terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A POLUIÇÃO LUMINOSA E A BIODIVERSIDADE

Paulo Brack

Plantas e animais dependem do ciclo diário (circadiano) de luz e escuridão que regem os comportamentos que sustentam a vida, como reprodução, migração, nutrição, sono e proteção contra predadores. Evidências científicas comprovam que a luz artificial à noite tem efeitos prejudiciais e até mortais em muitas criaturas, com destaque a anfíbios, répteis, aves, mamíferos, insetos e plantas. A intensa luminosidade artificial decorrente de atividades antrópicas representa efeitos negativos ao ciclo circadiano dos animais, implicando em alteração do comportamento e possibilidade de aumento de mortes de animais atraídos pela luz, o que pode ser enquadrado como poluição luminosa.



A poluição luminosa, de acordo com Longcore e Rich (2004), pode ser dividida empoluição luminosa astronômica”, que obscurece a visão do céu noturno, atingindo de uma forma dispersa, e “poluição luminosa ecológica”, que altera os regimes de luz natural em ecossistemas terrestres e aquáticos. Segundo estes autores, algumas das consequências catastróficas da luz para certos grupos taxonômicos (espécies de flora, fauna, etc.) são bem conhecidas, como mortes de aves migratórias em torno de postes iluminados e de tartarugas marinhas recém-nascidas desorientadas pelas luzes em suas praias para nidificação.

A poluição luminosa, ou também fotopoluição, é causada principalmente pela iluminação pública de ruas, parques, edifícios e pelas luzes dos veículos (Longcore e Rich 2004). De acordo com documento de Henrique Paranhos Sarmento Leite (2021), a poluição luminosa se caracteriza pelo "uso excessivo ou indevido da iluminação artificial, em níveis capazes de causar efeitos adversos à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, suas atividades sociais e econômicas ou à biota". Quanto aos impactos à biodiversidade, centenas de estudos vem demonstrando que a poluição luminosa causa um conjunto diverso de perturbações sobre respostas biológicas como nos casos de padrões migratórios, seleção de habitats, comunicação animal, reprodução, ritmo circadiano, fuga de predadores, fenologia ads plantas.

Para se conhecer os efeitos do excesso de luminosidade nos ecossistemas há que se levar em conta os efeitos em muitos organismos que possuem vida noturna em florestas e em outros ambientes naturais. Infelizmente, os seres humanos, que vivem em ambientes urbanos profundamente artificializados, não se dão conta de que os ecossistemas naturais estão desaparecendo, por sua influência, e com eles cresce a ameaça de extinção de espécies. O Painel Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês), ligado a ONU, estima a existência de cerca de 1 milhão de espécies ameaçadas de flora e fauna no mundo[1]. No RS, existe uma lista oficial de 280 espécies de fauna ameaçada (Decreto Est. n. 51.797/2014)[2] e 804 espécies da flora nestas condições (Decreto Est. n. 52.109/2014)[3].  A fragilidade é evidente, então cabe seguirmos o Princípio da Precaução que não agrave a situação de nossa biodiversidade. A expansão sem limites de iluminação artificial noturna pode não causar, sozinha, a extinção de espécies, mas agrava a situação.

A expansão de urbanização traz consigo o impacto da poluição luminosa associada ou não a outros impactos, como poluição sonora e outras modalidades de poluição. A região do RS que mais vem crescendo em urbanização, com oscilação de população maior no verão, é o Litoral Norte (BRACK, 2006). É importante destacar que existem ecossistemas bem ricos em diversidade biológica no Litoral Norte[4], e que estão em estado crítico tanto no Rio Grande do Sul[5] como também é o caso do       Litoral Sul de Santa Catarina. Estes ecossistemas pertencem às Zonas Costeiras, consideradas como Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988, fazendo parte da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal n. 11.428/2006) [6], caracterizadas no mapa do IBGE (2004), como Formações Pioneiras, englobando diferentes habitats, não somente florestais. Dunas e diferentes tipos de vegetação de restingas (complexo de ecossistemas sobre a Planície Costeira) possuem comunidades animais e vegetais em equilíbrio ecológico ou próximos deste equilíbrio. Alguns animais mais comumente conhecidos em nossas matas são noturnos ou predominantemente de hábitos noturnos, como gambás, gatos-do-mato, corujas-buraqueiras, morcegos (destacando-se os frugívoros dispersores de sementes), bacuraus, sapos, pererecas, invertebrados, entre outros, alvos da poluição luminosa. Há que se considerar que animais diurnos dormem durante a noite, sendo que a iluminação artificial noturna tem impacto ao período de sono ou descanso dessas espécies.

No caso de plantas, o fotoperíodo que as afeta, definido pela relação de horas de escuro/claro, vai determinar o período do ano de fenômenos fenológicos (eventual queda biológica de folhas, florescimento, formação de frutos). O fotoperíodo altera a fenologia, acelerando ou alterando o período de florescimento, frutificação e queda de folhas, por exemplo, segundo Bennie et. al. (2016).

No caso de insetos, ocorre a atração em massa de diferentes organismos pelos holofotes em áreas próximas ao seu habitat. Alguns morcegos seguem em grandes quantidades os insetos voadores, principalmente na proximidade de lâmpadas. Sapos também são atraídos para busca de insetos junto a lâmpadas. De certa maneira, a luminosidade em áreas predominantemente urbanas tem efeito mais restrito, até porque a diversidade de fauna é baixa. Mas, mesmo assim, aves, como o sabiá (Turdus rufiventris), em áreas urbanas com iluminação artificial, vêm cantando em horas mais cedo do que o normal, como a partir das 3h ou 4 h da manhã[7]. Situações como essa alcançam outras aves, mas faltam estudos sobre o tema, atualmente.

Animais noturnos dormem durante o dia e são ativos durante à noite. A poluição luminosa altera radicalmente seu ambiente noturno, transformando a noite em dia. De acordo com o pesquisador Christopher Kyba, para os animais noturnos, “a introdução da luz artificial provavelmente representa a mudança mais drástica que os seres humanos fizeram em seu ambiente[8]. Segundo o Sítio-e Dark Skies Ranger, onde é citada a fala de Christopher: “próximo das cidades, o céu nublado é centenas ou milhares de vezes mais brilhante do que há 200 anos. Este fato pode ter um efeito drástico na ecologia noturna, por exemplo ao favorecer os animais predadores que usam a luz para caçar e ao prejudicar as espécies que usam a escuridão para se esconder” (grifo nosso).

            A iluminação artificial intensa e crescente nas circunvizinhanças de ambientes naturais provoca imensa alteração no ciclo circadiano de vários animais. No caso do Litoral, onde cresce a urbanização de uma forma descontrolada e desenvolvem-se múltiplas iniciativas para atrair turistas e veranistas, há que se considerar que determinados impactos ambientais, inclusive a poluição múltipla decorrente de atividades de turismo crescente em remanescentes de ecossistemas naturais, como as matas de restinga, dunas e diferentes formas de vegetação com flora e fauna nativas.

Qualquer iniciativa que implique desenvolvimento de empreendimentos públicos ou particulares que envolvam projetos de iluminação artificial, principalmente durante o veraneio, em que animais estão em mais intensa atividade, poderá ter impactos ambientais múltiplos com alteração no comportamento ou mesmo aumento de risco de desaparecimento de espécies raras e ameaçadas extinção. A implantação ou incremento de iluminação artificial poderá afugentar, diminuir a reprodução ou causar mudanças radicais no comportamento de espécies que estão em declínio populacional no litoral, inclusive pelo avanço urbano nos balneários. Ou seja, evitar-se o aumento de fontes luminosas é também auxiliar a proteger a natureza. 

