Oficio InGá n. 14/ 2022
Porto Alegre, 19 de dezembro de 2022
Ao Secretário da Secretaria Estadual de Planejamento Governança e Gestão (SPGG) do RS, Sr. Cláudio Gastal.
À Secretária Estadual de Meio
Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul, Dra. Marjorie Kauffmann
À Promotoria de Meio Ambiente e à Coordenação de Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Daniel Martini
Assunto: Solicitação de suspensão da Concessão
do Jardim Botânico de Porto Alegre
Prezados(as)
Senhor(as):
Ao cumprimentá-los, o
Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) vem por meio desta solicitar a suspensão
do Edital de Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA), que será
submetido a um leilão por 30 anos, previsto para 22/12/2022, pelos motivos
relacionados abaixo.
O JBPA, com seus 36 hectares, é considerado um dos cinco
maiores jardins botânicos do Brasil e obteve, na década passada, a classificação A, conforme critérios que constam na Resolução Conama n. 339/2003[1],
possuindo equipe de pesquisadores e
técnicos de excelência, juntamente com o Museu de Ciências Naturais (MCN),
em parcerias com universidades e outros centros de pesquisa.
Também vale assinalar que corre na Justiça Estadual processos movidos pelo Ministério Público
Estadual, acompanhados por setores jurídicos de ONGs, quanto à precariedade da
estrutura restante e à indefinição da continuidade de serviços essenciais do
JBPA, já que o mesmo pertencia à extinta Fundação Zoobotânica, juntamente com o
MCN e o Parque Zoológico (Zoo), que sofreram desestruturação, a começar pela
extinção do cargo de Diretor do Jardim Botânico e demais chefias de
setores.
Como em outras situações, referentes a unidades de
conservação, o governo do Estado concede
parte do uso de uma área que protege um patrimônio natural, no caso a flora
nativa e exótica, por meio da Secretaria Estadual de Planejamento Governança e
Gestão (SPGG), que coordena o processo, mas não é a responsável por manter e
gerir o imenso acervo vivo de milhares de plantas, que foram sendo
plantadas desde 1958, atribuição esta da SEMA.
O projeto foi modelado pela Fábrica de Projetos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o apoio do Consórcio
Araucárias Parques Brasileiros, setores que
não demonstraram gabarito técnico para prever a continuidade e o avanço das
atividades de uma instituição como um jardim botânico, que incorpora pesquisas,
divulgação de temas voltados à flora e manutenção de acervos vivos de flora
nativa e exótica.
O governo do Estado alega falta de recursos para manter o
JBPA ou modernizá-lo, mas desconsidera
que os recursos necessários poderiam ser angariados por outros meios, como a
cobrança de multas ambientais, que totalizavam 26 milhões de milhões há cerca
de 7 anos[2],
mas em sua maioria prescreveu por falta
de mecanismos efetivos de cobrança.
Há que se considerar que, anteriormente a janeiro de 2017 - momento em que foi aprovada a Lei n. 14.982 de
16/01/2017 que extinguia a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB) - muitos recursos eram obtidos por projetos
de pesquisa e de meio ambiente, entre eles Projetos Pró-Guaíba, Projeto Mata
Atlântica – KFW, Projeto RS Biodiversidade (GEF- Banco Mundial), CNPq, entre
outros. Atualmente, o governo não promove mais projetos semelhantes em prol de
nossa biodiversidade e vários funcionários do MCN e JB foram demitidos. Vivemos
um apagão em relação à proteção de nossa biodiversidade?
A iniciativa
de concessão do Jardim Botânico de
Porto Alegre partiu de um modelo de
negócios, que atropelou o seu Plano
de Manejo, sendo estruturada a última
proposta sem base em uma avaliação ou consulta ao próprio quadro técnico tanto
do JBPA bem como do Museu de Ciências Naturais (MCN) que atuam conjuntamente na pesquisa
de flora e fauna, biodiversidade e manutenção de coleções vivas e de herbário e
de acervos de amostras fundamentais à ciência.
Em um dos documentos de modelagem da concessão, no perfil dos
estudos coordenados pelo BNDES (Produto 1 – Avaliação Comercial e Estudo de
Demanda – Parte I), as palavras
“consumo” e “consumidor” são citadas 103 (cento e três vezes), enquanto as palavras “plantas ameaçadas”
ou “espécies da flora ameaçadas de extinção” inexistem nos documentos. Que Educação Ambiental desenvolveremos em
um Jardim Botânico se nosso intuito principal é o consumo e deixamos de lado a
conservação de plantas que estão em situação de ameaça??
Em 2018, um Trabalho de Conclusão da bióloga Júlia Fialho
Soares[3],
com parceria dos técnicos do Jardim Botânico, contabilizou coleções que abrigam mais de 140 espécies de plantas ameaçadas de
extinção “ex situ” (fora da
natureza) a partir do Decreto Estadual N. 52.109/2014, com base em 804 espécies
ameaçadas para o RS, o que perfaz cerca
de 17%, em categorias como criticamente ameaçadas, em perigo e vulneráveis.
