quarta-feira, 18 de julho de 2018

Posicionamento da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia sobre o Pacote dos Venenos (PL 6.299/2002)


SBEM - 03/07/2018 -  COMUNICADOS OFICIAIS

A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia emite um posicionamento contra o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados que propôs modificações no sistema de regulação dos agrotóxicos. A SBEM está preocupada com os riscos provocados pela decisão.  
Posicionamento da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia em Relação ao Projeto de Lei 6.299/2002

Em 25 de junho de 2018 a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou o texto que propõe modificações no sistema de regulação de agrotóxicos, seus componentes e afins. As alterações propostas flexibilizam essa regulação, negligenciando os riscos à saúde e ao meio ambiente que o uso indiscriminado destes compostos pode causar.
Propõe-se, nesse texto, a substituição do termo “agrotóxico” por “produto fitossanitário e de controle ambiental” com a clara intenção de passar a idéia de uma falsa inocuidade desses produtos para a população. Esta eufemização pode induzir ao uso indiscriminado pelo agricultor, causando contaminação ou intoxicação.
Outra alteração importante foi a exclusão definitiva da lista de produtos que contenham ingredientes ativos de agrotóxicos, porém de uso não agrícola, a exemplo dos inseticidas. Essa medida representa uma banalização do uso destes produtos e outra negligência em relação à exposição humana.
A proposta de relaxamento do controle sanitário deste PL é confirmada quando se deixa a cargo do Ministério da Agricultura a análise e deliberação sobre os pleitos de registros de “produtos fitossanitários” para os órgãos de saúde e meio ambiente. Produtos com “risco aceitável” passam a ser permitidos e apenas aqueles com “risco inaceitável” podem ser proibidos. Esta medida é absurda e tendenciosa, pois além de retirar o poder de avaliação de órgãos com competência técnica para as referidas análises (a exemplo da ANVISA que aponta uma lista de 9 agrotóxicos proibidos devido ao potencial cancerígeno, de desregulação endócrina, de mutagênese e danos no aparelho reprodutor) coloca a população em risco.
A literatura médica apresenta mais de 600 estudos demonstrando o potencial dos agrotóxicos de interferir nos sistemas endócrinos, especialmente no desenvolvimento dos sistema reprodutivo masculino na exposição intra-útero. Vale ressaltar aqui que as principais janelas de vulnerabilidade à exposição dos desreguladores  endócrinos são a fase fetal, a infância e a adolescência e que as possíveis alterações epigenéticas causadas pela exposição aos agrotóxicos podem ser transmitidas para as futuras gerações.
Em suma, baseada no “Princípio da Precaução” diante do potencial risco à saúde, a SBEM se posiciona veemente contra esta proposta de relaxamento do controle do uso de agrotóxicos, considerando grande irresponsabilidade e descompromisso com a saúde da população.
Dr. Fábio Trujilho
Presidente da SBEM Nacional - 2017/2018
Dra. Elaine Frade
Presidente da Comissão de Desreguladores Endócrinos - 2017/2018

domingo, 1 de julho de 2018

"A soja pode acabar com a economia gaúcha (e com muito mais)"