O astrônomo Falchi Fabio (https://www.ecycle.com.brafirma que os níveis da luminosidade artificial podem ser milhares de vezes mais elevados se comparados com o ambiente noturno sem lâmpadas. Essa luminosidade, principalmente proveniente de centros urbanos, vem afetando processos naturais de acasalamento, migração, alimentação e polinização das espécies, sem que elas tenham tempo de se adaptar.

A iluminação noturna altera comportamentos de animais silvestres, inclusive em processos fundamentais ligados à regeneração da vegetação, como no caso da dispersão de sementes por aves, morcegos, gambás, cuícas e demais marsupiais, além de outros animais. Da mesma forma, a poluição luminosa altera comportamentos e prejudica animais silvestres considerados predadores de insetos, como no caso de sapos, répteis, aranhas, etc. Polinizadores, com estaque a lepidópteros e himenópteros poderão ser atraídos pela luz artificial e também prejudicar o êxito na fecundação das flores e reprodução de vegetais. A defaunação ou desaparecimento ou diminuição drástica de fauna de florestas e demais ecossistemas é um fenômeno cada vez mais atual, provocado por impactos de atividades humanas, que deixa florestas e outros ecossistemas naturais vazios em fauna. 

É importante destacar que aves do litoral, como no caso de garças, que costumam ter hábitos gregários (juntas) se abrigam à noite na copa de árvores, e de dia são vistas pescando junto ao mar ou em enseadas de sangradouros, arroios ou mesmo rios que desembocam no mar.

Muitos pássaros, também atraídos pelas luzes artificiais, saem do seu curso migratório e morrem ao colidirem com construções humanas, como por exemplo, os outdoors luminosos, que também matam milhares de insetos.

Segundo o Projeto Tamar, a implantação de luz artificial principalmente nas praias, acompanhada pela expansão urbana descontrolada sobre o litoral, vem prejudicando tartarugas marinhas em seu processo de desova, atingindo assim fêmeas e filhotes. As fêmeas acabam por alterar seus locais de desova, devido à iluminação inadequada nas praias. E no caso dos filhotes, podem ficar desorientados logo após a eclosão dos ovos, e saírem de seus ninhos. Comumente, em vez de seguirem para o mar, guiados pela luminosidade natural do horizonte, acabam rumando para o continente, atraídos pela iluminação artificial. Também, na sequência, muitas vezes são alvo de atropelamento, pisoteio não intencional ou mesmo sendo devorados por predadores como cães que vagueiam sem dono nestes locais.



O que fazer?

Tanto no que se refere à fotopoluição atronômica como para a poluição luminosa ecológica, segundo declaração do professor Enos Picazzio[9], do Departamento de Astronomia da USP, duas frentes são fundamentais para mudar o cenário de fotopoluição no Brasil:  a educação e a legislação, criando-se regras obrigatórias, com punições para quem infligir as mesmas. Entretanto, o professor salienta que o processo precisa contar com o diálogo entre sociedade, setores técnicos, econômicos e ambientais, além da participação do governo.

Também, em relação à fauna e flora, evitar ao máximo a poluição luminosa, mantendo áreas naturais protegidas e desenvolvendo estudos que avaliem o problema e indiquem as melhores condições de habitat para as espécies, prioritariamente, aquelas ameaçadas de extinção.

 Referências.

BENNIE, J., DAVIES, T. W., CRUSE, D., & GASTON, K. J. Ecological effects of artificial light at night on wild plants. Journal of Ecology. 104, 611–620, 2016.

BRACK, Paulo. Vegetação e Paisagem do Litoral Norte do Rio Grande do Sul: patrimônio desconhecido e ameaçado.  In: Encontro Socioambiental do Litoral Norte do RS: ecossistemas e sustentabilidade. Livro de Resumos. Imbé: Ceclimar- UFRGS, p. 46-71, 2006.

DAVIES, Thomas; SMYTH, Tim. Why Artificial Light at Night should be a Focus for Global Change Research in the 21st Century. Global Change Biology, v. 24, Issue 3, p. 872-882, 10 Nov. 2017. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/gcb.13927 . Acesso em: 20 out. 2020.

DIAS, Karina Soares; DOSSO, Elisa Stuani; HALL, Alexander S.;  SCHUCH, André Passaglia; TOZETTI, Alexandro Marques. Ecological light pollution affects anuran calling season, daily calling period, and sensitivity to light in natural Brazilian wetlands. The Science of Nature 106: 46, 2019.

GALLAWAY, Terrel. On Light Pollution, Passive Pleasures, and the Instrumental Value of Beauty. Ecological Economics, v. 69, n. 3, p. 658-665, 15 Jan. 2010.

LEITE, Henrique P. Sarmento. Poluição luminosa: seus impactos sobre a saúde, a segurança, a economia e o meio ambiente – e propostas para a sua regulação no Brasil. Brasília: Câmara de Deputados, 2021. 39 p.

LONGCORE, T., RICH, C. (2004) Ecological light pollution. Front Ecol. Environ. (4):191–198. https://doi.org/10.1890/1540-9295(2004)002[0191: ELP]2.0.CO;2 



domingo, 13 de fevereiro de 2022

Ofício do InGá quanto à Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA) - 11-02-22

 Ofício/InGá/nº02/2022                                                         

Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2022

À Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA) e Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG)

Ao Setores de Justiça e Meio Ambiente do Ministério Público Estadual (MPE)

Assunto: Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA)

Prezados(as) Senhores(as):

       O Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, ONG ambientalista, registrada no CNPJ sob n°03.535.467/0001-24 vem acompanhado, com muita preocupação, a questão Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA). Adiantamos que, em tese, não somos contrários à concessão de alguns serviços, porém a proposta não deixa claro que serviços serão concedidos, nem a base técnica de ponderação da capacidade de carga para o previsível aumento de público.



    Participamos da Audiência Pública Virtual do dia 3 de fevereiro de 2022, porém fizemos várias perguntas não respondidas no ato, sendo meras respostas superficiais ou mesmo se justificado que as mesmas seriam respondidas depois, o que pode ser constatado na gravação do Evento no YouTube: “Audiência Pública – Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre” (https://www.youtube.com/watch?v=SlPoe_I8O9Y&ab_channel=SecretariadePlanejamento%2CGovernan%C3%A7aeGest%C3%A3o ). Inclusive, perguntamos quanto a realização de convite ao Ministério Público Estadual se estava ou não presente no ato, mas não obtivemos resposta, mesmo após a oportunidade de nos manifestarmos virtualmente.

 Quanto ao conjunto de Consultas Públicas referentes às Concessões de áreas de conservação no RS, vimos lembrar que havíamos, de forma semelhante, tanto pelo InGá como por mais de 20 pesquisadores da biodiversidade, encaminhado Ofício à SPGG, em 15 de outubro de 2021 (portanto há quase 4 meses), sobre questionamentos referentes às profundas fragilidades do estudo de modelagem e concessão do Parque Estadual do Turvo. Até hoje não recebemos respostas.  Então, resta-nos a dúvida até que ponto nossas considerações serão minimamente respondidas, neste caso no que toca ao Jardim Botânico de Porto Alegre.

