quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A pandemia do coronavírus, a saúde, o carvão mineral e outros poluentes

 Na terrível pandemia de coronavírus que assola as sociedades humanas do planeta, cabe refletirmos sobre algumas questões biológicas, ecológicas e políticas interrelacionadas ao ataque do vírus nas populações humanas, temas estes muitas vezes esquecidos ou não devidamente interconectados. Ou seja, em nosso cotidiano os elementos ligados à saúde de nossos “ecossistemas corpóreos” estão afastados das condições ecológicas (qualidade ambiental) e das políticas públicas conjuntamente disfuncionais (SUS em crise crônica, ausência de monitoramentos de agentes poluentes, falta de incentivo de pesquisas nas áreas de saúde ambiental, etc.).

Independentemente da origem do SARS-Cov-2, ainda polêmica, pelo menos deve-se levantar o tema do desequilíbrio ambiental e o aumento da vulnerabilidade dos organismos, sejam eles outros animais, como aves e suínos em condições de confinamento, como foi aos casos das chamadas “gripe aviárias”[1] (H5N6, H5n8) e “gripe suína” (H1N1), ou mesmo humanos, em condições de aumento da alimentação deficiente ou mesmo alvo de fragilização da saúde em decorrência da poluição aérea e de todo o tipo.


No caso dos animais, é evidente que milhares de aves, porcos ou bovinos, atualmente confinados e debilitados em sua condição de vida, são muito mais propensos a essas doenças. As condições convencionais da criação de animais, em escala industrial para a produção de carne, debilitam os sistemas de defesa, constituindo-se em um barril de pólvora para os contágios em massa e mutações de vírus e a seleção natural de cepas mais infecciosas

Muito provavelmente, estejamos ultrapassando em muito a sustentabilidade da saúde animal e ambiental a partir dos sistemas modernos de criação de animais confinados e com uso de insumos e de artificialização ambiental extrema, onde aumentam os riscos e a vulnerabilidade dos animais aos agentes patogênicos, sem falar nos aspectos éticos de tais confinamentos, onde torna-se evidente o sofrimento e as más condições de vida de suínos, aves, gado, etc.

Por outro lado, tanto animais domésticos como humanos temos sistemas imunológicos naturais, constituídos por um conjunto razoavelmente potente de anticorpos de defesa a vírus e microorganismos patogênicos. Entretanto, o funcionamento destes sistemas biológicos depende da saúde interna dos organismos potencialmente hospedeiros de agentes infecciosos. Este arsenal de defesa, constituído por células do sistema linfático e também pela saúde das células alvo de doenças, relacionadas às condições de maior ou menor penetrabilidade e vulnerabilidade frente aos vírus nos sistemas corpóreos (ex. células do epitélio da garganta), depende da boa nutrição e da vida saudável dos animais, inclusive os humanos[2]. Neste caso, a própria OMS admite a necessidade de incremento de alimentos sadios e não industrializados[3], o que no Brasil destacaríamos a importância de alimentos orgânicos e agrobiodiversos[4].

Lamentavelmente, as políticas de produção de alimento no Brasil desfavorecem a sustentabilidade representada pela produção mais saudável da agricultura familiar e incrementa a produção industrial de alimentos ultraprocessados e com baixos conteúdos de vitaminas e outros constituintes fundamentais. A extrema industrialização possui elevada carga de produtos sintéticos e favorece a liberação de radicais livres, provocando estresse oxidativo, matando células e alterando seu núcleo, com potenciais agentes carcinogênicos, ou mesmo afetando negativamente as células do sistema imunológico. Quem acaba sendo mais prejudicado, com falta de acesso a alimentos sadios, resultando em maiores deficiências nutricionais e baixa defesa imunológica, são as populações menos favorecidas, que representam a maioria em países como o Brasil.

