A Organização das Nações Unidas definiu 22 de março como o Dia Mundial da Água, recurso natural que vem sendo crescentemente cobiçado pelo setor privado, dando origem a conflitos sociais e ambientais. A Assembleia Geral da ONU reconheceu, em 2010, o acesso a uma água de qualidade e a instalações sanitárias como um direito humano. O texto aprovado “declara que o direito a uma água potável própria e de qualidade e a instalações sanitárias é um direito do homem, indispensável para o pleno gozo do direito à vida”. Passados cerca de oito anos, o texto aprovado em 2010 representa mais uma declaração de intenções do que uma norma que oriente políticas públicas no mundo inteiro. Pelo contrário, o que se vê é uma permanente ofensiva do setor privado sobre os recursos hídricos e serviços de abastecimento e saneamento.
Esta tensão entre o acesso a um recurso natural como direito universal e a transformação deste recurso em mercadoria esteve presente, na última semana, em Brasília, que sediou o Fórum Mundial da Água e o Fórum Alternativo Mundial da Água, um contraponto de organizações da sociedade civil ao primeiro, apontado por elas como com um encontro de governantes, empresários e grandes corporações como Nestlé e Coca-Cola. A agenda da privatização da água que, até bem pouco tempo, parecia algo distante no Brasil, ganhou um grande impulso com o governo Temer. “Temos, hoje, uma combinação totalitária entre o agronegócio e o hidronegócio, envolvendo temas como hidrelétricas, abastecimento, saneamento, e apropriação de fontes de água, gerando conflitos relacionados à irrigação em áreas rurais, contaminação e falta de água”, diz o biólogo Paulo Brack, professor do Departamento de Botânico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em entrevista ao Sul21, Paulo Brack fala sobre algumas das ameaças que pairam sobre a concretização da intenção da ONU de definir a água como um direito humano universal. Essas ameaças, adverte, tornaram-se mais concretas no Brasil e no Rio Grande do Sul com a aliança entre os governos Temer e Sartori com setores empresariais interessados em ampliar seus negócios no “mercado da água”. “Em nível mundial, mais de 180 grandes cidades, em mais de 30 países, que tinham privatizado o serviço de abastecimento de água, mudaram de opinião e passaram de novo esse serviço para o controle de empresas públicas. No Brasil, estamos seguindo o caminho no inverso. Aqui no Rio Grande do Sul, o governo do Estado já deu sinais de que pretende privatizar a Corsan, o que seria algo bastante grave”, assinala Brack.
Entre os problemas que já atingem diretamente o Estado, ele destaca a contaminação da água consumida pela população, o agravamento das situações de seca e de crise de abastecimento em função do avanço do agronegócio e da alteração do regime de chuvas, a destruição de matas ciliares e nascentes, além da deterioração da biodiversidade.
Sul21: O Dia Mundial da Água, no Brasil, está sendo marcado, entre outras coisas, pela realização de dois grandes fóruns, um de caráter governamental (o Fórum Mundial da Água) e outro organizado pela sociedade civil como um contraponto ao primeiro (Fórum Alternativo Mundial da Água). O que a realização desses encontros representa no debate atual sobre a utilização da água no Brasil e no mundo?
Paulo Brack: A realização deste fórum alternativo é muito importante para os governos e os mercados não se apropriarem desta temática. O processo de mercantilização da água, infelizmente, vem avançando bastante. Os movimentos sociais e socioambientais estão ligados nesta temática e representam um importante elemento de resistência para não permitir que determinados setores econômicos privatizem o abastecimento de água, o tratamento de esgotos e outros serviços envolvendo esse recurso natural. A indústria de água mineral está hoje, em grande medida, nas mãos da Nestlé e da Coca Cola. Há lugares em que não há alternativa a não ser consumir água engarrafada por estas grandes transnacionais.
Lembro que nas primeiras edições do Fórum Social Mundial já se falava destes temas, mas eles ainda estavam um pouco distantes, não tinham a dimensão que estamos vivendo hoje. Há uma combinação totalitária entre o agronegócio e o hidronegócio, envolvendo temas como hidrelétricas, a apropriação de fontes de água mineral, conflitos relacionados à irrigação em áreas rurais, contaminação e falta de água. Estamos vivendo agora um grave problema aqui no Rio Grande do Sul, na região do bioma Pampa, onde no verão as reservas de água baixam muito. Com o avanço da soja e do eucalipto no bioma Pampa estamos tendo uma crise hídrica ainda maior.