Cabe lembrar que a Convenção da
Diversidade Biológica (CDB) (Metas da Biodiversidade 2020 ou Metas de Aichi)
recomenda que 75% de espécies estejam mantidas em condições “ex situ", ou
seja, em Jardins Botânicos. A
defasagem é evidente. O público deveria ser estimulado a conhecer a importância
do tema, mas a concessão não prevê esta ênfase. A concessão prevê transformar a
área em um espaço de consumo e desvio de finalidades, como a implementação de
restaurantes, criatórios e exposição de fauna semi-cativa
No projeto do BNDES,
não consta sequer o nome dos técnicos e a respectiva formação profissional, o que o desqualifica ainda mais,
quando se constata que os técnicos
concursados para o Jardim Botânico não foram consultados e não há uma
análise técnica que avalie eventuais benefícios da proposta e também riscos ou
fragilidades decorrentes da mesma. Como agravante, a Comissão de Gestão do Plano Diretor foi extinta na última edição
do Plano Diretor.
Não há nenhum grupo
técnico da SEMA, conhecedor deste patrimônio, que seja designado para
controlar, acompanhar ou definir os limites fora dos objetivos de um jardim
botânico, que não comprometam o acervo vivo do
mesmo, frente ao futuro concessionário.
Um dos pontos apresentados na concessão, que também possui potencial risco, é o incremento de realização
de atividades de bilheteria como espetáculos artísticos e eventos não
necessariamente relacionados à função de um jardim botânico. Da mesma
forma, não há estudo de capacidade de
carga do parque Jardim Botânico (previsto no item 6.1.2. do caderno de
encargos). Neste item, também cabe destacar que não há avaliação dos possíveis impactos de perturbação sobre a
fauna, em especial aves, decorrentes de eventos noturnos ou mesmo diurnos.
É fundamental destacar que o Jardim Botânico consta como Patrimônio
Ambiental do Estado[4] (Artigo 8o da Lei Est. No
14.982/2017), o que implica em vedação à destinação diversa que não a
manutenção e a ampliação de seu acervo, e que diagnósticos e estudos para
eventuais concessões deveriam ser assinados por profissionais com experiência
na área ambiental, preferencialmente com ART (Anotação de Responsabilidade
Técnica), além do fato de que a condução
do trabalho deveria acompanhar uma Termo de Referência, que por sua vez deveria
ter sido elaborado pela equipe técnica da SEMA. Havíamos solicitado à SEMA os possíveis documentos da área do corpo
técnico concursado e especialista, que avaliasse a viabilidade de concessão e
também solicitamos os nomes e a formação profissional dos membros das equipes
de técnicos privados das empresas contratadas pelo BNDES que fizeram essa análise
e proposição, mas não tivemos retorno. Assim, fica sob suspeição de que a
decisão pela concessão, no modelo atual, trata-se de uma demanda política, de
governo, sem embasamento técnico.
Cabe destacar que a negligência com o Patrimônio do Jardim
Botânico não é de agora e se agravou, já que vários espaços e atividades foram
sendo desativadas nos últimos anos. Como exemplo, nunca houve o conserto do
muro com a Vila Juliano Moreira, cobrado pela Justiça, previsto desde, pelo
menos, 2016, o que implica em invasões e vandalismos.
Não há plano de
ampliação e manutenção de coleções feitos pelos curadores, tampouco incremento
à irrigação em todo parque, constatando-se que há um déficit principalmente
arboreto e em novas áreas onde se tentou ampliar coleções nos últimos anos.
No que toca ao manejo da vegetação, não consta nenhuma restrição ao uso de espécies de plantas exóticas
invasoras no parque, inclusive para comercialização, lembrando-se que
atualmente este é um ponto que requer remoção e manejo urgentes de plantas
exóticas que se espalham no Parque (Ochna
serrulata, Cinnamomum verum, Sysygium cumini, Ligustrum lucidum, etc.).
Outro aspecto a considerar é que os valores de ingresso serão majorados em pelo menos três vezes o
valor atual, a fim de garantir os benefícios do concessionário. A empresa que ganhar o leilão de concessão
incrementará também atividades não necessariamente ligadas ao tema do acervo e
das funções de um jardim botânico, já que empresas privadas não são
instituições de interesse público e, portanto, visam fundamentalmente o lucro e
os negócios. Neste sentido, paira outra
preocupação referente a ausência de previsão de isenção para ingresso de
instituições de ensino ao Parque JBPA, em
atividades didáticas, o que representaria um retrocesso, dado o histórico de
isenções para atividades didáticas, o
que poderá provocar, inevitavelmente, a inibição do número de visitantes
estudantes e grupos ou pessoas carentes que antes tinham seu acesso
gratuito garantido.
Por outro
lado, não há estudo que demonstre que a
reserva de cerca de 1 % do valor do ingresso será suficiente para manter as
atividades de rotina e manutenção das coleções.
Paralelamente à
iniciativa da concessão, não há perspectivas de parte da SEMA no sentido de
seguir nas atividades definidas pela Resolução Conama n. 339/2003 que embasam a
Categoria A para o JBPA, incluindo reforço às pesquisas,
recursos financeiros e materiais para excursões de campo para coleta de
materiais para reposição, enriquecimento e pesquisa referente ao acervo, como é
condição que consta na referida Resolução.
