e em laranja, em Construção. Mapa edados das hidrelétricas montado por Ismael Verrastro Brack


Ficam então as perguntas: qual a capacidade de suporte de tantos empreendimentos para manter as matas ciliares, e evitar a extinção de espécies de peixes como o dourado, o grumatã, o surubim ou mesmo outras mais de uma centena de espécies ameaçadas de extinção de flora e fauna na bacia? Quantas milhares de pessoas mais serão expulsas de suas terras para empreendimentos que dependem de rios caudalosos e que sofrem cada vez mais com as secas?

Apesar do quadro altamente preocupante, neste momento que se comemora 30 anos da Rio 92 (10 anos da Rio+20) e na antevéspera de eleições nacionais, este assunto é fundamental, agregando-se a problemática das demais barragens que se rompem ou podem se romper, em áreas de rejeitos de mineração por grandes empresas como a Vale, cuja negligência criminosa provocou a morte de 300 pessoas nas áreas de rejeitos de Brumadinho e Mariana (MG). Os rios e seus modos de vida diversos, humanos e não humanos, não podem morrer [10]!!

Por Rios Livres de Barragens! Pelas Águas e Natureza como Bens Públicos! Pelas Populações Ribeirinhas, e Toda Sua Sociobiodiversidade! Por Outro Modelo Energético Descentralizado, Sem Megaobras e Sem Concentração de Capital! Por Outro Modelo de Economia que Atenda às Pessoas, e Seja Compatível com a Sustentabilidade dos Processos da Ecosfera!


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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A POLUIÇÃO LUMINOSA E A BIODIVERSIDADE

Paulo Brack

Plantas e animais dependem do ciclo diário (circadiano) de luz e escuridão que regem os comportamentos que sustentam a vida, como reprodução, migração, nutrição, sono e proteção contra predadores. Evidências científicas comprovam que a luz artificial à noite tem efeitos prejudiciais e até mortais em muitas criaturas, com destaque a anfíbios, répteis, aves, mamíferos, insetos e plantas. A intensa luminosidade artificial decorrente de atividades antrópicas representa efeitos negativos ao ciclo circadiano dos animais, implicando em alteração do comportamento e possibilidade de aumento de mortes de animais atraídos pela luz, o que pode ser enquadrado como poluição luminosa.



A poluição luminosa, de acordo com Longcore e Rich (2004), pode ser dividida empoluição luminosa astronômica”, que obscurece a visão do céu noturno, atingindo de uma forma dispersa, e “poluição luminosa ecológica”, que altera os regimes de luz natural em ecossistemas terrestres e aquáticos. Segundo estes autores, algumas das consequências catastróficas da luz para certos grupos taxonômicos (espécies de flora, fauna, etc.) são bem conhecidas, como mortes de aves migratórias em torno de postes iluminados e de tartarugas marinhas recém-nascidas desorientadas pelas luzes em suas praias para nidificação.

A poluição luminosa, ou também fotopoluição, é causada principalmente pela iluminação pública de ruas, parques, edifícios e pelas luzes dos veículos (Longcore e Rich 2004). De acordo com documento de Henrique Paranhos Sarmento Leite (2021), a poluição luminosa se caracteriza pelo "uso excessivo ou indevido da iluminação artificial, em níveis capazes de causar efeitos adversos à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, suas atividades sociais e econômicas ou à biota". Quanto aos impactos à biodiversidade, centenas de estudos vem demonstrando que a poluição luminosa causa um conjunto diverso de perturbações sobre respostas biológicas como nos casos de padrões migratórios, seleção de habitats, comunicação animal, reprodução, ritmo circadiano, fuga de predadores, fenologia ads plantas.

Para se conhecer os efeitos do excesso de luminosidade nos ecossistemas há que se levar em conta os efeitos em muitos organismos que possuem vida noturna em florestas e em outros ambientes naturais. Infelizmente, os seres humanos, que vivem em ambientes urbanos profundamente artificializados, não se dão conta de que os ecossistemas naturais estão desaparecendo, por sua influência, e com eles cresce a ameaça de extinção de espécies. O Painel Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês), ligado a ONU, estima a existência de cerca de 1 milhão de espécies ameaçadas de flora e fauna no mundo[1]. No RS, existe uma lista oficial de 280 espécies de fauna ameaçada (Decreto Est. n. 51.797/2014)[2] e 804 espécies da flora nestas condições (Decreto Est. n. 52.109/2014)[3].  A fragilidade é evidente, então cabe seguirmos o Princípio da Precaução que não agrave a situação de nossa biodiversidade. A expansão sem limites de iluminação artificial noturna pode não causar, sozinha, a extinção de espécies, mas agrava a situação.