No caso da poluição, principalmente aquela que atinge o sistema respiratório, é por demais conhecido que o comprometimento de pulmões, brônquios e o enfraquecimento do sistema imunológico por uma gama enorme de agentes poluentes. Segundo o Instituto Max Plank, morrem anualmente 8,8 milhões de pessoas em decorrência de doenças associadas à poluição aérea no mundo[5]. Os poluentes aéreos e os produtos tóxicos de todas as naturezas propiciam a facilitação de doenças infecciosas e, neste caso, também o SARS-CoV-2. Talvez não seja por acaso que a metrópole de São Paulo, a que carrega maior carga de poluentes aéreos do país, seja o epicentro dos casos de Covid-19 no Brasil. O Professor Paulo Saldiva, da USP, uma das maiores autoridades no assunto, alerta, desde 2008, para a morte de 12 pessoas por dia decorrentes da poluição aérea, somente naquela capital[6].

No caso do Rio Grande do Sul, além dos poluentes já existentes no ar, no solo, na água, no meio ambiente e nos alimentos (agrotóxicos), temos uma situação tremendamente ameaçadora que está relacionada aos principais grupos de risco do novo coronavírus. Trata-se de populações já atingidas pela poluição da mineração e/ou queima de carvão mineral, com comprometimento de seus pulmões e sistema respiratório, em cidades como Candiota, Arroio dos Ratos, Butiá e Minas do Leão, entre outras. Esta situação poderá piorar na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde os índices de poluição aérea já são altos, com a possível instalação da maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, o Projeto Mina Guaíba, previsto para Eldorado do Sul e Charqueadas.

O uso do carvão mineral compromete não só o sistema respiratório, circulatório e neurológico de mineiros, que trabalham em sua extração, mas também de populações do entorno das minas ou termoelétricas a carvão, em especial as crianças que estão em pleno desenvolvimento pulmonar e dos sistemas cardiocirculatórios e neurológicos, como alerta documento da Associação dos Médicos pela Responsabilidade Social nos EUA[7]. Segundo Petsonk et al. (2013)[8], a mineração de carvão está relacionada a uma série de doenças causadas pela inalação de poeira de minas de carvão, provocando doenças pulmonares intersticiais históricas (pneumoconiose do trabalhador de carvão, silicose e pneumoconiose de poeira mista). Desenvolvem-se, nos mineiros de carvão, a fibrose difusa relacionada à poeira e doenças crônicas das vias respiratórias, incluindo enfisema e bronquite crônica. Doenças como estas, estão associadas à liberação de poluentes, principalmente aéreos, como: material particulado (poeiras da mineração ou pluma derivada da queima); gases sulfurosos, nitrogenados, e ozônio, derivados da mineração ou queima de carvão, e que prejudicam as vias respiratórias; o mercúrio e os demais metais pesados, que têm impacto negativo sistêmico no organismo humano, entre outros. Cabe destacar que a emergência climática, decorrente de combustíveis fósseis como o carvão, causa maior debilidade à saúde e menor resiliência ecossistêmica, o que é um prato cheio para este e outros vírus e patógenos.



Inclusive, caberia analisar os casos não raros de Covid-19 que vem afetando, de forma surpreendente, menores de idade ou mesmo jovens no Brasil, ao contrário de outros países. Estariam os jovens brasileiros com maior debilidade de saúde decorrente de agentes poluentes ou da poluição ou a outras más condições de vida no país?

Assim, cabe analisarmos a situação da pandemia e das crises ecológicas de forma mais ampla e integrada, com base na ciência, e fortalecendo-se órgãos de vigilância sanitária, pesquisas em saúde e meio ambiente, e verificarmos a situação tanto do sistema imunológico humano, animal, qualidade ambiental e o direito a um sistema de saúde digno, infelizmente em processo de sucateamento no Brasil (principalmente após a EC 95/2016, que congelou para baixo os gastos em saúde educação). E na perspectiva de superação da pandemia do Covid-19, rever os descaminhos da economia que desconsidera os limites da natureza, aliando-se obrigatoriamente à ecologia, abandonando os agentes poluentes como o carvão e todas as formas de ameaças à saúde humana e dos demais seres vivos.