        Causa-nos surpresa que uma Secretaria de Planejamento, Gestão e Governança (SPGG), que não tem atribuição pela gestão tanto da biodiversidade como do meio ambiente, leve a cabo processos de concessões com base em estudos meramente de viés econômico. Ex. no Documento 1, ou PRODUTO 1 – ANÁLISE COMERCIAL E ESTUDO DE DEMANDA – Parte I, a palavra consumo está citada 81 (oitenta e uma) vezes, enquanto as palavras conservação da flora ou espécies ameaçadas da flora (acervo de mais de 150 espécies nesta condição no PBPA), tampouco foram citadas.

Outro problema, que consideramos grave, é o fato de que no que se refere aos documentos disponibilizados, não foi possível verificar-se a composição das equipes técnicas responsáveis por tais estudos, ou seja, não existe menção quanto a autorias, formação técnica e tampouco responsabilidade técnica quanto a essas informações e análises realizadas.

 A Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA), em especial a chefia do Departamento Estadual de Biodiversidade (DBio) desta Secretaria alega que realizou consulta aos técnicos do quadro, ou que os mesmos teriam participado e dado aval aos estudos para a concessão, situação que não foi confirmada. Ao contrário, tivemos contatos com os principais técnicos responsáveis pelas coleções de plantas vivas do JBPA e os mesmos negam ter sido consultados. Além disso, a SEMA não apresentou nenhum documento que avalie tecnicamente a viabilidade, a abrangência da concessão e se existem condições para a dimensão de concessão prevista, já que a proposta preza por atividades de negócios, turismo e consumo, envolvendo valores de preço básico para o leilão acima de 200 milhões de reais.

Em resumo, constata-se a ausência de documentos claros que avaliem de forma técnica e científica a viabilidade deste processo, que tem, neste caso, perfil quase exclusivo de negócios. Melhor dizendo, esperávamos que o governo apresentasse um parecer da área técnica concursada, especializada, não em posições de representantes do governo, não especialista e/ou não concursados, e que podem eventualmente preencher cargos técnicos de chefias, mas com indicações muito mais políticas. Portanto, a suposta garantia da manutenção dos serviços essenciais não tem amparo técnico-científico.

Os documentos apresentados não trazem a preocupação explicita de compatibilizar conservação da flora, manutenção de acervos, pesquisa necessárias, educação ambiental, já que a modelagem, encomendada pelo BNDES, expõe a supremacia dos negócios. A manutenção da categoria A, conforme condição obrigatória presente na Resolução Conama n. 339/ 2003 é incerta. A mudança alegada no Plano Diretor de 2014 do JBPA, realizado em 2021, não tem base técnica e sim teor meramente burocrático para facilitar a concessão. 

Como agravante, na incerteza de se manter a Categoria A do JBPA, o Secretário Adjunto de Concessões, da SPGG, concedeu entrevista ao Jornal Zero Hora, alguns dias antes da Audiência Pública e não soube responder se a Categoria A, demandada pela Resolução Conama 339/2003 será mantida pela SEMA ou pelo Concessionário.  Cabe lembrar que o Jardim Botânico tinha obtido a categoria A, segundo os critérios da Resolução Conama, antes da extinção da FZB (2017). Também cabe destacar que todas as chefias, todo o plano de carreira e toda a estrutura do JB foi desfeita, vários técnicos e demais funcionários demitidos e outros levados a se desligar dos 3 setores da FZB (MCN, JB, Zoo). Corre ainda na justiça do trabalho, por iniciativa do governo do Estado da época e também do atual, processo para a demissão de todos os técnicos concursados das extintas Fundações. 

Considerando-se que a proposta surgiu de uma Secretaria não afeta à área ambiental, com base em uma modelagem do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para parques e outras áreas, com critérios que enfatizam o aumento da visitação pública, negócios, mas sem a base de garantia da manutenção da pesquisa, da riqueza do patrimônio de plantas vivas, e pela ausência de citação da qualificação da equipe técnica dos estudos, nos aparece que o estudo de concessão deve ser refeito.

Ademais, lembrando que a função principal de um Jardim Botânico é conservar a flora e a biodiversidade (existem 150 espécies ameaçadas ex-situ no local), promover pesquisas no tema e também desenvolver programas de Educação Ambiental  proposta não contou com a participação de técnicos do JBPA, não garante claramente a manutenção do Plano Diretor do JBPA, e também não deixa claro se a Resolução Conama 339/2003 (que estabelece critérios e condições para a existência de um Jardim Botânico) será cumprida, esta situação ilustra a enorme fragilidade deste processo.

Assim sendo, resta-nos solicitar a Nulidade tanto dos documentos de modelagem, praticamente restrita a negócios também e também Nulidade do processo que não conta com estudos sérios de equipes preparadas, não existindo consulta ao corpo técnico do JBPA para avaliar uma concessão que deve ser limitada a serviços, mas respeitando o Plano Diretor, a Resolução Conama 339/2003 e toda a legislação e acordos internacionais assinados pelo Brasil referentes à biodiversidade.

Atenciosamente


Paulo Brack

Coordenador do InGá

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

O atual processo de concessão de uso do Parque Estadual do Turvo carece de estudo sério e de legalidade

À SEMA

À Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público Estadual

Aos(as) técnicos(as) da SEMA

Aos(as) membros do Conselho Consultivo do Parque Estadual do Turvo

Assunto: O atual processo de concessão de uso do Parque Estadual do Turvo carece de estudo sério e de legalidade

Prezados(as):

Conheci o Parque Estadual do Turvo em 1979, em Derrubadas (RS) junto com os professores da UFRGS Bruno Irgang e Jorge Waechter. Entre 1980 e 1984 realizamos um inventário da flora do Parque, publicado na Revista Roessleria (Brack et al. 1985), onde obtivemos a ocorrência de 727 espécies de plantas vasculares. No ano de 2021, tive a oportunidade de auxiliar o Trabalho de Conclusão de Curso de Biologia, do agora biólogo, Willian Piovesani. Willian atualizou a lista para 890 espécies, e o trabalho está para ser encaminhado à publicação, e conseguiu listar, de forma inédita, 50 espécies de plantas ameaçadas de extinção, parte delas endêmicas do Alto Uruguai, segundo o Decreto Estadual 52.109/2014. Nosso intuito, desde a década de 1980, era mostrar a importância da flora, que estaria ameaçada, junto com toda a biodiversidade, pela Usina Hidrelétrica Roncador, agora UHE Panambi, no rio Uruguai.  Ou seja, nossa luta tem mais de 40 anos!

Tive a oportunidade de realizar pelo menos 25 excursões de estudos da flora no Parque e aulas de botânica com estudantes da Biologia da UFRGS. Em 1987, fui um dos coordenadores do “Ciclo de Debates sobre os Parques Estaduais do RS",  quando os Parques ainda estavam no Departamento de Recursos Naturais Renováveis (DRNR) da Secretaria da Agricultura do Estado, tendo contado com a participação de quase todos os gestores dos parques e os técnicos e chefias do DRNR. Três dias debatendo os problemas dos nossos parques, numa condição onde tínhamos o triplo de guarda-parques (mesmo sem preparo) no P. Est. do Turvo e nos demais parques do RS.