"Cresci com uma lavoura de soja que chegava quase à porta da minha casa. Grande parte dos meus familiares a cultivaram e ainda a cultivam. Sou oriundo de uma geração de agricultores e filhos de agricultores cujas identidades e representações de mundo estão profundamente associadas à soja. Identidades e representações que se perpetuaram. Peça para uma criança de algumas regiões do interior gaúcho representar o meio rural em uma imagem e haverá uma grande chance de que desenhe uma lavoura de soja.
É muito difícil para mim e para todos que cresceram com esta imagem da soja como modelo de progresso aceitar a ideia de que este grão pode acabar com a economia gaúcha (talvez brasileira). Vejo isto na face dos filhos de agricultores que chegam todo semestre às minhas aulas no curso de agronomia da UFRGS. A reação da maioria deles, sensata e esperada, é de completa incredulidade. Ora, quem ousaria afirmar que a soja, que supostamente ‘sustenta a agricultura do estado’, poderia ser, na verdade, o problema e não a solução? Tento lhes explicar minhas múltiplas razões. Aqui não tenho condições de explorar cada uma delas em detalhes. Vou apenas destacar as principais.
A primeira e mais debatida no meio político tem a ver com o fato de que a soja é uma das commodities de exportação mais beneficiadas pela Lei Kandir. Em vigência desde 1996, esta lei desonerou as exportações de bens primários e semielaborados do pagamento de ICMS. Por causa dela, o RS acumula uma perda de arrecadação de quase R$ 50 bilhões. Cabe lembrar que a dívida pública do Estado chegou a R$ 67,6 bilhões no final de 2017.
Uma segunda razão é o efeito da expansão da soja em termos de especialização produtiva. Por um lado, isto aumenta a vulnerabilidade dos agricultores em face das oscilações do mercado internacional e das intempéries climáticas (todos se perguntando quando será a próxima seca). Por outro, repercute no modo como a soja substitui outros produtos de maior valor agregado, repercutindo em redução do potencial de crescimento econômico.
Na mesma extensão de área o cultivo de soja tem rendimento econômico inferior a vários produtos agrícolas. No entanto, o que se vê em toda parte são agricultores vendendo as vacas, arrancando os pomares e retirando até mesmo suas casas para plantar soja. Não impressiona, portanto, o aumento do preço dos alimentos nos supermercados, sobretudo das frutas, verduras e legumes.
A expansão da soja tem um efeito indireto, portanto, no poder de compra dos consumidores. Na medida em que os agricultores, desestimulados a plantar gêneros alimentícios básicos, se voltam para a soja, os consumidores não apenas vêem os preços dos alimentos aumentar, mas também são empurrados para uma parafernália de produtos industrializados baratos e ultraprocessados.
Aqui a discussão sobre os efeitos da sojicização vai longe. Poderíamos, por exemplo, associar a expansão da soja à crise de saúde pública decorrente do consumo destes produtos industrializados. E também poderíamos acrescentar nesta equação o fato de que a soja contribuiu decisivamente para tornar o Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos (que, ademais, também se beneficia de redução de impostos).
Berço do processo de sojicização da economia gaúcha, a região noroeste do RS se destaca no que se refere ao problema dos agrotóxicos. Oriundo desta região, mas tendo migrado muito cedo, ainda hoje tenho uma memória olfativa do cheiro do veneno. O vento levava o produto da lavoura até a casa. Sabíamos que era melhor não ficar exposto. Mas ninguém dizia nada sobre colher e comer um pé de alface após a aplicação do veneno na lavoura que estava logo ao lado.
A expansão da soja também afetou outros cultivos tradicionais. Na última década a área de milho cultivada no RS foi reduzida pela metade. Os produtores de suínos, aves e leite já sentem os efeitos do problema. A especialização na produção de soja pode inviabilizar estas cadeias produtivas. Por conta disso, nos próximos anos empresas agroindustriais poderão reorientar seus investimentos para outros estados, mais próximos dos locais de produção desta matéria-prima.
Nos últimos anos a soja também invadiu as áreas de produção de arroz e carne. O pampa gaúcho, um bioma único no mundo, está ameaçado pelo monocultivo da soja. Apenas isto já seria uma razão suficiente para nos preocuparmos e regularmos o uso das terras agrícolas. Mas, se isto não bastar, preocupe-se ao menos com a origem, a qualidade e o preço da carne que você consumirá nos próximos anos.