[8] PETSONK, E. L.; ROSE, C., and COHEN, R. Coal Mine Dust Lung Disease. New Lessons from an Old Exposure. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicin. Vol. 187, Issue 11, (2013): 1178–1185. Disponível em: https://www.atsjournals.org/doi/abs/10.1164/rccm.201301-0042CI#readcube-epdf.  Acesso em 02 de jul. 2019

 

domingo, 27 de setembro de 2020

Revogação sumária de Resoluções do Conama e ecossistemas costeiros sob ataque do governo federal

Paulo Brack*

Mais uma vez o governo federal inova no retrocesso em matéria de meio ambiente, via seu ministro, Ricardo Salles, condenado em primeira instância por improbidade administrativa.

Em regime de urgência foi colocada na pauta do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) para esta segunda-feira, 28 de setembro, uma proposta de resolução que prevê a revogação das Resoluções do Conama n. 284/2001 e as de números 302 e 303 de 2002. Na realidade, desde o ano passado, o ministro já montava a derrubada de normas e resoluções infra legais (abaixo das leis), a partir do Decreto no.10.139/2019, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro. Porém, a partir de suas declarações que acabaram sendo vazadas no final de abril de 2020, o atual ministro de Meio Ambiente parece ter levado a sério o termo “passar a boiada” em matérias ambientais.



O Conama, que define normas e critérios ambientais, já foi esfacelado em sua estrutura em meados de 2019. Em decorrência desta fragilização, o governo e os setores empresariais tem ainda mais poder de decisão. O Conselho teve seus membros reduzidos de um pouco mais de 96 para 23 representantes. As entidades civis perderam representação. Entidades da sociedade civil tiveram suas representações caírem de 23 para 4. Foi imposta a escolha das poucas entidades via sorteio. Os Estados também perderam representação. Em um país de proporções continentais, a composição anterior tinha o objetivo de garantir maior representatividade aos diferentes segmentos da sociedade.

Se forem revogadas estas resoluções, em especial a Resolução 303/2002, estariam sendo derrubados artigos importantes de proteção a áreas de preservação permanente (APPs) de dunas, restingas e manguezais do litoral brasileiro. Cabe destacar que a referida Resolução define proteção contra qualquer construção em dunas e restingas, em uma zona de 300 metros a partir do nível mais alto do mar para o continente, em áreas que não urbanas de municípios litorâneos. Com isso, abre-se espaço para a especulação imobiliária desenfreada em faixas de ecossistemas litorâneos além de ocupação ainda mais indiscriminada de áreas de mangues para produção comercial de camarão por grandes empresas e em vegetação de praias.

É importante destacar que a Zona Costeira é Patrimônio Nacional, conforme o Artigo 225 da Constituição Federal, juntamente com as formações de restingas, também amparadas pela Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006).

A partir desta decisão, podemos esperar que a flora e fauna exclusiva e endêmica destas áreas estejam em situação ainda mais crítica de ameaça de extinção, tendo com situação provável de prejuízo às populações humanas, com o aumento do nível do mar (com aumentos de 0,5 a 1,5 m até 2100, segundo o IPCC), causado pelo aquecimento global, com consequências dramáticas em áreas urbanas litorâneas, ainda mais agora, sem a presença de barreiras de dunas nas zonas próximas ao mar.

A justificativa do governo, que está expressa em documento da consultoria jurídica do MMA (CONJUR-MMA), com a alegação de que essas resoluções teriam “perdido a validade” a partir da Lei 12.51/2012 (Lei de Proteção à Vegetação Nativa, ou “Código Florestal”). A tentativa já tinha sido realizada em 2017, um ano após o golpe que retirou a Presidente Dilma Rousseff. Entretanto o TRF 4 apresentou parecer contrário a uma demanda no mesmo sentido, a partir de ação da companhia de abastecimento de água de São Paulo (CETESB), autuada por intervenção em desconformidade com a legislação, tentando deslegitimar a resolução 303/2002.

