Origem
autoritária do planejamento de empreendimentos de geração hidrelétrica, que
segue a despeito do avanço do marco legal da sociobiodiversidade
As grandes
hidrelétricas no Brasil, e também para a bacia do rio Uruguai, são originárias
de planos elaborados entre 1977 e 1979, resgatados em sua maioria no Programa
de Aceleração do Crescimento de 2007 e em edições mais recentes. Fazem parte,
portanto, de uma concepção de grandes obras derivadas do período militar, como
as hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí e Balbina, agregadas a uma concepção de
outros megaprojetos como Transamazônica e Usinas Nucleares de Angra. Desde
então, em um intervalo de três décadas e meia, o modelo hidroenergético que
implica megainfraestrutura e extensas áreas de alagamentos segue imperando a
despeito da perda do que resta dos territórios da sociobiodiversidade do
Brasil, em especial da região Sul do País. De acordo com Bermann (2012):
Sob
a influência de grandes grupos econômicos, nacionais e internacionais, e seus
aliados políticos, que formam a base da “indústria das barragens” (dam
industry) no Brasil, o governo federal construiu um sistema elétrico que
prioriza fortemente a geração hidrelétrica, estimulando sub-setores industriais
e atendendo o suprimento a determinados setores em detrimento de outros. Por
este desenvolvimento histórico criou-se um emaranhado de interesses que não nos
permite afirmar que possa existir uma capacidade previsível de planejamento
além de um viés concentrado em hidrelétricas no lado da geração, menosprezando
a eficiência energética e outras fontes, com a utilização de cenários de
crescimento de demanda, sem o questionamento de seus pressupostos, (Bermann,
2012, p. 19).
Neste intervalo de tempo, a Constituição
Federal do Brasil (1988) consolidou garantias para a conservação do meio
ambiente e dos direitos humanos. A garantia de serem mantidos os processos
ecológicos dos rios e de sua biota protegida mediante os impactos dos
empreendimentos hidrelétricos está presente principalmente no seu Art. 225, que
define em seu parágrafo 1o a responsabilidade do poder público em “preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”
(inciso I), “preservar a diversidade e
a integridade do patrimônio genético do País” (inciso II) e “proteger a fauna e a flora, vedadas, na
forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem
a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (inciso VII).
Além disso, a Constituição considerou a Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal
e a Zona Costeira como Patrimônios Nacionais. Assim sendo, fica evidente na Carta
Magna a necessidade de que qualquer atividade, e neste caso as hidrelétricas,
não venha causar extinção de espécies com a transformação dos rios, em geral
com corredeiras, em lagos de represas, também em biomas como a Mata Atlântica, no
caso da bacia do rio Uruguai – situações graves que permanecem sendo
negligenciadas.
Externamente, o Brasil assinou
importantes acordos internacionais na área ambiental, destacando-se durante a
Conferência Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, a
chamada “Rio 92”, por meio da Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
ratificada em 1994. Tivemos também a instituição da Reserva da Biosfera da Mata
Atlântica (RBMA), reconhecida pela
UNESCO, no início da década de 1990, com destaque ao estabelecimento de três
zonas: Zona Núcleo, Zona de Amortecimento e Zona de Transição. Como
demonstração dos esforços do Brasil em implementar políticas internas nesse
âmbito, dez anos após a Rio 92, em 22 de agosto de 2002, foi publicado o
Decreto 4.339, que instituiu os princípios e
diretrizes para a implementação da Política Nacional de Biodiversidade,
fundamentada em conceitos referendados nas leis existentes e em novos temas e tratados
internacionais em matérias afins pelo Congresso. A Lei da Mata Atlântica
(Lei 11.428/2006), depois de mais de 14 anos em trâmite no Congresso, foi
aprovada e promulgada em 22 de dezembro de 2006, visando proteger e ampliar a
extensão de 7,84% de cobertura original do segundo bioma mais ameaçado de
extinção no mundo. No que se refere à territorialidade protetiva de todos os
biomas brasileiros, em 2004 e em 2007, foram publicados os mapas das Áreas
Prioritárias para a Biodiversidade (APBio), a última versão pela Portaria do
Ministério de Meio Ambiente (MMA) n. 09, de 23 de janeiro de 2007 (figura 1). É
necessário enfatizar também que nestes últimos anos têm avançado os esforços
para a atualização das listas de espécies brasileiras ameaçadas de extinção da
flora (Port. MMA 443/2014), fauna (Port. 444/2014) e peixes e invertebrados
(Port. 445/2014), incluindo as respectivas listas estaduais.