No caso do arroz, item básico da dieta alimentar brasileira, a entrada da soja se dá em um contexto de crise da produção rizícola. Fala-se na rotação de cultivos entre soja e arroz como solução para a crise. O risco, contudo, é a substituição. E a pergunta que todos se fazem é porque as políticas públicas apoiam mais a soja do que o arroz e o feijão (que, aliás, estamos importando). Mesmo dentre as políticas para a agricultura familiar, como o PRONAF, a soja abocanha mais da metade do crédito de custeio agrícola.
Por que não apoiar outras cadeias de maior valor agregado como leite e derivados, frutas e hortaliças, queijos e vinhos? Muitos dirão que os agricultores plantam soja porque já não existe mão de obra no meio rural para outras atividades. É verdade. Mas talvez também tivéssemos que considerar a possibilidade de que já não existe mão de obra no meio rural porque se incentivou a especialização produtiva e a concentração da terra. Pergunte a um agricultor ou um trabalhador rural se ele teria intenção de sair da terra se ele tivesse condições de ali permanecer de maneira diga, com acesso a bens e serviços. Ou seja, a falta de mão de obra é a conseqüência e não a causa do problema.
Mesmo assim, provavelmente alguém vai dizer: o preço da soja está muito alto, ou seja, não existe alternativa mais rentável. O preço da soja não está alto. O que está alto é o dólar. Na verdade, o preço caiu nos mercados internacionais. Depois da explosão de 2008, repetida em 2012, o preço despencou nas bolsas de valores internacionais. Os agricultores brasileiros somente seguem recebendo um valor muito elevado porque a taxa de câmbio compensa esta queda.
No entanto, o câmbio também fez aumentar o preços dos insumos, das sementes ao óleo diesel. Se somarmos a isso o preço da terra e a remuneração do trabalho dos agricultores, não será difícil perceber que a maioria dos sojicultores opera com uma rentabilidade por área relativamente baixa (o que demanda aumento contínuo da escala). Muitos destes agricultores sabem que estarão endividados se, por exemplo, uma nova estiagem atingir o RS durante a safra. Assim como os governadores, apenas rezam para que não haja uma grande seca.
Nos pequenos municípios do interior do estado crescemos ouvindo a máxima de que ‘a cidade vai bem quando a colônia vai bem’. Também é verdade. A dinâmica econômica dos pequenos municípios é muito pautada pela produção agropecuária. Mas isto não se sustenta se a renda agropecuária estiver concentrada nas mãos de poucos e grandes produtores. A expansão da soja está expulsando as pessoas do meio rural, aumentando a concentração da terra e da renda. Os pequenos municípios não tardarão a sofrer as conseqüências deste processo.
Enfim, a expansão desenfreada da soja não apenas coloca a economia gaúcha em sérios riscos, mas também reproduz a ideia de um mundo rural sem gente. Não estamos apenas substituindo arroz, carne e leite por soja. Estamos substituindo as pessoas. Estamos acabando com a ideia do rural como um espaço de vida, de sociabilidades, de patrimônios culturais e alimentares.
Não cabe culpar os produtores de soja – embora um deles em particular, aquele que está sentado na cadeira do Ministro da Agricultura, mereça algum crédito por isso tudo. A maioria está amarrada a uma complexa rede econômica que envolve empresas, bancos, assistência técnica, comerciantes e propaganda. Não é fácil se desvencilhar desta rede e encontrar outras alternativas.
Mas cabe arguir quando e como o Estado vai criar incentivos para os produtores de alimentos, de leite, de arroz, de carne, de frutas etc.? Quando vai apoiar a pequena e a média indústria do modo como apóia as commodities agrícolas? Quando vai ter políticas de apoio à diversificação econômica, a qual sempre foi o principal esteio do desenvolvimento gaúcho? Quando vai criar alternativas para os agricultores que querem escapar dos riscos da soja?
O momento para discutir estas questões é agora. Às vésperas das eleições, será importante saber o que os candidatos pensam à respeito."
(*) Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As opiniões emitidas nesta coluna são de responsabilidade do autor. E-mail: pauloniederle@gmail.com