Em 2021 - junto com muitos pesquisadores, técnicos, ambientalistas e moradores locais -  fomos pegos de surpresa pela possibilidade de Concessão de grande parte de atividades (quem vai mandar no Parque será uma empresa?) desta UC,  com base em um "estudo", encomendado por um Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que visa o lucro e não a conservação da biodiversidade. Lembremos que o Parque do Turvo tem listadas 95 espécies ameaçadas de extinção em nível estadual (45 spp. da fauna e 50 spp. da flora). O BNDES e suas consultoras contratadas saberiam lidar com a dimensão deste tema? A resposta é simples: é só ver os documentos escassos disponíveis para consulta pública, que não cita qualquer técnico gabaritado na área de biodiversidade, no Edital de Consulta para Concessão do Parque, que concluiremos que esta lacuna é imensa e o estudo não tem equipe e capacidade alguma para avaliar a dimensão do problema.

Não somos contra concessões, desde que estejam limitadas a determinados serviços, principalmente turismo, mas sob controle da área técnica da SEMA, e não representem riscos, como atropelamento de animais silvestres, avanço imobiliário no entorno do parque, comprometendo corredores ecológicos, qualidade da água, incêndios, etc. Mas, esta proposta indecorosa, sob a coordenação da Secretaria de Planejamento Governança e Gestão  (SPGG), sem consulta à área técnica (do quadro concursado) da SEMA, e passando por cima de um Plano de Manejo, mesmo que decorridos 15 anos do atual PM (e que deveria ser atualizado a cada 5) deve ser considerado um processo ilegal e ilegítimo! 

Os recursos de concessões podem ajudar, mas não é verdade que o Estado não tenha recursos próprios para gerir as UCs. Durante o governo de José Ivo Sartori, o Ministério Público de Contas (Dr. Geraldo Dacamino) abriu processo de pedido de informações e providências quanto a ausência encaminhamentos de processos de cobrança, pela SEMA, de mais de 30 milhões de reais em multas ambientais não pagas por infratores, e com valores preciosos perdidos para sempre, com agravante de induzir maior impunidade. Cabe lembrar, também, que o Estado mantém isenções, a grandes setores, inclusive na exportação de grãos e indústria do tabaco, e inclusive convivemos com sonegações, conjuntamente, de mais de 5 (cinco) bilhões de reais anuais segundo o SINDIFISCO[1].

Como consta em nosso alerta e parecer encaminhado ao governo do Estado e ao Ministério Público Estadual, consideramos que o referente estudo e a modelagem para a concessão, encomendados pelo BNDES e governo estadual, possuem falhas gritantes. Não apresentam equipe técnica, com suas devidas qualificações. Não apresentam Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) dos membros da equipe que elaborou o documento base para a concessão, procedimento obrigatório em qualquer relatório ou análise ambiental como em licenciamentos com Estudos de Impacto Ambiental . Não aborda os riscos à flora e à fauna endêmicas e ameaçadas. Traz a supremacia de negócios sobre a gestão da biodiversidade, situação que deveria ser justamente o contrário. 

Portanto, tal “estudo” e “modelagem” não têm base técnica adequada e não deveriam servir como documento subsídio fundamental para uma concessão. Como agravante, lembrando o alijamento da área técnica da SEMA, não consultada, terceirizando-se para outra secretaria (SPGG), sem atribuição ambiental, estar à frente do processo, sem nenhum parecer da SEMA. 

Assim, vemos uma tremenda ingerência de visão política (na lógica reinante, "Estado mínimo", sendo agora abandonada em países da América Latina, como Chile, Argentina, Bolívia e Peru). Submeter temas ambientais ao predomínio de visões de negócios denota desequilíbrios e assimetrias, gerando sobreposições injustificáveis que tiram o papel essencial da área técnica independente e do Estado pelos bens comuns sobre a gestão da biodiversidade. Isso não pode ser naturalizado. Entidades privadas, na gestão de um bem público intergeracional, podem ser admitidas, porém dentro de limites técnico-científicos e legais.

O impacto da capacidade de carga de turistas (limite suportável de número de turistas) nesta Unidade de Conservação, acrescida pela proposta de concessão, não foi feito. Cabe destacar que atropelamentos de animais, como onças–pintadas, antas e outros animais endêmicos do Parque poderão existir, como já ocorre no Parque Nacional de Iguaçu, trazendo a extinção regional de espécies que somente ali sobrevivem. Que medidas foram previstas para evitar este impacto? Os estudos apresentados pelo BNDES abstraem a abordagem necessária sobre o assunto. 

Então, pelo atropelo com base em um estudo enviesado, pesquisadores e entidades estão recorrendo à área ambiental do Ministério Público Estadual (MPE) e, provavelmente, este processo será objeto de encaminhamento de Ação Civil Pública na Justiça, com ou sem o MPE, a fim de que se dê sequência ao nosso pedido de NULIDADE dos "estudos" falhos e tendenciosos encabeçados pelo BNDES. A proposta de concessão atropela um Plano de Manejo realizado sob a coordenação da área técnica da SEMA e desrespeita a Lei Federal n. 9.985/2000, referente ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Construir piscinas e pousadas em áreas públicas, dentro do Parque, além de concorrer com empreendimentos familiares ou pequenas empresas de turismo do entorno, não atende os objetivos de uma Unidade de Conservação e mereceriam, inclusive, uma auditoria do Ministério Público de Contas quanto a esse desvio de finalidade que ameaça estas Unidade de Conservação.

Neste sentido, clamamos para que SEMA, Governo do Estado, área técnica da SEMA, Ministério Público, membros do Conselho Consultivo do Parque Estadual do Turvo e diversos setores da sociedade gaúcha reconheçam que o o encaminhamento destas etapas para a concessão não atendem os preceitos mínimos inerentes a uma UC, e não aceitem mudanças "fisiológicas" no Plano de Manejo do Parque, para atender questões menores que podem encobrir a ilegalidade viciada do processo

Não há espaço para proposições de "melhorias" com base em processo irregular de ingerência econômica na gestão da biodiversidade, com base em propostas que representam flagrante ilegalidade e retrocessos ambientais que perdurarão por três ou mais décadas. As consequências talvez sejam irreversíveis para a bioconservação do mais importante Parque Estadual e do pouco que resta de nossa biota em ameaça crescente. 

- Pelo respeito à Lei n. 9.985/2000, Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação!

Pelo fortalecimento do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC), da área técnica da DUC, da SEMA, contra as ingerências políticas e econômicas na gestão de nossa biodiversidade! 

Por uma atualização adequada e ampla do Plano de Manejo do Parque Estadual do Turvo, como recomendam leis e resoluções, sem atropelos imediatistas para contemplar um "estudo" falho, tendencioso que visa a supremacia dos negócios sobre a conservação da Biodiversidade! 

Por um novo estudo que avalie uma possível concessão limitada, que não implique no enfraquecimento da área técnica na gestão das UCS pelo Estado, que avalie adequadamente a capacidade de suporte, frente ao aumento de turismo, e não concorra com empreendimentos privados familiares locais! 

Não é concebível que possamos admitir maiores riscos à flora e à fauna de espécies, hoje, praticamente confinadas em um parque cercado de monoculturas que se utilizam de alta carga de agrotóxicos, hidrelétricas e outras atividades nem sempre compatíveis com o desenvolvimento sustentável verdadeiro!    

Porto Alegre, 19 de janeiro de 2022

Paulo Brack, Prof. Titular do Dep. de Botânica do Inst. de Biociências da UFRGS.

