terça-feira, 25 de março de 2014

Por que proteger e conhecer o ambiente natural e rural de Porto Alegre?

Paulo Brack (17 de agosto de 2010) encaminhado para SMED

O município de Porto Alegre possui 48 mil hectares (1 ha = 10.000 m2). Pelo menos uma terça parte do município é composta por áreas predominantemente rurais e naturais. Grande parte das áreas naturais e rurais se encontra ao longo de mais de 44 morros, do Delta do Jacuí e na orla sul do município junto ao lago-rio Guaíba. Trata-se de uma enorme riqueza de vegetação, paisagem natural e biodiversidade.
A grande riqueza em biodiversidade de Porto Alegre provém de uma conjugação de fatores ecológicos, decorrentes do contato entre três regiões geomorfológicas (Planície Costeira, Depressão Central e Escudo Cristalino Sul-Riograndense), e de uma evolução geomorfológica de milhões de anos, incluindo a história, praticamente desconhecida, de grupos humanos que aqui habitaram por milhares de anos.

Parte desta riqueza está descrita no Atlas Ambiental de Porto Alegre (Menegat et al. 1998) e no Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre (Hasenack et al. 2008), entre outros trabalhos. Em nosso município se encontram os biomas Mata Atlântica e Pampa. Inclusive temos espécies que provêm da Amazônia e tem próximo ao paralelo 30º Sul, seu limite meridional no Continente. Este é o caso, por exemplo, de uma árvore majestosa, a grápia, que atinge mais de 40 metros de altura, com exemplares encontrados em Ipanema, na orla do Guaíba, ou na base ocidental do morro Santa Teresa.
Nossos arroios nascem límpidos na vegetação natural dos morros. A diversidade de tipos de vegetação é alta: matas de encostas, matas ciliares, matas de restinga, campos rupestres, campos de várzea, banhados, sarandizais, juncais, butiazais, entre outros, em morros e planícies, abrigando paisagens únicas e serviços ambientais fundamentais ao equilíbrio ecológico e à qualidade ambiental da cidade. A orla do Guaíba ainda mantém uma beleza cênica ímpar e ecossistemas fundamentais aos peixes e outros organismos que aqui migram para desovar, desde a Lagoa dos Patos.
No que se refere à flora, com base em estudos de Balduino Rambo (1954), ocorrem mais de 1.300 espécies. São mais de uma centena de espécies ornamentais, outras centenas de plantas alimentícias (frutas e hortaliças) e medicinais. O artesanato para os índios kaigangs, que comercializam material fundamental para sua sobrevivência, provém de cipós e outros tipos de plantas destas áreas.
Também existem centenas de espécies de animais silvestres vertebrados, pelo menos três centenas de espécies de aves, dezenas de mamíferos, alguns raros, com destaque a alguns que chamam mais a atenção da população e podem ser considerados indicadores biológicos de qualidade de habitats, como o bugio-ruivo, o mão-pelada, o gato-do-mato, o ouriço-caixeiro, a lontra, entre outros. Parte da fauna e da flora é composta por espécies ameaçadas. Entretanto, praticamente, inexistem programas ou planejamento da conservação da biodiversidade em Porto Alegre.
A zona rural de Porto Alegre também tem papel fundamental, devendo ser resgatada, pois desempenha papel ecológico e econômico importantíssimo. Disponibiliza alimentos mais baratos e saudáveis (muitas vezes orgânicos), e também desenvolve o turismo, tendo uma função de tampão, ou de amortecimento, ao impacto das áreas urbanas, que tem impermeabilizado o solo e causado maior poluição. O turismo, em áreas rurais e naturais, já é uma realidade (Caminhos Rurais de Porto Alegre), principalmente na zona sul, em encostas de morros (Lami). Pode estar associada à função de proteção da biodiversidade, incorporando renda e cidadania às comunidades carentes, com saneamento e vida digna.
As diretrizes de conservação do ambiente natural quase nunca são estruturadas no Brasil, pois nos governos e no setor hegemônico da economia ainda predomina uma visão imediatista. O programa Minha Casa Minha Vida é um caso típico, onde o licenciamento ambiental foi flexibilizado para que as licenças ambientais sejam emitidas no máximo em um mês, a despeito da história milenar da biodiversidade das área onde os projetos são propostos. As áreas mais baratas são, inclusive, aquelas onde existem banhados, matas e beira de cursos dágua. Da mesma forma, os programas associados à Copa do Mundo também sofrem de falta de visão ambiental, pois andam a reboque dos negócios e do mercado.
Com isso, a área ambiental praticamente só é lembrada como “empecilho”. O setor imobiliário ou o setor da construção civil é muito poderoso e intervêm de forma assimétrica nas políticas públicas. Por outro lado, este setor é o responsável pela maior fatia de contribuições financeiras nas campanhas eleitorais das capitais brasileiras.
Historicamente, o poder central da prefeitura, como de praxe na grande maioria das prefeituras, não dá a devida prioridade à área ambiental porque culturalmente não considera isso importante ou tem medo de se contrapor aos velhos interesses imediatistas dos que não pensam em sustentabilidade. A função ecológico-econômica das áreas naturais ou rurais e seu contexto histórico-cultural, em geral, são, desta forma, desconsiderados e negligenciados. As obras possuem maior visibilidade que políticas de conservação, quando estas existem. Além disso, as áreas naturais não trazem para os cofres da prefeitura os impostos desejados pelo setor de arrecadação, a despeito da não contabilização do valor dos serviços ambientais da Natureza.