Sul21: Como a cultura da soja contribui para agravar esse quadro de crise hídrica?
Paulo Brack: A compactação do solo, a destruição de mananciais hídricos com o aterro de nascentes e banhados, além do desmatamento. A cada ano, as máquinas estão tirando as fatias que restam de matas ciliares. Mais de 50% das matas ciliares dos nossos rios desapareceram. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, cerca de 70% das áreas de preservação permanente estão sob plantios ou atividades que trazem impacto ambiental. Ou seja, temos menos de um terço de áreas de preservação permanente com vegetação nativa na Região Metropolitana. Esse quadro acentua o potencial de conflitos. Recentemente, tivemos um problema muito grande no rio Gravataí envolvendo plantações de arroz, que foi alvo de intervenção do Ministério Público. Com a mudança do Código Florestal, tornou-se permitido manter uma quantidade de exóticas em áreas de preservação permanente. É o caso do eucalipto, por exemplo, que bombeia muita água, afetando o lençol freático destas áreas.
Temos muitos conflitos também envolvendo a atividade de mineração, como se viu no episódio de Mariana e, mais recentemente, no Pará. Esses conflitos estão diretamente relacionados à uma grande ofensiva de grandes capitais, envolvendo a apropriação de territórios e de recursos naturais e atingindo comunidades tradicionais que vivem nestes territórios.
O ciclo da água está sendo alterado de modo geral, envolvendo diretamente a Amazônia, uma grande fábrica de chuvas no Brasil. Segundo estudos de vários pesquisadores, entre eles Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), cerca de um terço das chuvas no sul do Brasil provém da evapo-transpiração da Amazônia. No verão, esse percentual aumenta, chegando a mais de 50%. A quantidade de água nestes chamados rios voadores é tão grande quanto a quantidade de água nos próprios rios da bacia amazônica. Hoje, está sendo verificado que, em áreas de intenso desmatamento, como nos estados de Tocantins, Goiás e Mato Grosso, houve alterações significativas no ciclo de chuvas.
Sul21: Nos últimos anos, vêm crescendo muito o debate sobre a ameaça da privatização da água. O que é mesmo que está no alvo desses interesses privatizantes?
Paulo Brack: Há projetos de lei no Congresso que pregam uma lógica de mercado para os serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgoto. Cerca de 48% dos municípios brasileiros não têm tratamento de esgoto, o que é visto pelo setor privado como uma grande oportunidade. Com o golpe e o estabelecimento do governo Temer, elas estão tentando aproveitar o que puderem, até o final do ano, para se apropriar destes serviços. O Aqüífero Guarani também está sendo alvo destas grandes empresas.
É importante destacar que, em nível mundial, mais de 180 grandes cidades, em mais de 30 países, que tinham privatizado o serviço de abastecimento de água, mudaram de opinião e passaram de novo esse serviço para o controle de empresas públicas. Cidades como Paris e Berlim chegaram à conclusão de que a escolha pela privatização encareceu muito o serviço, sem garantir a qualidade e a segurança necessária para a população. No Brasil, estamos seguindo o caminho no inverso. Aqui no Rio Grande do Sul, o governo do Estado já deu sinais de que pretende privatizar a Corsan, o que seria algo bastante grave.
O exemplo do que ocorreu em São Paulo, com a privatização da Sabesp, é muito ilustrativo. A empresa passou a ter ações na Bolsa de Valores, o que teve implicações nos serviços oferecidos à população, como ficou evidente na grave crise hídrica que esse Estado sofreu recentemente. A questão é que não vale a pena para o capital reduzir o consumo de água para evitar ou diminuir crises de abastecimento. Isso significaria, no caso das empresas, reduzir a lucratividade. Essa foi a lógica que orientou as escolhas do governo Alckmin que não quis reduzir o consumo, quando deveria ter feito isso. Não interessa para essas grandes empresas e para os governos associados a elas tentar restabelecer as condições hídricas de uma determinada bacia, recompondo nascentes e matas ciliares, entre outras medidas. Isso não faz muito sentido para eles, dentro da lógica imediatista que os orienta.