A expansão de urbanização traz consigo o impacto da poluição luminosa associada ou não a outros impactos, como poluição sonora e outras modalidades de poluição. A região do RS que mais vem crescendo em urbanização, com oscilação de população maior no verão, é o Litoral Norte (BRACK, 2006). É importante destacar que existem ecossistemas bem ricos em diversidade biológica no Litoral Norte[4], e que estão em estado crítico tanto no Rio Grande do Sul[5] como também é o caso do       Litoral Sul de Santa Catarina. Estes ecossistemas pertencem às Zonas Costeiras, consideradas como Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988, fazendo parte da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal n. 11.428/2006) [6], caracterizadas no mapa do IBGE (2004), como Formações Pioneiras, englobando diferentes habitats, não somente florestais. Dunas e diferentes tipos de vegetação de restingas (complexo de ecossistemas sobre a Planície Costeira) possuem comunidades animais e vegetais em equilíbrio ecológico ou próximos deste equilíbrio. Alguns animais mais comumente conhecidos em nossas matas são noturnos ou predominantemente de hábitos noturnos, como gambás, gatos-do-mato, corujas-buraqueiras, morcegos (destacando-se os frugívoros dispersores de sementes), bacuraus, sapos, pererecas, invertebrados, entre outros, alvos da poluição luminosa. Há que se considerar que animais diurnos dormem durante a noite, sendo que a iluminação artificial noturna tem impacto ao período de sono ou descanso dessas espécies.

No caso de plantas, o fotoperíodo que as afeta, definido pela relação de horas de escuro/claro, vai determinar o período do ano de fenômenos fenológicos (eventual queda biológica de folhas, florescimento, formação de frutos). O fotoperíodo altera a fenologia, acelerando ou alterando o período de florescimento, frutificação e queda de folhas, por exemplo, segundo Bennie et. al. (2016).

No caso de insetos, ocorre a atração em massa de diferentes organismos pelos holofotes em áreas próximas ao seu habitat. Alguns morcegos seguem em grandes quantidades os insetos voadores, principalmente na proximidade de lâmpadas. Sapos também são atraídos para busca de insetos junto a lâmpadas. De certa maneira, a luminosidade em áreas predominantemente urbanas tem efeito mais restrito, até porque a diversidade de fauna é baixa. Mas, mesmo assim, aves, como o sabiá (Turdus rufiventris), em áreas urbanas com iluminação artificial, vêm cantando em horas mais cedo do que o normal, como a partir das 3h ou 4 h da manhã[7]. Situações como essa alcançam outras aves, mas faltam estudos sobre o tema, atualmente.

Animais noturnos dormem durante o dia e são ativos durante à noite. A poluição luminosa altera radicalmente seu ambiente noturno, transformando a noite em dia. De acordo com o pesquisador Christopher Kyba, para os animais noturnos, “a introdução da luz artificial provavelmente representa a mudança mais drástica que os seres humanos fizeram em seu ambiente[8]. Segundo o Sítio-e Dark Skies Ranger, onde é citada a fala de Christopher: “próximo das cidades, o céu nublado é centenas ou milhares de vezes mais brilhante do que há 200 anos. Este fato pode ter um efeito drástico na ecologia noturna, por exemplo ao favorecer os animais predadores que usam a luz para caçar e ao prejudicar as espécies que usam a escuridão para se esconder” (grifo nosso).

            A iluminação artificial intensa e crescente nas circunvizinhanças de ambientes naturais provoca imensa alteração no ciclo circadiano de vários animais. No caso do Litoral, onde cresce a urbanização de uma forma descontrolada e desenvolvem-se múltiplas iniciativas para atrair turistas e veranistas, há que se considerar que determinados impactos ambientais, inclusive a poluição múltipla decorrente de atividades de turismo crescente em remanescentes de ecossistemas naturais, como as matas de restinga, dunas e diferentes formas de vegetação com flora e fauna nativas.