Assim, com a ausência crônica de políticas públicas de proteção ambiental, a expansão ilimitada das áreas urbanas da cidade é favorecida, e com ela vem o desaparecimento de biodiversidade de arroios, encostas de morro, paisagem natural e demais itens da biodiversidade associada.
As avenidas e ruas acabam sendo projetadas para dar capilaridade a este crescimento desordenado, onde cresce, indiscriminadamente, ou quase, a especulação imobiliária. A infra-estrutura urbana criada, em ambientes outrora naturais ou rurais, tem efeito dominó, avassaladora sobre seu patrimônio natural e seu papel ecológico-econômico. Sucumbem, principalmente, as últimas áreas rurais e naturais da zona sul. A orla do Guaíba está cada vez mais privatizada e ameaçada por este processo.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente teve pioneirismos, sendo a primeira no Brasil. Foi criada aqui também a primeira Reserva Biológica municipal (Reserva Biológica do Lami). Depois foram criadas outras áreas protegidas importantíssimas como o Parque Saint-Hilaire e o Parque Municipal Morro do Osso.
Entretanto, o orçamento das Unidades de Conservação (UCs), até hoje, não contempla estudos sobre a biodiversidade, nem mesmo as espécies raras e ameaçadas, e não dispõe de projetos locais consequentes na área de Educação Ambiental. A SMAM tem um corpo técnico altamente capacitado que deve ser valorizado. Na área técnica, os CCs - que ainda são muitos em várias secretarias - deveriam ser substituídos por concursados para dar maior qualidade ao trabalho, evitando-se as tradicionais pressões políticas no licenciamento ambiental, incompatíveis com a sustentabilidade ambiental.
A política ambiental deve ser vista de maneira transversal, holística, garantindo-se as leis que protegem a Natureza, em especial o Código Florestal, a Lei da Mata Atlântica e o conjunto de Políticas Ambientais. A SMAM e as secretarias que têm interface com a área ambiental devem definir, urgentemente, um planejamento conservacionista duradouro, antes que seja tarde. Outras secretarias, com papel importante na área ambiental, como a Secretaria do Planejamento, a Secretaria de Obras, a Secretaria de Indústria e Comércio, a Secretaria da Educação, etc, devem ter suas metas ambientais para um futuro sustentável (ou suportável) para o município articuladas entre si.
Deve-se terminar com a liberação de gigantescos condomínios, pois são, pela sua própria escala, incompatíveis com uma cidade que quer manter sua paisagem, a biota e a qualidade ambiental boa, ou razoável. Não é possível que não se estabeleçam limites máximos ao tamanho dos empreendimentos imobiliários. Dependendo do caso, estes empreendimentos deveriam chegar a um máximo de 5 ou 10 hectares, mas não as centenas de hectares recentemente aprovadas para cada um dos grandes condomínios. Existem loteamentos com mais de 250 ha liberados em Porto Alegre.
Nos últimos anos, com a velocidade acelerada de conversão de áreas naturais em áreas urbanas, estamos atingindo o patamar assustador de perda de mais de mil hectares a cada dois ou três anos, em Porto Alegre. Talvez daqui a 20 ou 30 anos não tenhamos mais nada a conservar. Alguém já pensou neste fato? Que qualidade de vida terá nossa cidade?
É necessário maior controle das ocupações irregulares, com acesso à moradia aos que as necessitam, em áreas onde o impacto seja menor. Também, não se deve deixar de lado a fiscalização de áreas de risco e naturais, por falta de veículos e/ou de pessoal.
Entre as áreas naturais e rurais, deve se pensar em manter os corredores ecológicos, que foram abandonados, por falta de vontade política e, por conseguinte, pela ausência de metas de conservação. Estes corredores devem ser mapeados e decretados, com urgência, antes que seja tarde.
As áreas rurais devem retornar seu papel e garantia de existência no Plano Diretor de Porto Alegre. Os planos diretores da cidade excluem, paulatinamente, as áreas anteriormente previstas com esta função ecológica e social em Porto Alegre. As feiras de hortigranjeiros disponibilizam parte destes recursos que poderiam constituir um Cinturão Verde em nossa cidade e, assim, evitaríamos que frutas e hortaliças dos portoalegrenses tenham que viajar mais de mil quilômetros, até chegar a nossas mesas.
A gestão municipal ambiental não é somente tema de governo, mas tema de políticas de Estado, devendo ser encarada com a seriedade necessária. Os temas socioambientais são transversais e necessitam de processos democráticos, de planejamento, pensando-se no futuro da biodiversidade e na qualidade de vida dos seus cidadãos.
A Sociedade Porto-alegrense deve acompanhar mais estes temas e cobrar a sua própria participação. Devemos assumir o compromisso em resguardar a integridade dos ecossistemas e da vida natural e rural que ainda resta no município para a garantia de melhor qualidade de vida para as atuais e futuras gerações.
Os professores do ensino básico e médio deveriam ter um envolvimento maior com este tema e instigar seus alunos, por meio de aulas ao ar livre, em ambientes rurais, naturais, histórico-culturais, e trabalhos práticos sobre a temática, urgentemente, a fim de superarmos nossa alienação da paisagem.
Por que não colocarmos a Meta de que 10 ou 20% de nossas aulas, de todas as matérias - que não somente aquelas ligadas à biodiversidade - não sejam mais dadas dentro de salas de aula fechadas e sim em ambientes que se relacionem à vida verdadeira, incluindo também história, arte, cultura, etc.?
Paulo Brack é biólogo, ex- técnico da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, professor do Instituto de Biociências da UFRGS e membro do Ingá- Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais.

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