Na bacia do rio Pelotas-Uruguai, as
políticas públicas em relação à proteção da biodiversidade têm uma dimensão especial:
a presença do Parque Estadual do Turvo, criado em 1947, no estado do Rio Grande
do Sul, onde estão abrigados os principais remanescentes florestais mais
contínuos da bacia. No aspecto humano, cabe dar destaque também à criação da Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(PNPCT) por meio do Decreto n. 6.0407, de fevereiro de 2007.
Figura
1 – Recorte do Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade
(MMA, 2007), onde aparece o estado do Rio Grande do Sul (Fragmento do Mapa da Portaria n. 9 do MMA, de 23 de janeiro de 2007. Disponível
em: http://www.biodiversidade.rs.gov.br/arquivos/1189431095MMA___2006_mapa_areas_prior.gif
Acesso em 20 de fevereiro
de 2015).
Em resumo, o marco legal de proteção à
sociobiodiversidade avançou, mas os projetos de hidroeletricidade seguiram
basicamente os mesmos, com algumas mudanças aqui ou ali. A premissa de que os
rios são passivos de construção praticamente indiscriminada de hidrelétricas, transformando
os ecossistemas de cursos d’água corrente em “escadarias” de grandes lagos de
reservatórios, permanece até hoje vigendo no setor elétrico. Ignora-se o
desaparecimento de muitos milhares de hectares de florestas, de modos de vida e
de terras produtivas, bem como desprezam-se alternativas menos impactantes de
geração e uso racional de energia (eólica, solar e bioenergética).
Uma grande contradição entre a
localização prevista para os projetos de hidrelétricas e a biodiversidade pode
ser exemplificada na comparação dos mapas dos empreendimentos do Sistema de
Informações Georreferenciadas do Setor Elétrico (SIGEL) da Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL) e o mapa das áreas prioritárias para a biodiversidade
(APBio, Port. MMA, n.9/2007) (tabela 1). Os resultados indicam que a maior
parte das hidrelétricas (UHEs) no Brasil segue sendo construída (62,5%) e
planejada (62,1%) nas áreas prioritárias, sendo que 50% dos empreendimentos em
construção estão localizados justamente na categoria de “Extrema Importância”,
denotando descompasso e contradição entre as políticas públicas.
Tabela 1 – Número e
percentual de empreendimentos hidrelétricos (UHE, acima de 30 MW, ou PCH até 30
MW) no Brasil em construção ou planejados, atingindo as Áreas
Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da
Biodiversidade Brasileira (APBio) (Port. MMA, n. 9 de 23 de janeiro de 2007),
conforme cruzamento de dados disponíveis e obtidos em janeiro de 2015 no
Sistema de Informações Georreferenciadas do Setor Elétrico / Agência Nacional
de Energia Elétrica – SIGEL/ANEEL[1]
e os dados do MMA[2].
Hidrelétricas
/Categorias
|
Extrema
(%)
|
Muito Alta (%)
|
Alta
(%)
|
Fora
(%)
|
Total APBio
(%)
|
UHEs em construção (8)
|
50,00
|
12,50
|
0,00
|
37,50
|
62,50
|
UHEs planejadas (261)
|
26,05
|
27,97
|
8,05
|
37,93
|
62,07
|
PCHs em construção
(30)
|
16,67
|
23,33
|
3,33
|
56,67
|
43,33
|
PCHs planejadas (1720)
|
25,17
|
16,34
|
3,90
|
54,59
|
45,41
|