Deve-se considerar que estas resoluções são instrumentos legais concretos que vêm protegendo, com maior efetividade, a nossa Zona Costeira.

O grande lobby de megaempreendimentos como resorts, condomínios fechados de alto luxo e empresas de criação de camarão do Nordeste deseja flexibilizar a legislação. Entretanto, esquecem que a Constituição Federal define, em seu artigo 225, também a proteção à diversidade biológica, às espécies ameaçadas, destacando-se neste caso, no sul do Brasil, o lagartinho-das-dunas, o tuco-tuco-branco, o sapinho-da-areia, as dezenas de aves migratórias que se abrigam em pequenas dunas com plantas também exclusivas e adaptadas à elevada salinidade. Existem outras tantas centenas ou milhares de espécies de flora e fauna exclusivas no litoral brasileiro.

No que se refere a possibilidade de revogação da Resolução Conama n. 284/2001, desapareceriam os critérios federais para licenciamento ambiental de empreendimentos de irrigação. Ganharia o agronegócio imediatista e perderiam ecossistemas aquáticos e populações que se abastecem de águas em uma mesma bacia que tem disputa pelo escasso recurso água, bombeado para irrigação. Quanto à Resolução 302/2002, entre outras perdas, não haveria definição da faixa de Áreas de Preservação Permanente junto a reservatórios de água.

Como afirma Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Proam, “todas essas resoluções mereceriam uma discussão aprofundada". E cabe lembrar que as resoluções em curso, sujeitas à revogação, foram discutidas e construídas amplamente durante anos. Agora, o governo usou o instrumento de regime de urgência, o que inviabiliza, inclusive, o pedido de vistas à matéria por parte de qualquer membro do Conama.

O retrocesso em temas socioambientais e o descumprimento da Constituição Federal parecem não ter fim neste governo. A flexibilização das normas terá efeitos devastadores à proteção das Zonas Costeiras, à biodiversidade e as condições de maior vulnerabilidade das habitações nas zonas litorâneas, com a elevação evidente do nível do mar. Mais uma matéria a ser judicializada, no país que vê desaparecer sua democracia.  

 * Professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências - UFRGS, membro da coordenação do InGá (www.inga.org.br) 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O Jardim Botânico de Porto Alegre, sem estrutura e futuro: um barco à deriva?

O Jardim Botânico de Porto Alegre completou 62 anos de vida, neste 10 de setembro de 2020. Entretanto, nossa Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, que abrigava o Jardim Botânico (JB), o Museu de Ciências Naturais (MCN) e o Zoológico (Zoo), foi submetida à extinção, pelo governo José Ivo Sartori, em 2017.

A extinção da FZB e outras fundações estaduais foi autorizada pela Lei nº 14.982 de 16 de janeiro de 2017. Na época, a base do governo, que incluía o PSDB que administra o Estado, foi também favorável ao término da FZB e outras fundações, a despeito de amplo movimento de resistência contra a proposta do executivo estadual, já que as instituições desempenhavam papel importantíssimo para as políticas públicas em saúde, economia, meio ambiente e recursos humanos. 

 

Mesmo assim, no texto da Lei, o Artigo 8º garantiu que os três setores da FZB (JB, MCN e Zoo) fossem “declarados como integrantes do Patrimônio Ambiental do Estado do Rio Grande do Sul a serem preservados, sendo vedada destinação diversa”. Então, segundo esta e as demais leis e acordos internacionais afetos à biodiversidade, tratados com a expertise exclusiva por parte dos técnicos dos três setores citados, este patrimônio não pode ficar só no papel, ou seja, tem que ser funcional!

Posteriormente, o Decreto nº 53.756, de 18/10/2017 encaminharia o encerramento das atividades da FZB, determinando que as obrigações e os direitos da FZB ficassem incorporados à então Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema), dentro de uma desconhecida Divisão de pesquisas e manutenção de coleções científicas, no Departamento de Biodiversidade (DBio). Quem conhece esta divisão? Ademais, o chefe da Divisão acumula agora a chefia do JB e MCN, e sendo alguém que não seja do quadro técnico concursado, vai embora quando finaliza o governo...