Membro da Coordenação do InGá

paulobrack59@gmail.com  


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Chico Mendes, a Floresta Amazônica e a fusão entre as causas ambientais e sociais

Paulo Brack (22-12-2021)

Chico Mendes foi morto no dia 22 de dezembro de 1988, uma semana após seu aniversário de 44 anos, quando se preparava para tomar banho nos fundos de sua casa em Xapuri, uma pequena cidade na floresta amazônica no Acre.

Tive a oportunidade de ir a Rondônia, Amazonas e Mato Grosso, por períodos curtos, mas, como curioso amante da botânica e da natureza, sempre me fascinou a floresta amazônica, sua diversidade e exuberância. E sempre me perguntava, desde estudante, há mais de 40 anos: por que um terreno desmatado valia mais economicamente do que uma área com floresta? Chico Mendes demonstrou esta contradição, de uma falsa economia, incompatível com a Amazônia, onde domina a extração de madeira, a expansão interminável de áreas com pastagem, em cima de matas originais, como as únicas alternativas para a região.

O extrativismo cooperativo veio à tona e segue sendo o grande caminho para manter a floresta em pé, com sociobiodiversidade e com maior rendimento. E o pioneirismo, na prática, em levantar esta questão com reconhecimento de sua comunidade, no Acre, e com repercussão internacional, era Chico Mendes. Ele teve o mérito de mostrar que proteger a floresta também era proteger os povos da floresta contra o avanço da fronteira agropecuária e do modelo de ocupação predatório que vinha dos grandes fazendeiros das regiões sul e sudeste.

Na minha condição de pesquisador quanto ao papel estratégico da flora e da biodiversidade brasileira, considero um marco de incorporação dos modos de vida à sustentabilidade ecológica necessária nos dias atuais. Sem a floresta amazônica, estaremos condenando parte importante do país a viver sem chuvas, acabando com os Rios Voadores que alimentam as chuvas no Sul e Sudeste do país, e sem recursos genéticos para uma economia virtuosa, que conviva com a floresta e seus habitantes.

As lutas de Chico Mendes

Na década de 1970, milhares de colonos, muitos enquadrados como sem-terra, eram levados para a Amazônia pelo modelo militar-ruralista de ocupação. Testemunhei isso em uma viagem de ônibus a Rondônia. As famílias pobres iam, desde a região sul, de ônibus, caminhão, com poucas posses, colonizar uma região desconhecida, com o intuito de abrir picadas na mata e povoar áreas, inclusive de territórios indígenas e também de comunidades extrativistas, como no caso dos seringueiros. A BR 364, associada às picadas em “espinha de peixe”, cortando Mato Grosso, Rondônia e Acre, foi alvo de sua resistência junto com as comunidades de seringueiros do Acre. Grandes fazendeiros vinham atrás, depois das áreas desmatadas e acabavam adquirindo os lotes dos pequenos, que não conseguiam sustento econômico e apoio para se manter na região. Chico Mendes coordenou a resistência a este processo, com base no município de Xapuri, no Acre. Montavam o “empate”, uma forma de mobilização, trancando estradas e montando um conjunto de estratégias para barrar o desmatamento e a ocupação de fazendeiros e pecuaristas na região. Isso criou conflitos tremendos com os poderosos, também apoiados pelo governo militar-civil da época, acostumados com a força bruta.

Wilson Pinheiro foi um líder acreano, assassinado, antes de Chico Mendes e pelas mesmas forças de ocupação predatória da Amazônia. Mas a luta estava dada, e Chico Mendes organizou União dos Povos da Floresta, integrando seringueiros, extrativistas de castanha-do-Pará, indígenas e outras comunidades tradicionais. Também teve papel importante sindical trazendo as pautas da floresta, em especial na Central Única dos Trabalhadores (CUT) e também no Partido dos Trabalhadores (PT), tendo sido candidato às eleições para deputado estadual no Acre, mas sem ter sido eleito.

A luta dos seringueiros e dos extrativistas, na Amazônia, se confunde com a história da região. O estado do Acre foi incorporado ao Brasil, em conflitos históricos com a Bolívia, devido à penetração de seringueiros naquele país, em busca do látex, para confecção da borracha, tirada da casca da seringueira (Hevea brasiliensis). Junto com a seringueira, a castanheira (Bertholletia excelsa), o guaraná (Paullinia cupana) e outras tantas plantas também eram usadas por populações tradicionais, obtendo-se assim, com o convívio com povos indígenas, modos de vida mais integrados com a natureza. A luta de Chico Mendes era para garantir, justamente, modos de vida mais harmônicos com a natureza. E seu papel político foi tamanho, na década de 1980, que lhe deu projeção nacional e internacional, tendo recebido em 1987 o Prêmio Global 500 da ONU, por sua luta, em especial de resistência ao modelo predatório de ocupação da Amazônia. Infelizmente, apesar da criação das Reservas Extrativistas, desde quase duas décadas, influenciada pela tentativa de proteção dos modos de vida dos seringueiros e dos pequenos extrativistas, segue predominando o modelo equivocado de ocupação e transformação da floresta em áreas de pastagem, garimpos e monoculturas em grandes propriedades. De outra parte, os modelos mais adequados de convívio com a floresta em pé, em especial as agroflorestas, vêm crescendo, demonstrando melhores resultados, mesmo que de forma tímida e diante de uma política governamental de desmonte da proteção e da promoção da biodiversidade brasileira. 

Junto com Chico Mendes, muitos outros companheiros dele estiveram na linha de frente, destacando-se também Raimundo Mendes Barros (Raimundão), que foi um grande líder seringueiro e hoje vive na Reserva Extrativista Chico Mendes (970,5 mil hectares). Também, como mártires da causa socioambiental, é importante lembrar da irmã católica Dorothy Stang, que vivia em comunidades do sul do Pará, sendo também assassinada covardemente, em 2005. Dezenas tombaram e não podem ser esquecidos. Infelizmente, parte considerável dos assassinatos no Brasil está concentrada na região do Arco do Desmatamento da Amazônia, e não por acaso. Infelizmente, o tema ainda não foi estudado de forma desejável.

Pelo menos como resultado positivo para os povos da floresta, foram criadas Reservas Extrativistas, como política pública importante com base na experiência no conhecimento indígena, dos seringueiros, dos demais extrativistas que aprenderam a conviver com a floresta, juntando ONGs socioambientais e as pesquisas científicas de universidades e outras instituições, trazendo à tona o extraordinário tesouro de biodiversidade amazônica com funções ecológicas e econômicas.

Mas, por outro lado, as Reserva Extrativistas não barraram a forma de ocupação imediatista, quase como pilhagem de recursos, que domina a região norte e centro-oeste do País. Como agravante, vários projetos tramitam no Congresso para diminuir as Reservas Extrativistas e permitir garimpo, mineração e agronegócio convencional e insustentável em terras indígenas e em comunidades tradicionais.

Cabe destacar que o Instituto Chico Mendes, ligado ao Ministério de meio Ambiente, possui também bravos técnicos do quadro que lutam pela preservação das florestas e da sociobiodiversidade da Amazônia, mas estão sob camisa de força, inclusive submetidos a assédio moral pelo governo federal caso queiram manter, na prática, a proteção ao meio ambientem determinada pelo artigo 225 da Constituição Federal. Assédio moral no serviço público é crime, e tem que ser assim tratado. A luta é urgente, em prol dos povos indígenas, dos seringueiros e demais comunidades tradicionais, associados em cooperativas e mini-indústrias de produtos diversos e com valor agregado, no resgate das políticas públicas que coloquem a sociobiodiversidade no patamar que merece no eixo estruturante do desenvolvimento local e verdadeiro para a Amazônia.