Qualquer iniciativa que implique desenvolvimento de empreendimentos públicos ou particulares que envolvam projetos de iluminação artificial, principalmente durante o veraneio, em que animais estão em mais intensa atividade, poderá ter impactos ambientais múltiplos com alteração no comportamento ou mesmo aumento de risco de desaparecimento de espécies raras e ameaçadas extinção. A implantação ou incremento de iluminação artificial poderá afugentar, diminuir a reprodução ou causar mudanças radicais no comportamento de espécies que estão em declínio populacional no litoral, inclusive pelo avanço urbano nos balneários. Ou seja, evitar-se o aumento de fontes luminosas é também auxiliar a proteger a natureza. 

O astrônomo Falchi Fabio (https://www.ecycle.com.brafirma que os níveis da luminosidade artificial podem ser milhares de vezes mais elevados se comparados com o ambiente noturno sem lâmpadas. Essa luminosidade, principalmente proveniente de centros urbanos, vem afetando processos naturais de acasalamento, migração, alimentação e polinização das espécies, sem que elas tenham tempo de se adaptar.

A iluminação noturna altera comportamentos de animais silvestres, inclusive em processos fundamentais ligados à regeneração da vegetação, como no caso da dispersão de sementes por aves, morcegos, gambás, cuícas e demais marsupiais, além de outros animais. Da mesma forma, a poluição luminosa altera comportamentos e prejudica animais silvestres considerados predadores de insetos, como no caso de sapos, répteis, aranhas, etc. Polinizadores, com estaque a lepidópteros e himenópteros poderão ser atraídos pela luz artificial e também prejudicar o êxito na fecundação das flores e reprodução de vegetais. A defaunação ou desaparecimento ou diminuição drástica de fauna de florestas e demais ecossistemas é um fenômeno cada vez mais atual, provocado por impactos de atividades humanas, que deixa florestas e outros ecossistemas naturais vazios em fauna. 

É importante destacar que aves do litoral, como no caso de garças, que costumam ter hábitos gregários (juntas) se abrigam à noite na copa de árvores, e de dia são vistas pescando junto ao mar ou em enseadas de sangradouros, arroios ou mesmo rios que desembocam no mar.

Muitos pássaros, também atraídos pelas luzes artificiais, saem do seu curso migratório e morrem ao colidirem com construções humanas, como por exemplo, os outdoors luminosos, que também matam milhares de insetos.

Segundo o Projeto Tamar, a implantação de luz artificial principalmente nas praias, acompanhada pela expansão urbana descontrolada sobre o litoral, vem prejudicando tartarugas marinhas em seu processo de desova, atingindo assim fêmeas e filhotes. As fêmeas acabam por alterar seus locais de desova, devido à iluminação inadequada nas praias. E no caso dos filhotes, podem ficar desorientados logo após a eclosão dos ovos, e saírem de seus ninhos. Comumente, em vez de seguirem para o mar, guiados pela luminosidade natural do horizonte, acabam rumando para o continente, atraídos pela iluminação artificial. Também, na sequência, muitas vezes são alvo de atropelamento, pisoteio não intencional ou mesmo sendo devorados por predadores como cães que vagueiam sem dono nestes locais.



O que fazer?

Tanto no que se refere à fotopoluição atronômica como para a poluição luminosa ecológica, segundo declaração do professor Enos Picazzio[9], do Departamento de Astronomia da USP, duas frentes são fundamentais para mudar o cenário de fotopoluição no Brasil:  a educação e a legislação, criando-se regras obrigatórias, com punições para quem infligir as mesmas. Entretanto, o professor salienta que o processo precisa contar com o diálogo entre sociedade, setores técnicos, econômicos e ambientais, além da participação do governo.

Também, em relação à fauna e flora, evitar ao máximo a poluição luminosa, mantendo áreas naturais protegidas e desenvolvendo estudos que avaliem o problema e indiquem as melhores condições de habitat para as espécies, prioritariamente, aquelas ameaçadas de extinção.

 Referências.

BENNIE, J., DAVIES, T. W., CRUSE, D., & GASTON, K. J. Ecological effects of artificial light at night on wild plants. Journal of Ecology. 104, 611–620, 2016.

BRACK, Paulo. Vegetação e Paisagem do Litoral Norte do Rio Grande do Sul: patrimônio desconhecido e ameaçado.  In: Encontro Socioambiental do Litoral Norte do RS: ecossistemas e sustentabilidade. Livro de Resumos. Imbé: Ceclimar- UFRGS, p. 46-71, 2006.