Contudo, o governo atual não abriu mão em dar sequência ao processo de demissão de todo o quadro da ex-Fundação, permitindo ou fomentando que os trabalhadores fossem designados, conforme a necessidade de serviço, para outras áreas da administração direta do Estado. Entenda-se aqui que os acervos vivos de plantas e animais ou de coleções do Museu ficaram ainda mais desprotegidos, após a série de aposentadorias e demissões a partir de 2016. Vários técnicos do JB e MCN foram sendo desligados definitivamente ou transferidos para a SEMA, com prejuízos graves na pesquisa e no acompanhamento, cuidados e gestão de milhares de plantas, algumas delas correspondendo a cerca de 140 espécies de plantas ameaçadas de extinção, mas agora em ex situ (fora da natureza) neste patrimônio e outras centenas de espécies ali abrigadas com exclusividade fora da natureza.

Na Justiça, o Ministério Público cobra oficialmente a manutenção das atividades que garantem a qualidade do trabalho dentro da Categoria “A” para o Jardim Botânico. Porém, a retirada de pesquisadores e do enfraquecimento do status de instituições de pesquisa (JB e MCN) vem inviabilizando a continuidade de bolsistas de iniciação científica, perdendo-se espaços para estágios, bolsas e também auxiliares fundamentais nas pesquisas em áreas que já sofrem com lacunas de pessoal envolvido com a Conservação da Biodiversidade.

O Jardim Botânico perdeu toda a estrutura interna, direção, chefias e responsáveis pelos diferentes setores, plano de carreira e reposição de pessoal em decorrência da extinção da FZB e pelas aposentadorias. Incerteza evidente e desestímulo para seguir em tarefas de coletas de sementes, inclusive de espécies ameaçadas.

O dedicado técnico Ari Nilson, com mais de quatro décadas de trabalho pelo resguardo da flora nativa nos espaços do JB, é exemplo de alguém que dedicou a maior parte de sua vida às nossas plantas, em condição de cultivos inéditos, e acumula experiência como ninguém. As sementes que ele coleta, com as equipes de técnicos do JB e MCN, vão ao viveiro, também precarizado pela ausência de pessoal e material. O berçário das mudas ficará ao deus-dará? Quem substituirá a coleta de sementes, já que outros dois técnicos se aposentaram recentemente? Se ele for embora, junto com seu colega Júlio, que conhece e cuida das mudas de espécies nativas, como ninguém, quem vai coletar as plantas nos rincões mais longínquos que sobraram frente à devastação galopante nos biomas Pampa e Mata Atlântica do Rio Grande do Sul? O Carandaí, a petúnia-vermelha, o butiá de Coatepe, a tibuchina-das-dunas, a grápia, os caraguatás-das pedras, as dezenas de espécies de cactos ameaçados, a canela-imbuia, as rainhas-do-abismo, quem vai saber encontrar estas plantas, se não o Ari Nilson?

Técnico Ari Nilson, quatro décadas dedicadas às plantas do Jardim Botânico, patrimônio de conhecimento inigualável. 

Ficou quase inviável a aquisição de pequenos materiais, inclusive para obter substrato para plantas. O que demorava uma ou duas semanas para ser adquirido, hoje demora meio ano ou mais. Resultado: plantas podem acabar morrendo por falta de substrato e de pessoal para cuidados especiais. Será o Pré-colapso de nosso Jardim Botânico de Porto Alegre?

Na situação da Sexta Extinção em Massa e negligenciando as Metas da Biodiversidade 2020 da ONU, é lamentável que o Estado do Rio Grande do Sul deixe a situação da manutenção das maiores coleções de plantas, como cactáceas, bromeliáceas, do Sul do Brasil em situação de incerteza, como um barco à deriva...