 


O legado de Chico Mendes

Chico Mendes teve um papel fundamental em dar maior visibilidade às causas comuns ambientais e sociais, em especial das comunidades locais que sofrem das mesmas causas de um modelo econômico em grande parte degradador da natureza. Ele foi um exemplo de esforço pela unidade nas lutas comunitárias de grupos sociais que desejam manter seus modos de vida digna, um bem viver talvez utópico, em maior harmonia com a natureza, desapegados da loucura pela acumulação reinante. 

Já ouvi ambientalistas conservadores, com alguma projeção, dizendo que “Chico Mendes não era ambientalista”, o que me chocou, a princípio. Mas, quem sabe a afirmativa sirva como provocação para o resgate e o debate quanto ao extraordinário papel de Chico Mendes, questionando-se a antiga concepção equivocada, com forte influência do conservacionismo estadunidense no Brasil, que defendia que a natureza, para ser protegida, não podia contar com a presença humana.

O desafio de se integrar economia e ecologia segue e, urgentemente, esta fusão deve ser incorporada à região amazônica para que estanque e reverta o processo degradador atual, trazendo maior qualidade de vida a toda a sua população e também a todo  o país ou mesmo continente, quiçá planeta, pelas funções de regulação climática desta imensa região que faz parte do Brasil e dos países vizinhos nas fronteiras  Norte e Noroeste. 

Carta da Aldaci Bellé sobre os alimentos da Agrobiodiversidade (2010)

Aldaci Bellé (Cap. São José, Antônio Prado, 28/09/ 2010) 

(Material de contribuição para Seminário sobre Frutas Nativas do RS, Grupo Viveiros Comunitários em evento realizado dia 10-12-2010 na Faculdade de Economia UFRGS) 


Rever o conceito produto ecológico e orgânico na alimentação humana e as regulamentações como rotulagem e selagem. Será que alimento ecológico é aquele que foi plantado pelos agricultores ecologistas sem o uso de agrotóxicos? E a natureza? Todas as espécies existentes na Terra, possíveis para nos alimentar, será que já acabaram sua função na Terra e não são mais necessárias? 

Será que o homem é um ser tão superior ao ponto de ser capaz de se auto sustentar sem depender mais dos outros seres vivos existentes e assim subestimá-los e até matá-los ou será que a natureza em toda a sua cadeia organizada se reúne e expulsa o homem extinguindo assim toda a espécie do planeta? 

*ver melhor a questão do alimento ser mercadoria: compra e venda. 

Se o alimento é vida e mercadoria, então vida é passível de ser comprada ou vendida, a moeda passa a ter o controle sobre a vida e onde fica a soberania alimentar? O homem passa a não ser mais livre, vivo, mas sim dependente de outro homem mais capitalizado monetariamente. Desta forma alguns destes seres poderão decidir e optar por quantos desses homens deverão viver ou morrer para servi-los. 

Exemplo: se um rei necessita em seu país de 1000 seres humanos para servi-lo, e a população é de 4000 pessoas, então através da soberania alimentar ele pode decidir matar 3000 conforme a sua livre vontade e interesse pessoal? E se por acaso ele pensar que se basta a si mesmo? O que acontecerá com todos os outros? 

E nós, seres estúpidos, ao invés de conversarmos sobre o assunto não temos tempo. Precisamos ir para o trabalho porque empregos já tem poucos, a distância é grande, o ônibus está lotado e já não há espaço para andar de automóvel. Tenho que comer pouco porque o salário é baixo, preciso pagar outras coisas que a sociedade me oferece luz, água, telefone, internet. Este é meu conforto e a minha vida. 

Será que me acostumo a fazer com que o alimento seja sempre menos necessário em minha vida que possa substituí-lo por outros produtos mais fáceis de serem encontrados no mercado? Será que um dia evoluirei tanto que uma só cápsula química me baste para sobreviver o dia inteiro e uma gota de água poderá matar minha sede? E os meus semelhantes, o que acontecerá com eles? Mas por que me preocupar com os outros se eu já não tenho tempo para pensar em mim? 

Estou muito cansado, tenho tanta coisa para fazer. Sinto necessidade de refortalecer minhas células, mas também o quê me importa se me alimentar ou não com a vida que a natureza me ofereceu ou os transgênicos modificados que eu mesmo criei? Afinal, se eu criei é bom porque eu sei o que é bom para mim...

Práticas: incentivar os agricultores familiares a plantarem não só soja e cana, mas também batata doce, pepino, abóbora, guabirova, butiá, cereja e utilizar não só adubo químico, mas também fortalecer o solo com adubação verde e outras técnicas naturais que existem. Distribuir, plantar, coletar, trocar sementes agricultáveis. Não só depender de comprar nas lojas distribuidoras. Criar uma consciência ecológica real. Não permitir que alguns manipuladores proíbam o livre comércio de alimentos vivos, como, por exemplo, pela rotulagem e selagem do ecológico. Ao contrário, fortalecer a plantação de PANCs [plantas alimentícias não convencionais]: venda em feiras de produtores, cursos de culinária, conservação nas famílias criando hábitos culturais. 


Explicar as tabelas nutricionais: quanta vitamina tem num copo de suco de guabiju e qual a sua importância para o equilíbrio do organismo, etc. Coleta de frutas: Mostrar aos produtores rurais que em suas casas existem, em todas elas, frutas nativas e alimentos (PANCs). Fazer um levantamento topográfico por município ou micro região para ver quais as principais frutas encontradas naquele ecossistema e quantas poderão ser coletadas. Estudar uma forma racional de juntar estas matérias primas individuais das propriedades, de uma forma que, comunitariamente, uma empresa agroindustrial possa recolher esses frutos e processá-los. 

Exemplo: quinta-feira é dia de coleta de uvaia na capela. Todos os agricultores que tiverem uma ou mais árvores em sua propriedade poderão coletá-las e, no final da tarde,  passará uma camioneta e recolherá os frutos que serão encaminhados às unidades de processamento assim como é feito com o leite nas pequenas propriedades agregando renda para a família. Favorecer as unidades de processamento interessadas em tecnologia de pesquisa e oportunidade de comércio desses produtos. Não dificultar, facilitar. Incentivar as famílias a plantar mais frutíferas nativas ao redor de suas casas, ao invés de cortá-las. Incentivar as pessoas e agricultores, individualmente, a consumir frutas nativas.

Fazer com que o público urbano tenha acesso fácil às frutas nativas. Não proibir, rotular ou selar o comércio de frutas extraídas em áreas de extrativismo, ou seja, favorecer o consumo. Enviar para a comunidade uma equipe treinada para ensinar as famílias como e quando poderão realizar a coleta dos frutos. Cadastrar pomares ou árvores para possível coleta, a fim de evitar o corte e a contaminação das mesmas com agrotóxicos e similares garantindo assim que sejam boas para o consumo humano.

Comprovar, através de fatos concretos, que a renda da família pode melhorar se ela aproveitar comercialmente os frutos que estejam sendo desperdiçados na propriedade. E incentivar o aproveitamento de pequenos espaços da propriedade para plantar novas frutíferas, ou até mesmo árvores comuns nativas. 