DAVIES, Thomas; SMYTH, Tim. Why Artificial Light at Night should be a Focus for Global Change Research in the 21st Century. Global Change Biology, v. 24, Issue 3, p. 872-882, 10 Nov. 2017. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/gcb.13927 . Acesso em: 20 out. 2020.

DIAS, Karina Soares; DOSSO, Elisa Stuani; HALL, Alexander S.;  SCHUCH, André Passaglia; TOZETTI, Alexandro Marques. Ecological light pollution affects anuran calling season, daily calling period, and sensitivity to light in natural Brazilian wetlands. The Science of Nature 106: 46, 2019.

GALLAWAY, Terrel. On Light Pollution, Passive Pleasures, and the Instrumental Value of Beauty. Ecological Economics, v. 69, n. 3, p. 658-665, 15 Jan. 2010.

LEITE, Henrique P. Sarmento. Poluição luminosa: seus impactos sobre a saúde, a segurança, a economia e o meio ambiente – e propostas para a sua regulação no Brasil. Brasília: Câmara de Deputados, 2021. 39 p.

LONGCORE, T., RICH, C. (2004) Ecological light pollution. Front Ecol. Environ. (4):191–198. https://doi.org/10.1890/1540-9295(2004)002[0191: ELP]2.0.CO;2 



domingo, 13 de fevereiro de 2022

Ofício do InGá quanto à Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA) - 11-02-22

 Ofício/InGá/nº02/2022                                                         

Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2022

À Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA) e Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG)

Ao Setores de Justiça e Meio Ambiente do Ministério Público Estadual (MPE)

Assunto: Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA)

Prezados(as) Senhores(as):

       O Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, ONG ambientalista, registrada no CNPJ sob n°03.535.467/0001-24 vem acompanhado, com muita preocupação, a questão Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA). Adiantamos que, em tese, não somos contrários à concessão de alguns serviços, porém a proposta não deixa claro que serviços serão concedidos, nem a base técnica de ponderação da capacidade de carga para o previsível aumento de público.



    Participamos da Audiência Pública Virtual do dia 3 de fevereiro de 2022, porém fizemos várias perguntas não respondidas no ato, sendo meras respostas superficiais ou mesmo se justificado que as mesmas seriam respondidas depois, o que pode ser constatado na gravação do Evento no YouTube: “Audiência Pública – Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre” (https://www.youtube.com/watch?v=SlPoe_I8O9Y&ab_channel=SecretariadePlanejamento%2CGovernan%C3%A7aeGest%C3%A3o ). Inclusive, perguntamos quanto a realização de convite ao Ministério Público Estadual se estava ou não presente no ato, mas não obtivemos resposta, mesmo após a oportunidade de nos manifestarmos virtualmente.

 Quanto ao conjunto de Consultas Públicas referentes às Concessões de áreas de conservação no RS, vimos lembrar que havíamos, de forma semelhante, tanto pelo InGá como por mais de 20 pesquisadores da biodiversidade, encaminhado Ofício à SPGG, em 15 de outubro de 2021 (portanto há quase 4 meses), sobre questionamentos referentes às profundas fragilidades do estudo de modelagem e concessão do Parque Estadual do Turvo. Até hoje não recebemos respostas.  Então, resta-nos a dúvida até que ponto nossas considerações serão minimamente respondidas, neste caso no que toca ao Jardim Botânico de Porto Alegre.

        Causa-nos surpresa que uma Secretaria de Planejamento, Gestão e Governança (SPGG), que não tem atribuição pela gestão tanto da biodiversidade como do meio ambiente, leve a cabo processos de concessões com base em estudos meramente de viés econômico. Ex. no Documento 1, ou PRODUTO 1 – ANÁLISE COMERCIAL E ESTUDO DE DEMANDA – Parte I, a palavra consumo está citada 81 (oitenta e uma) vezes, enquanto as palavras conservação da flora ou espécies ameaçadas da flora (acervo de mais de 150 espécies nesta condição no PBPA), tampouco foram citadas.

Outro problema, que consideramos grave, é o fato de que no que se refere aos documentos disponibilizados, não foi possível verificar-se a composição das equipes técnicas responsáveis por tais estudos, ou seja, não existe menção quanto a autorias, formação técnica e tampouco responsabilidade técnica quanto a essas informações e análises realizadas.