Necessitamos de um Plano de Recuperação do Jardim Botânico, urgentemente. A sociedade tem que saber que a instituição deve ser reestruturada, junto com o MCN e Zoo. Se o Governo atual não recuar com o processo potencial de demissão dos funcionários do JB, MCN e Zoo, iniciado por Sartori, a experiência de décadas de conhecimento de técnicos estará indo embora, já que sobra estímulo à demissão de funcionários. Sem técnicos de carreira, sem estrutura e recursos, que entravam via projetos da FZB, as condições de trabalho vão ficando inviáveis e a memória do Jardim Botânico vai-se embora, sem retorno.

Curioso que o governo do Estado queira atrair empreendedores para um Estado que enfraqueceu seu Código Estadual de Meio Ambiente e segue assistindo a morte lenta do seu Jardim Botânico. Na lógica de facilitar os negócios e deixar o Estado na inanição, podemos esperar o pior cenário, que será a inviabilidade de manter não só a categoria A, mas toda a coleção de mais de meio século de esforços de centenas de pessoas que empenharam parte de sua vida nas coleções do Jardim Botânico.

Assim, fica o recado: ou a SEMA e o Governo do Estado retomam uma Secretaria de Meio Ambiente fortalecida, longe da sombra de uma Infraestrutura convencionalmente insustentável, e cumpram o Artigo 8 da Lei que garante a manutenção dos três setores da FZB, ou mandem os empreendedores embora, pois aqui a peleia vai ser pra valer!!



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

AGRONEGÓCIO, DEPENDÊNCIA E MORTE?

Em 7 de setembro de 2020, dia que se comemorou a Independência do Brasil, no contexto de destruição crescente da Amazônia, Pantanal, Cerrado, Pampa, Mata Atlântica e Caatinga, com ataque aos povos indígenas, campesinos e ambientalistas, nada mais ilustrativo que mostrar os preços dos alimentos. O agronegócio e a política econômica impulsionam para cima os preços de feijão e do arroz. Alguns tipos de feijão ultrapassam 20 reais o Kg (Figura 1), enquanto o arroz chega a mais de 5 reais o Kg. Afinal, o agronegócio produz alimentos?

Figura 1. Mapa da expansão da soja no Brasil (2000-2-15) e preço do Feijão vermelho em supermercado de Porto Alegre (setembro de 2020).

Na realidade, o agronegócio é fomentado para a exportação de grãos e demais commodities. Como agravante, o valor do dólar nas alturas acaba empurrando para cima o preço de alimentos. Sendo melhor pagos no exterior, e com áreas em redução, terminam sofrendo escassez no País, o que os torna ainda mais caros, com prejuízos evidentes à população mais pobre, que luta para se sustentar com saúde frente à pandemia. E com a progressiva desindustrialização do país, ficamos cada vez mais reféns da exportação de matérias primas, como no caso os grãos, em especial a soja. Um círculo vicioso é estimulado por políticas governamentais que beneficiam corporações e setores especulativos do mercado de alimentos. A bancada ruralista aproveita para receber apoios do setor empresarial ligado à venda de insumos.

Quanto à oferta de grãos, em dez anos, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimentos (CONAB), tivemos enorme redução na área plantada de alimentos para os seres humanos, como no caso de arroz, feijão, mandioca e trigo. Tal situação do Brasil é semelhante à de outros países do Cone Sul exportador, fornecedores de commodities.

Nas áreas de plantios de arroz e feijão (alimento dos brasileiros), entre as safras de 10/11 e 19/20, reduziu-se, respectivamente, de 2,733 a 1,666 milhões de hectares (- 39%), e de 3,592 a 2,920 milhões de hectares (-19%) (Figura 2). A situação do feijão, produzido pela agricultura familiar, mas que sofre o êxodo rural, pela falta de apoio aos pequenos no campo, exige que em alguns anos o Brasil tenha que importar o grão da Argentina ou da China.