Incentivar a organizar criativamente a plantação da área de terra disponível que o agricultor tem, criando árvores que não atrapalhem o plantio de suas lavouras, mas ajudem a embelezá-las e enriquecê-las. Não necessariamente as propriedades terem uma área de reserva, mas, sim, organizadamente terem equilíbrio necessário para o meio ambiente. 

Exemplo: não importa o local onde a árvore está plantada. O importante é que existam pelo menos 4 ou 40 árvores naquela propriedade sendo elas pequenas, grandes e médias. Para não acontecer de só existirem velhas e um dia virem a acabar, é necessário todos os anos plantar alguma árvore. Nas beiras das águas e nascentes favorecer a criação de espaços naturais plantados ou não que possam oferecer possibilidade de coleta racional, a fim de não torná-las áreas ociosas passíveis de perda, principalmente nas pequenas propriedades rurais. 

Exemplo: se você tem uma propriedade com um rio, e 30 metros da sua margem for mata,  você poderá colher cereja, pitanga, araçá, criar abelhas, flores, pássaros. Usufruir os benefícios que as árvores oferecem sem que o fluxo de água seja prejudicado. 

Fitossanidade: Temos que desmistificar a ideia de que os alimentos naturais vivos que foram consumidos pelos povos mais primitivos, até os dias de hoje, são os que vão fazer mal à saúde e prejudicar o nosso organismo, mas, sim, os geneticamente modificados que não sabemos nem temos como provar os benefícios que oferecem para nossa saúde. As grandes empresas multinacionais, para justificar suas falsas invenções, tentam colocar a culpa nos outros. Exemplo: “não consumam frutos da palmeira juçara, porque o barbeiro coloca ovos neles; procurem consumir soja e milho transgênicos que foram produzidos com o mais alto controle de pragas e doenças impedindo assim a sua contaminação e garantindo a você um alimento morto mais saudável”. 

Controle de higiene nas agroindústrias: é preciso desburocratizar este assunto. Não posso mexer nos alimentos com as mãos que Deus me deu, porque poderão estar contaminadas com bactérias. Posso mexer com um aparelho metálico que a indústria metalúrgica construiu, utilizando matéria prima da natureza e mão-de-obra barata, tendo assim um grande lucro. Posso usar, na limpeza dos equipamentos, em vez de produtos químicos que a indústria produziu, produtos naturais ecológicos. Porém, não posso limpar meus equipamentos com cinza que foi extraída da natureza e o único processo que sofreu foi o da queimada. Posso usar máscara no rosto para evitar que a contaminação do ar, saudável ou não, que eu tenho dentro de mim se misture com os alimentos. Mas, não posso tirar do taxo, e nem preciso, os resíduos de agrotóxico que ficam presos nas frutas, porque isso ninguém enxerga. 

Agricultura Familiar = Meio Ambiente. No governo popular implantado pelo Olívio Dutra [no RS] havia começado um bom trabalho no sentido de respeitar a natureza. A agroindústria familiar da época começava a despertar e melhorar a renda da comunidade, o turismo rural verdadeiro e não comercial estava nascendo, o povo tinha mais vida real e entusiasmo. Não é o caso de copiar, pois muitas falhas existiam na época, mas, sim, rever as propostas e elaborar um projeto de governo parecido a fim de fixar o homem no campo e incentivar o público urbano a não consumir só transgênicos, mas buscar uma alimentação plena, com o direito de consumir tudo o que a natureza oferece. 

**Rever os alvarás das feiras livres, afinal se são livres deveria ser possível comercializar de tudo. Ex: a feira de sábado (FAE) em Porto Alegre. 

**Escolas técnicas especializadas no meio rural. Ex: onde já existe curso médio nas escolas do interior, que o ensino seja direcionado para a realidade rural, e não com é hoje que, quando concluem o segundo grau, digam: “agora já posso buscar um emprego na cidade. Estou preparado .” 

Grande objetivo – principal: Mostrar a importância da biodiversidade na sustentabilidade do planeta e clarear qual a necessidade de mantê-la intacta para a soberania alimentar de um povo independente. Rever a importância da alimentação na liberdade das pessoas. Troco cesta básica por? Troco transgênico por? Troco milho crioulo por? Soja por? Biodiversidade por? E quando não tiver mais nada para trocar...? 

Bandeira de Luta: Agricultura. Forçar o governo a assumir uma grande luta no estado em favor da vida. Rever zonalmente as biodiversidades locais e contrapor à monocultura de eucalipto que está invadindo todo o meio ambiente. Não ser contra eucalipto, ser a favor do respeito às outras espécies e variedades de árvores. 

Como fazer? Através da educação, mostrar para as pessoas quantas coisas boas a natureza oferece, para a alimentação humana (PANCs). Na merenda escolar, não servir apenas barrinhas de cereal, mas também suco de guabirova, cereja, jabuticaba, etc, produtos da natureza em sua época. Na Saúde: mostrar a possibilidade de você tomar um chá ao invés de um calmante químico. 

Não sermos contra ninguém, mas sim a favor do que é mais saudável e sustentável.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

“TROFEU” AMIGO DOS AGROTÓXICOS E DA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL DO RS, AO GOVERNADOR EDUARDO LEITE

        Neste dia 3 de dezembro de 2001, Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos, várias entidades ambientalistas, sidicatos e outros movimentos decidiram conceder o “Prêmio” Pulverizador de Ouro – Ano 2021, Amigo dos Agrotóxicos – RS ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.



O “Prêmio” foca-se principalmente na iniciativa do governo pela aprovação, junto à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, do PL Nº260/2020, em julho deste ano. A nova Lei[1] derrubou o Artigo 1º da pioneira Lei dos Agrotóxicos Gaúcha (Lei Nº 7.747/1982) que proibia que biocidas sem registros em outros países de origem pudessem ser comercializadas no Estado. Cabe lembrar que 30% dos ingredientes de agrotóxicos usados no Brasil já são proibidos na União Europeia.

Ou seja, passados quase 40 anos, o executivo estadual encaminhou em regime de urgência (apenas 30 dias de tramitação), sem nenhum espaço de discussão - e a mando da Federação da Agricultura do RS (FARSUL) - a flexibilização da legislação dos Agrotóxicos, comprometendo ainda mais o meio ambiente e a saúde dos gaúchos. A votação de julho de 2021 contou com 37 votos favoráveis, da base do governo Leite, e 15 contrários, apesar da manifestação e alerta de 241 entidades que elaboraram um documento denunciando o retrocesso e os riscos do Projeto à saúde da população e à natureza. A mesma base parlamentar do retrocesso que extinguiu a Fundação Zoobotânica do RS.

Além disso, a “condecoração” leva em conta que o chefe do executivo estadual é considerado o causador do maior retrocesso ambiental da história do Estado. Em janeiro de 2020, o  governo  promoveu a aprovação da Lei 15.434, que suprimiu ou flexibilizou mais de 500 artigos e incisos do importante Código Estadual de Meio Ambiente de 2000, desprotegendo a natureza de um estado que possui os dois biomas com maiores perdas de remanescentes no Brasil (Mata Atlântica e Pampa). Em novembro último, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura - que vende o Patrimônio Público do Estado (CEEE, CORSAN, etc.) - obteve a liberação do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), criando o Autolicenciamento privado, o mesmo que deu origem aos desastres criminosos pela empresa Vale, em Mariana e Brumadinho, MG.