 A Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA), em especial a chefia do Departamento Estadual de Biodiversidade (DBio) desta Secretaria alega que realizou consulta aos técnicos do quadro, ou que os mesmos teriam participado e dado aval aos estudos para a concessão, situação que não foi confirmada. Ao contrário, tivemos contatos com os principais técnicos responsáveis pelas coleções de plantas vivas do JBPA e os mesmos negam ter sido consultados. Além disso, a SEMA não apresentou nenhum documento que avalie tecnicamente a viabilidade, a abrangência da concessão e se existem condições para a dimensão de concessão prevista, já que a proposta preza por atividades de negócios, turismo e consumo, envolvendo valores de preço básico para o leilão acima de 200 milhões de reais.

Em resumo, constata-se a ausência de documentos claros que avaliem de forma técnica e científica a viabilidade deste processo, que tem, neste caso, perfil quase exclusivo de negócios. Melhor dizendo, esperávamos que o governo apresentasse um parecer da área técnica concursada, especializada, não em posições de representantes do governo, não especialista e/ou não concursados, e que podem eventualmente preencher cargos técnicos de chefias, mas com indicações muito mais políticas. Portanto, a suposta garantia da manutenção dos serviços essenciais não tem amparo técnico-científico.

Os documentos apresentados não trazem a preocupação explicita de compatibilizar conservação da flora, manutenção de acervos, pesquisa necessárias, educação ambiental, já que a modelagem, encomendada pelo BNDES, expõe a supremacia dos negócios. A manutenção da categoria A, conforme condição obrigatória presente na Resolução Conama n. 339/ 2003 é incerta. A mudança alegada no Plano Diretor de 2014 do JBPA, realizado em 2021, não tem base técnica e sim teor meramente burocrático para facilitar a concessão. 

Como agravante, na incerteza de se manter a Categoria A do JBPA, o Secretário Adjunto de Concessões, da SPGG, concedeu entrevista ao Jornal Zero Hora, alguns dias antes da Audiência Pública e não soube responder se a Categoria A, demandada pela Resolução Conama 339/2003 será mantida pela SEMA ou pelo Concessionário.  Cabe lembrar que o Jardim Botânico tinha obtido a categoria A, segundo os critérios da Resolução Conama, antes da extinção da FZB (2017). Também cabe destacar que todas as chefias, todo o plano de carreira e toda a estrutura do JB foi desfeita, vários técnicos e demais funcionários demitidos e outros levados a se desligar dos 3 setores da FZB (MCN, JB, Zoo). Corre ainda na justiça do trabalho, por iniciativa do governo do Estado da época e também do atual, processo para a demissão de todos os técnicos concursados das extintas Fundações. 

Considerando-se que a proposta surgiu de uma Secretaria não afeta à área ambiental, com base em uma modelagem do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para parques e outras áreas, com critérios que enfatizam o aumento da visitação pública, negócios, mas sem a base de garantia da manutenção da pesquisa, da riqueza do patrimônio de plantas vivas, e pela ausência de citação da qualificação da equipe técnica dos estudos, nos aparece que o estudo de concessão deve ser refeito.

Ademais, lembrando que a função principal de um Jardim Botânico é conservar a flora e a biodiversidade (existem 150 espécies ameaçadas ex-situ no local), promover pesquisas no tema e também desenvolver programas de Educação Ambiental  proposta não contou com a participação de técnicos do JBPA, não garante claramente a manutenção do Plano Diretor do JBPA, e também não deixa claro se a Resolução Conama 339/2003 (que estabelece critérios e condições para a existência de um Jardim Botânico) será cumprida, esta situação ilustra a enorme fragilidade deste processo.

Assim sendo, resta-nos solicitar a Nulidade tanto dos documentos de modelagem, praticamente restrita a negócios também e também Nulidade do processo que não conta com estudos sérios de equipes preparadas, não existindo consulta ao corpo técnico do JBPA para avaliar uma concessão que deve ser limitada a serviços, mas respeitando o Plano Diretor, a Resolução Conama 339/2003 e toda a legislação e acordos internacionais assinados pelo Brasil referentes à biodiversidade.

Atenciosamente


Paulo Brack

Coordenador do InGá