Figura 2. Área plantada (milhões de hectares) e por culturas de grãos no Brasil (Fonte: relatórios da produção de grãos - CONAB, entre 2010 e 2020)

Enquanto isso, a área dos gigantescos plantios de soja, fundamentalmente para exportação e alimentação de animais confinados, saltou de 24,078 para 36,949 milhões de hectares (+53%). O milho, também usado principalmente para alimentação animal, principalmente em confinamentos industriais, cresceu de 12,683 para 18,505 milhões de hectares (+46%). Outro alimento para seres humanos, o trigo segue praticamente com a mesma área plantada há 10 anos, alcançando atualmente 2,330 milhões de hectares, exigindo importação do produto, apesar do crescimento da população brasileira em 11,6%, entre 2010 e 2020.

Curiosamente, a soja e o milho correspondem, quase totalmente, a sementes transgênicas que pertencem (98%), a gigantescos oligopólios transnacionais estrangeiros, que vêm transformando ecossistemas diversos em paisagens uniformes, com crescente uso de insumos e contaminação por agroquímicos (Figura 3).



Figura 3. Imensos plantios de soja ao longo das estradas do Planalto do RS. Empobrecimento da biodiversidade e alta carga de agrotóxicos, invadindo inclusive área de domínio público das estradas.

O Brasil vem sendo o país com maior consumo absoluto de agrotóxicos desde 2008, impulsionado pelas culturas de exportação soja, mesmo com a promessa de que os transgênicos iriam diminuir o uso destes produtos. A contaminação dos agrotóxicos dá-se nos ecossistemas, nos agricultores e prejudica cronicamente os consumidores.



Figura 4. aumento da quantidade de agrotóxicos comercializados no Brasil (149%) entre 2007 e 2014.

O Mercado de agrotóxicos no Brasil corresponde a cerca de 10 bilhões de dólares, ou seja, alcança mais de 50 bilhões de reais, gozando de isenções ficais.

Segundo a Organização Mundial da Saúde o uso de pesticidas causa cerca de 70.000 mortes por envenenamento a cada ano e pelo menos sete milhões de casos de doenças não fatais agudas e de longo prazo, conforme declarado na avaliação. No Brasil, segundo o Relatório Nacional de vigilância em Saúde de Populações Expostas aos Agrotóxicos, do Ministério da Saúde (2018), ocorreram notificações de intoxicação humana por agrotóxicos em número de 84.206 casos, entre 2007 e 2015, segundo o Ministério da Saúde, vindo a óbito oficialmente 2.804 pessoas devido a contaminações diversas. Cabe lembrar que existe estimativas de subnotificações, sendo que para carda registro considera-se que outros 50 casos não sejam notificados. Os agrotóxicos podem causar uma série de doenças, como o câncer, dependendo do produto utilizado, tempo de exposição e quantidade absorvida pelo organismo. Atualmente, também a situação da contaminação de colmeias está trazendo a morte de centenas de milhões destes organismos no Brasil e no mundo.


Figura 5. Comercialização de agrotóxicos no Brasil entre 2007 e 2014, e incidência de notificação por intoxicações por 100.000 habitantes

A agricultura moderna e industrial, tratada por setores da grande mídia como a “locomotiva da economia”, vem gerando grande volume de problemas ambientais, além do uso crescente de agrotóxicos, verifica-se a perda da biodiversidade e do próprio estrangulamento da diversidade de atividades geradoras de renda, com concentração crescente de terras na mão de grandes empresas nacionais ou transnacionais. A condição de nos mantermos reféns da exportação de grãos e de commodities em algum momento vai ter problemas decorrentes da dependência do mercado externo e das flutuações desses produtos no mercado. Como consequência disso, aproximadamente 75% da diversidade agrícola mundial já foram perdidas no último século (FAO, 2013). A lógica da priorização da agricultura empresarial ou industrial e a grande escala da produção agrícola deixa os agricultores com poucas alternativas para se desvencilharem do modelo de dependência atrelado às monoculturas de exportação.