A garantia da
manutenção das coleções vivas não está clara e deveria incluir recriação de áreas
consolidadas com coleções botânicas, como já ocorreu com o orquidário (coleção
de Orquídeas) e Gensneriário (coleção de Gesneriáceas) desativados, e que não
deveriam sofrer outro tipo de finalidade, recebendo construções como no caso de
os espaços serem ocupados por restaurantes.
A ausência de uma forma
objetiva de controle e acompanhamento formal de parte do Estado Concedente
representa enormes riscos. Ou seja, o poder concedente (Estado do RS) não apresenta clareza e não
incorpora a necessidade de que exista uma Comissão Técnica que contemple a
retomada das curadorias das coleções, e defina o papel da SEMA e também
usuários, junto à concessionária, a fim de garantir várias atividades
essenciais nem sempre previstas em um rol de concessão de um jardim
botânico.
A fiscalização de um
contrato de Concessão deveria ser função do Estado, não podendo ser transferida
para outra empresa,
mesmo que formalmente designada e autorizada pelo Poder Concedente, ou seja, o
Estado do Rio Grande do Sul.
Lembramos que a
fragilidade deste processo de concessão se agrava ainda mais com a condição de
que o atual Jardim Botânico de Porto Alegre não tem mais direção e perdeu seu organograma,
não existindo formalmente a garantia da participação de técnicos e demais
servidores do JB em nenhuma instância ou decisão. Assim, dependendo do governo e/ou
concessionário, o Plano Diretor do Jardim Botânico poderá continuar sendo
alterado sem consulta à área técnica.
As fragilidades são ainda maiores quando se constata que no Edital de contratação da empresa
concessionária, as obrigações muitas vezes não ficam claras. Como exemplo,
verifica-se no item 6.10.2., onde consta que “árvores, maciços arbóreos, espaços abertos, gramados, arbustos, jardins
e elementos hídricos, são parte constituinte de seu ecossistema, sua paisagem, devendo ter suas características, bem como
o seu patrimônio natural, mantidos e preservados pela CONCESSIONÁRIA, sempre
que possível”. E se não for
possível? Quem define esta possibilidade é a boa vontade da empresa
concessionária? No item 6.10.7
também consta que “a CONCESSIONÁRIA poderá apoiar (grifo nosso), quando necessário e
solicitado, o PODER CONCEDENTE nas ações de manejo, conservação ambiental e
proteção dos recursos naturais e áreas verdes da ÁREA DA CONCESSÃO com a finalidade de proteger e conservar a
integridade do patrimônio natural, histórico e cultural do JARDIM BOTÂNICO DE
PORTO ALEGRE integrantes da CONCESSÃO e, consequentemente de suas atrações
naturais, históricas e culturais, disponibilizando sua equipe de conservação de
áreas verdes, manutenção e seus equipamentos”.
No que se refere aos Encargos para Categoria “A”. item 8.1.1., “Nos
termos e limites disciplinados no CONTRATO, caberá à CONCESSIONÁRIA assumir os
ENCARGOS ACESSÓRIOS da CONCESSÃO, relacionados ao apoio e custeio de ações e
iniciativas que não tenham sido delegadas pela CONCESSÃO, destinadas ao
cumprimento das missões e requisitos de Jardins Botânicos categoria “A”, nos
termos da Resolução CONAMA n.º 339/2003 [...]”. Quem fará a fiscalização ou o acompanhamento das metas ou encargos
assumidos pela concessionária?
Assim, os “ENCARGOS ACESSÓRIOS
deverão ser implementados no JARDIM BOTÂNICO DE PORTO ALEGRE a partir da
segregação e destinação de percentual da receita operacional bruta (ROB)
auferida pela CONCESSIONÁRIA, competindo ao PODER CONCEDENTE a definição da
pauta anual de emprego dos recursos”. E
se não houver esta receita, como ficará o cumprimento destas metas??
Conclusão
Diante dos diferentes itens acima que destacam as incertezas, os inúmeros retrocessos, os desvios de função e a consequente inviabilidade do atual processo de Concessão do Jardim Botânico de
Porto Alegre, vimos solicitar a impugnação e a interferência do Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul para a interrupção do Edital de
Concorrência Pública Internacional Nº 0032/2022, que visa a Concessão de Uso de Áreas, Atrativos e Instalações, precedida da
realização de Investimentos, destinada à Requalificação, Modernização, Operação
e Manutenção do Jardim Botânico de
Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul.
Cordialmente
Paulo Brack
Coordenador Geral do InGá
[1]https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Resolucao/2003/res_conama_339_2003_jardinsbotanicos.pdf
[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/07/rs-nao-cobra-e-r-26-milhoes-em-multas-ambientais-prescrevem-4812953.html
[3] Soares, J. F. (2018) A flora do Rio Grande do
Sul ameaçada de extinção representada nas coleções ex situ do Jardim Botânico
de Porto Alegre. TCC. Biologia. UFRGS. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/230439