Na década passada, tivemos levantes populares na Bolívia e no Equador contra projetos de privatização da água, que chegaram a derrubar governos. No Brasil vamos ver até que ponto eles vão conseguir avançar sem que a população se rebele contra essa grande expropriação de recursos. Além disso, temos problemas crescentes de contaminação da água em várias regiões do país. Aqui em Porto Alegre, segue o problema do gosto ruim da água captada no Guaíba e consumida pela população. Empresas foram autuadas pela Fepam, mas nunca se soube direito o que aconteceu. Há uma caixa preta em relação ao que está acontecendo com a água.
Sul21: Esse problema da água em Porto Alegre está associado a que problemas, na sua opinião?
Paulo Brack: Um dos fatores é que, dentro do processo de degradação ecológica, temos um florescimento muito grande de cianobactérias, que são algas que liberam toxinas com potencial para afetar o fígado humano. Há alguns estudos que mostram que, no médio e longo prazo, poderiam inclusive causar câncer.
Sul21: Essas cianobactérias estão presentes no Guaíba hoje?
Paulo Brack: Sim. É um fenômeno novo que está associado, entre outros fatores, à poluição orgânica, à falta de tratamento dos esgotos na Região Metropolitana como um todo. Dos dez rios mais poluídos do Brasil, três estão no Rio Grande do Sul (Sinos, Gravataí e Caí). Isso é uma vergonha para o Estado e denota uma falta de gerenciamento dos nossos recursos hídricos. A poluição desses três rios implica a poluição do Guaíba também. Essas algas se alimentam do excesso de fósforo principalmente e de muitos nutrientes do esgoto doméstico e da agricultura. Quando chove menos, esses nutrientes ficam mais concentrados e elas têm uma explosão. Esse gosto que a gente sente na água tem a ver com as substâncias liberadas por esses organismos.
Em um contexto de crescente suspeita sobre a qualidade dessa água fornecida para a população, a água mineral torna-se um grande negócio. Paradoxalmente, essa combinação de um quadro de crise hídrica e de contaminação de recursos hídricos favorece os negócios dessas empresas. É um quadro bem grave.
O fato é que estamos vivendo um período de mudanças climáticas globais causadas por atividades econômicas que estão destruindo o que resta da natureza. Essas mudanças, por sua vez, provocam uma série de fenômenos como, por exemplo, a salinização de rios. Aqui no Brasil, isso está acontecendo de modo preocupante no rio São Francisco. Com a redução do caudal do rio, as águas do São Francisco, algumas vezes, nem conseguem mais chegar ao mar que acaba avançando rio adentro. Isso trará problemas de abastecimentos para as populações que moram perto da desembocadura do rio. Esse fenômeno está acontecendo em vários rios do mundo.
Sul21: Qual o espaço que a sociedade civil tem hoje aqui no Estado para debater esses temas relacionados à gestão de recursos hídricos? Os comitês gestores de bacias estão funcionando?
Paulo Brack: Estamos desprotegidos. Estamos recorrendo ao Ministério Público e fazendo denúncias internacionais apontando a falta de gestão dos recursos hídricos aqui no Estado e no Brasil como um todo. Os comitês de bacia, infelizmente, estão sob predomínio de agentes do setor econômico. Isso também acontece no Conselho Estadual do Meio Ambiente onde, infelizmente, as organizações não governamentais estão em minoria. O capital e os governos têm maioria no Conselho e nos comitês de bacia. É muito difícil reverter esse processo hoje. Mas há alguns comitês que funcionam muito bem como o do rio Tramandaí, que tem uma ampla participação popular e não sofre pressões econômicas tão fortes que outros comitês sofrem, especialmente os de bacias situadas em regiões do agronegócio.
Os ambientalistas e os sindicatos relacionados ao tema deveriam fazer uma lista dos políticos inimigos dos recursos hídricos, dos que querem privatizar a água e flexibilizar as leis para ampliar o uso de agrotóxicos para que não sejam mais eleitos. O governador do Estado é um dos expoentes dessa lista, mas também há uma série de deputados favoráveis a essa agenda privatista. É uma tarefa cidadã entender quem são esses atores.