A pesada produção mecanizada, quimificada (dependente do petróleo) e insustentável de soja e de outros grãos, que promove monoculturas e homogeneização desde o Pampa até a Amazônia, faz sucumbir nossa biodiversidade. Paralelamente aos grãos de exportação, muitas dezenas de milhões de cabeças gado estão em áreas originalmente florestais e de savanas (cerrados), sem falar nos milhões de hectares de lavouras de madeira para celulose. Compromete-se a funcionalidade ecossistêmica necessária em nossos biomas, que necessitam da diversidade de flora e fauna, e prejudica-se a funcionalidade da cultura alimentar e da ecologia humana. A produção de alimentos é também uma função social, assegurada pela Constituição Federal. No Art. 225 da Constituição é assegurado o direito ao meio ambiente equilibrado, com proteção à diversidade biológica e aos processos ecológicos.

Urgentemente, temos que resgatar plantas do Brasil, arraigadas à agricultura familiar e tradicional, como no caso a mandioca, uma planta eminentemente do Brasil e de países vizinhos, desenvolvida ao longo de milhares de anos por culturas de povos indígenas, e que não sofre dependência de insumos. Entretanto, em nosso país tem uma área reduzida para 1,6 milhões de hectares. A área de mandioca no Brasil é quatro vezes menor do que a área de plantios da cultura na Nigéria, maior produtora de uma planta emprestada da América do Sul.

Triste situação também é a de plantas alimentícias e produtos com alto potencial nutracêutico venha a perecer ou perder espaço frente aos monocultivos (Figura 6).


Figura 6. Beira de estrada BR 377, plantas nativas que sobraram das lavouras, confinadas pela expansão de herbicidas na beira de estrada. Butia yatay (butiá-da-fronteira), espécie ameaçada de extinção e praticamente em situação de morte; Melothria cucumis (pepininho-do-mato), planta alimentícia nativa; e Casearia sylvestris (chá-de-bugre), planta medicinal com patentes por empresas estrangeiras.

Para assegurar a verdadeira soberania, o país deve resgatar sua riqueza que vem sendo destruída ou acaba sendo alvo de biopirataria. No Brasil, é necessário o investimento em agroecologia, com base nas nossas plantas. Estima-se que pelo menos 10% de todas as floras do mundo apresentem plantas alimentícias nativas ou autóctones, o que corresponderia no Brasil a pelo menos 3.500 espécies. O pesquisador alemão Günther Kunkel (1984) foi o pioneiro no levantamento de plantas alimentícias de mundo todo, tendo citado 12,5 mil espécies com este potencial para todos os continentes. Edward Wilson (1988) estimou que ocorressem no mundo 75 mil espécies alimentícias, e destacou que muitas são superiores em vários aspectos nutricionais às plantas cultivadas convencionalmente. Eduardo Rapoport e colegas da Argentina (2009) chegaram a uma estimativa semelhante a de Wilson, reconhecendo que 25% das plantas de muitas floras são representadas por plantas alimentícias. Estudo de Valdely Kinupp (2007) obteve como resultado 311 espécies com uso atual ou potencial alimentício da flora nativa da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o que representa cerca de 20%, da flora da região.

Referências:

KINUPP, V.F. (2007) Plantas Alimentícias Não-Convencionais da Região Metropolitana de Porto Alegre, RS.Tese (Doutorado em Fitotecnia) Programa de Pós-Graduação em Fitotecnia, Faculdade de Agronomia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

KUNKEL, G.W.H. (1984) Plants for human consumption: an annotated checklist of the edible phanerogams and ferns. Koenigstein: Koeltz Scientific Books.

RAPOPORT, E.H; MARZOCCA, A.; DRAUSAL, B.S. (2009) Malezas comestibles del Cono Sur y otras partes del planeta. Bariloche: INTA.

WILSON, E. (1988) The current state of biological diversity. In: WILSON, E.O. & PETER, F.M. Biodiversity. 521 pp. Washington, D.C.: National Academy Press.