Cabe lembrar que o RS possui a menor superfície (2,6%) coberta por Unidades de Conservação de toda Região Sul, e segue perdendo, em média, 125 mil hectares do Pampa (bioma, que no Brasil é exclusivo do RS) para as monoculturas quimicodependentes, em especial a soja (6,2 milhões de hectares no Estado), para exportação de grãos, com isenção de impostos para empresas exportadoras e para a comercialização de agrotóxicos (cerca de 1 bilhão/ano). Ademais, o Estado é um dos que mais consome biocidas, em um país que a cada 10 anos, são notificados mais de 100 mil casos de intoxicação por estes produtos.   

Não somos cobaias, assim seguiremos denunciando um governo estadual que já é campeão histórico em destruir a natureza, junto com o governo federal!

Por um Estado que preze pela Saúde da população, mantenha incorpore a Sociobiodiversidade e a Agroecologia no Centro das Políticas e não venda seu Patrimînio Público!

Porto Alegre, 03 de dezembro de 2021

Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, Amigos da Terra Brasil; União Protetora do Ambiente Natural – UPAN; Centro de Estudos Ambientais – CEA; União Pedritense de Proteção ao Meio Ambiente - UPPAN-DP; Associação Ijuiense de Proteção ao Ambiente Natural – AIPAN; Instituto Mira-Serra; ONG Araçapiranga; Associação de Mães e Pais pela Democracia– AMPD; Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente - Apedema do RS; Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal do RS (PoA)- ACPEF;  Movimento Preserva Zona Sul de P. Alegre; Grupo de Voluntários do Greenpeace de P. Alegre; Movimento Roessler para Defesa Ambiental; Movimento Laudato Si – RS, e Pastoral da Ecologia Integral; Movimento Ciência Cidadã; Movimento Amigos do Meio Ambiente; Instituto Econsciência; Raiza Movimento Cidadanista; Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan

 

Artigo de Leandro Cavalcante - Por territórios livres de veneno, defendemos a Lei Zé Maria do Tomé

 Por Leandro Cavalcante*

Do Brasil de Fato

Dentre tantas ameaças que impactam diretamente a vida dos povos do campo está a pulverização aérea de agrotóxicos, responsável por despejar grandes quantidades de veneno nas lavouras do agronegócio e que também contaminam o solo e os corpos d’água, bem como as pessoas que estiverem no caminho da chuva tóxica, acarretando graves problemas de saúde. O Brasil todo sofre com os agravos da pulverização aérea, exceto um único estado, o Ceará, em função da aprovação da Lei 16.820 de 2019, que proíbe o despejo de agrotóxicos por aeronaves em território cearense. Trata-se de um grande e importante passo para a produção de territórios livres de veneno e com mais dignidade no campo.

Foto Agência Brasil 

A aprovação da Lei 16.820/19, chamada de Lei Zé Maria do Tomé, representou uma conquista muito importante para todas e todos que sofriam cotidianamente com os impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em suas comunidades. Na Chapada do Apodi, no leste do Ceará, isso era uma realidade constante e que tirava o sono e a saúde dos moradores, já que era comum a prática do despejo de agrotóxicos por aeronaves nas plantações de banana, e que por vezes banhava também os quintais, os reservatórios d’água e as casas das comunidades. Empresas do agronegócio tinham na pulverização aérea a forma mais viável de expurgar veneno em seus cultivos de banana, expondo o ambiente, os trabalhadores e os moradores aos riscos de contaminação. É nesse contexto que emerge a figura de Zé Maria do Tomé, um camponês que se voltou contra a prática da pulverização aérea e mobilizou as comunidades, entidades, movimentos sociais e universidades na luta contra o uso de agrotóxicos. Por conta disso, Zé Maria foi assassinado, revelando a ganância dos poderosos do agronegócio em seu projeto de morte para a Chapada do Apodi. 

Reunidos no Movimento 21 de Abril (M21), essas comunidades, entidades, movimentos sociais e universidades, apoiadas em inúmeras pesquisas científicas, que atestaram os danos à saúde das pessoas e do ambiente em decorrência da contaminação por agrotóxicos, continuaram a luta de Zé Maria do Tomé e conseguiram, por intermédio do deputado estadual Renato Roseno (Psol), a aprovação da Lei 16.820/19. Essa Lei proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o estado do Ceará e foi pioneira no Brasil, representando uma grande esperança de territórios livres de veneno, sem o risco de as pessoas serem literalmente banhadas de agrotóxicos e terem seus alimentos e a água de beber contaminados. A Lei é uma garantia de um mínimo de dignidade para as populações camponesas que se veem ameaçadas pela invasão do agronegócio em seus territórios, com a expansão do latifúndio, da monocultura e do uso em larga escala de agrotóxicos.

Os efeitos dessa lei, vigente há apenas dois anos, são visíveis e significativos. Há um importante impacto positivo do ponto de vista ambiental e social na vida das pessoas que residem em comunidades cercadas pelo agronegócio, especialmente naquelas onde as monoculturas de bananas eram banhadas de veneno, como ocorria na Chapada do Apodi. Só em saber que a contaminação por agrotóxicos não virá mais pelo ar já é motivo de grande alívio para as comunidades, diferente do que recentemente temos observado em outros estados pelo Brasil, como ocorreu no Maranhão, no Pará, em Goiás e no Rio Grande do Sul, para citar apenas os casos mais recentes, quando agrotóxicos foram lançados sobre as pessoas. Nesse sentido, o Ceará é o exemplo a ser seguido no Brasil e no Mundo. É uma lei que garante a manutenção da vida nesses territórios vulnerabilizados pela ameaça do agronegócio e dos agrotóxicos. 

Por isso é importante e necessário defendermos a Lei Zé Maria do Tomé, que vem sendo ameaçada por representantes do agronegócio que alegam perda de produtividade e redução das áreas cultivadas por banana, especificamente. Todavia, essa alegação não se sustenta cientificamente, visto que dados divulgados pelo IBGE comprovam justamente o oposto. Em 2018, o Ceará produziu 337.636 cachos da fruta, em 2019 foram 406.334 cachos – dados da PAM/IBGE. Já as projeções para 2020, segundo dados do LSPA/IBGE, apontam que a produção de banana pelo Ceará chegou aos 430.336 cachos. Ou seja, um aumento de 100.000 cachos em dois anos, antes e depois da aprovação da Lei, em 2019. Apenas de posse desses números, e com uma análise rápida, é possível contrapor o discurso defendido pelo agronegócio, de modo a demonstrar que a Lei não impactou de modo negativo diretamente a produção de banana no Ceará, muito pelo contrário.

Apesar da grande importância da Lei, fruto de muita luta do ativista Zé Maria do Tomé, dos coletivos que compõem o M21 e do mandato do deputado estadual Renato Roseno, é preciso que faça muito mais. Apenas proibir a pulverização aérea de agrotóxicos não é suficiente para impedir o aumento do consumo de veneno nos cultivos agrícolas, como observado em todo o país. É preciso que haja políticas públicas e uma legislação específica que reduza progressivamente a utilização de agrotóxicos, ao passo que incentive e potencialize a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos. Não há como descansarmos enquanto for permitido o uso de veneno nas plantações, já que não haverá saúde para os trabalhadores do campo, os moradores das comunidades e os consumidores dos alimentos contaminados. Defender o fim do uso de agrotóxicos é, antes de mais nada, ter um compromisso com a vida! Viva a Lei Zé Maria do Tomé e a luta contra os agrotóxicos!

*Professor da UFRN, Doutor em Geografia e Ativista do M21.

Edição: Monyse Ravena