Mais direitos, menos veneno: pela rejeição do PL 6299/02 (OBHA- Fiocruz)

Prato do dia – 14/05/2018
Mais direitos, menos veneno: pela rejeição do PL 6299/02*

"Desde o final de abril a Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa o Projeto de Lei nº 6299/02, conhecido como “Pacote do Veneno”, voltou a funcionar. Amanhã, 15 de maio, ela irá se reunir para decidir se este projeto segue para o plenário da casa, após a apresentação do substitutivo do Deputado Luis Nishimori, relator da matéria. Caso o PL seja aprovado, o Brasil deixará ainda mais débil sua capacidade de regular o uso e a comercialização de venenos que impactam as diferentes etapas do processo alimentar, escancarando as portas para novas violações de direitos humanos como alimentação, saúde e meio ambiente.
A desculpa utilizada historicamente para justificar o uso excessivo dos agrotóxicos nos sistemas agroalimentares de todo o mundo foi a suposta preocupação com a quantidade de alimentos produzidos frente ao aumento da população. Isto se deu sem a devida atenção aos riscos representados por esses produtos e, portanto, sem que houvesse a preocupação com a qualidade e a distribuição da alimentação no mundo, ou com outros fatores ambientais e de saúde pública. Exemplificando os males de longo prazo causados pelos agrotóxicos, o primeiro Levantamento nacional brasileiro de contaminantes emergentes na água potável, publicado em 2016, indicou que o herbicida atrazina estava presente em 75% das amostras de água coletadas em todo o país, sendo a segunda substância que mais apareceu na pesquisa – atrás somente da cafeína.
O mercado mundial de agrotóxicos é extremamente concentrado e o Brasil é um dos principais clientes. Cerca de 80% desse mercado, que movimenta ao redor de USD 48 bilhões por ano, está nas mãos de poucas grandes transnacionais: Syngenta, Bayer – que comprou a Monsanto, DowDuPont Inc. e BASF. Em 2008, o Brasil, deixando para trás os Estados Unidos, passou a ser o maior mercado mundial de agrotóxicos, troféu que representa riscos e violações a direitos de toda a população brasileira.
Segundo a pesquisadora Larissa Bombardi (USP), autora do Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, considerando a subnotificação dos casos de contaminação por agrotóxicos, podemos chegar a cerca de 1,25 milhão de casos de contaminação no Brasil no período dos últimos 7 anos. E quem nos contamina? Os mapas da pesquisadora também mostram que a concentração dos casos de intoxicação se sobrepõe às regiões onde se dão as monoculturas do agronegócio no Brasil – como, por exemplo, a soja, o milho e a cana de açúcar no Centro-Oeste, Sul e Sudeste.
Riscos à saúde e ao meio ambiente, gerados pelos agrotóxicos, são fartamente documentados. A ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, lançou em 2015 o Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. O documento sistematiza muita informação a respeito do assunto e denuncia que os agrotóxicos provocam desde sintomas agudos como cólicas e enjoos, até doenças mais graves como câncer, más-formações congênitas, distúrbios mentais e mortes.
Apesar disso tudo, as autoridades brasileiras, em vez de regular de maneira efetiva o uso de agrotóxicos, têm aberto cada vez mais a porteira para seu uso e comercialização. Um exemplo disso é o Decreto nº 7.660/11, que concede isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) aos agrotóxicos, bem como o Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que permite a redução da base de cálculo do ICMS incidente sobre os agrotóxicos em até 60% nas operações interestaduais. Mesmo em época de austeridade fiscal, que implicou congelamento de gastos sociais por 20 anos, não houve movimentação do Executivo ou do Congresso Nacional para acabar com as isenções que deixam de gerar receita para o Brasil e ainda incentivam o uso e a comercialização de um produto que afeta o meio ambiente e a saúde da população. Vale registrar que a indústria dos agrotóxicos no nosso país, só em 2014, faturou R$ 12 bilhões. A pergunta que fica é: e o Brasil, desde que vem concedendo essas isenções, quanto deixou de faturar?
A mais recente investida a favor dos agrotóxicos é a votação do PL nº 6299/02 nos próximos dias. No Brasil existe um vasto quadro legal que dispõe sobre a experimentação, a pesquisa, a embalagem, a comercialização, a propaganda, o registro, o controle e a fiscalização, entre outros, dos agrotóxicos. Esse quadro legal tem sofrido inúmeros ataques com o propósito de flexibilizar a regulamentação dos agrotóxicos. É nesse contexto que se apresenta o PL 6299/02 e seus apensos.
E quais são as ameaças apresentadas pelo PL 6299/02? A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida denuncia que caso este pacote letal de PLs seja aprovado, os “agrotóxicos” passarão a se chamar “defensivos fitossanitários”; a avaliação de novos agrotóxicos deixará de considerar os impactos à saúde e ao meio ambiente, ficando sujeita apenas ao Ministério da Agricultura e aos interesses econômicos do agronegócio; será admitida a possibilidade de registro de substâncias comprovadamente cancerígenas, sendo estabelecidos níveis aceitáveis para isto; a regulação específica sobre propaganda de agrotóxicos irá acabar; será permitida a venda de alguns agrotóxicos sem receituário agronômico e de forma preventiva, favorecendo ainda mais o uso indiscriminado de tais substâncias; e ainda, estados e municípios ficarão impedidos de terem regulações mais restritivas, embora estas esferas tenham o dever constitucional de proteger seu patrimônio natural.
Por essas e outras razões a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida tem mobilizado a sociedade para estancar essas propostas que violam direitos, assim como para impulsionar agendas positivas, como a Agroecologia. Ainda, vale destacar que vários/as pesquisadores/as e organismos da ONU têm se posicionado contra os agrotóxicos e a favor da agroecologia como um modelo de produção de alimentos sustentável – capaz, portanto, de alimentar o planeta sem destruí-lo.
Agrotóxicos são tóxicos, por isso se chamam assim. O que intoxica, não alimenta. Nesse momento em que o Brasil engata a marcha à ré em relação ao direito à alimentação e outros direitos, o que precisamos nos nossos pratos são mais direitos e menos veneno. Para saber como se somar a essa luta, acesse http://www.chegadeagrotoxicos.org.br/ ."

*Valéria Burity, Secretária Geral da FIAN Brasil; Lucas Prates, Assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil; Carla Bueno, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida