Opinião publicada no Sítio-e Sul 21, dia 28/02/2018
O Governo do Estado descumpre ordem judicial e segue operando a desativação total das atividades da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, criando uma situação de inviabilidade de continuidade de pesquisas no Museu de Ciências Naturais e Jardim Botânico, mesmo com a possível extinção da FZB. O que estará por trás deste descaminho? Ideologia neoliberal obsessiva ou amortecimento dos conhecimentos da biodiversidade (Estado Abiótico?) para permissão indiscriminada de empreendimentos em um ano eleitoral?
A situação da Fundação Zoobotânica é gravíssima. A instituição e suas funções estão sendo estranguladas de maneira crescente por meio de portarias, decretos governamentais e medidas de desativação de suas funções. Tais procedimentos do governo contrariam a recente decisão liminar do Juiz Eugenio Terra, que estabelece obrigações de se manter, por exemplo, as atividades do Jardim Botânico, com nível de qualidade A, e as atividades essenciais desenvolvidas pelo Museu de Ciências Naturais, com respeito às coleções e pesquisas com espécies ameaçadas de extinção, apesar do quadro dramático nesta área no Rio Grande do Sul.
O Estado possui 804 espécies da flora ameaçada 280 da fauna, em uma área cujos trabalhos necessários não receberam nenhuma providência de parte do governo, desde os Decretos Estaduais 52.109/ 2014 e 51.797/2014, que exigiam medidas urgentes. Ao contrário, assistimos um Decreto anacrônico que retira da Instituição o papel de coordenadora da elaboração das Listas, jogando o tema para a arena da hegemonia de interesses econômicos e governamentais, representada pelo CONSEMA. E, agora, o tema ainda é agravado pela demissão de técnicos envolvidos em pesquisa e programas de conservação da biodiversidade. Estão sendo demitidos, num primeiro momento, técnicos que não tinham estabilidade, independentemente de suas atividades, muitas vezes insubstituíveis, ou sendo deslocados os funcionários administrativos da FZB para a SEMA.
Apesar da inconstitucional Lei 14.982 de 16 de janeiro de 2017 que extinguiria a Fundação Zoobotânica e as demais leis, pesquisadores e técnicos biólogos, engenheiros florestais, engenheiros agrônomos e outros técnicos estão sendo dispensados. Técnicos que exerciam papel destacado em planos para recuperação da vegetação de matas ciliares na bacia do Guaíba, banco de sementes e propagação de espécies nativas ameaçadas. Fica nossa pergunta: quem executará as funções de propagação de sementes de espécies nativas de matas ciliares, a partir da demissão destes técnicos e dos demais, com estabilidade, mas sujeitos à demissão por iniciativas do governo? Atividades de coleta de sementes, propagação de plantas de matas ciliares são dispensáveis?
Sem a existência de técnicos especializados nas áreas de taxonomia, conservação e gestão da biodiversidade, ficarão prejudicadas, ou mesmo inviabilizadas, a obtenção de sementes e a produção de mudas de espécies nativas do RS do Viveiro do Jardim Botânico, que é o mais rico do Estado e possui espécies únicas de árvores, arbustos, plantas frutíferas, trepadeiras e medicinais. A conservação ex situ ficará prejudicada de forma irreversível. Também ficará prejudicada a manutenção do nível A, obtido pelo Jardim Botânico, e que é exigida na justiça, mas foi considerada não prioritária pela Secretária Ana Pellini.
Em décadas passadas, o JB produzia, em grande escala, mudas de plantas para prefeituras e órgãos públicos, representadas por espécies ameaçadas e de grande interesse econômico como o caso de araucária, juçara e butiás, incluindo a ainda não ameaçada, erva-mate. Hoje, os funcionários do viveiro veem seu trabalho sucumbir sob a ingerência de uma direção política liquidante do próprio Jardim Botânico e da instituição internacionalmente reconhecida, inclusive pela ONU, a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Afinal, em um Estado refém das monoculturas de exportação, com destaque à soja e ao eucalipto, o que interessa mais na balança dos políticos e das doações eleitorais? Éramos exportadores de erva-mate, hoje, vergonhosamente, importamos o produto de outros estados ou mesmo da Argentina.
No mês de fevereiro, pelo menos, duas biólogas, com doutorado e com projetos de pesquisa em biodiversidade do Museu de Ciências Naturais, especialistas em liquens e algas também foram demitidas. Foi mandada embora a Dra. Suzana Azevedo Martins, a única especialista com mais acúmulo de conhecimentos em Líquens no Estado do Rio Grande do Sul, que também desenvolvia pesquisas com liquens bioindicadores de poluição aérea, desenvolvendo intercâmbios internacionais e orientando dezenas de jovens pesquisadores, ao longo de mais de 30 anos de pesquisa na área. Liquens não fazem parte da Biodiversidade? Quem substituirá as funções da Dra. Suzana Martins no MCN?
Da mesma forma que aconteceu com a bióloga Suzana Martins, a também bióloga e doutora Sandra Maria Alves da Silva foi demitida em fevereiro de 2018. A pesquisadora Sandra tem contribuído para o conhecimento ambiental e taxonômico destes organismos, mantendo o acervo de algas, em coleções importantíssimas para o conhecimento destes organismos. É uma das poucas pesquisadoras de algas no RS, que orientou dezenas de bolsistas, inclusive com abordagem em ecologia e qualidade de águas, situação premente dada ao problema de explosão de cianobactérias que, pela superfertilização de nutrientes decorrente da poluição dos rios, liberam toxinas no Guaíba e na água que consumimos.
Com a demissão da especialista em algas, teremos mais lacunas de conhecimento sobre questões relacionadas à poluição do rio-lago Guaíba e seus tributários. Não seria o caso da Secretária Ana Pellini criar um grupo de trabalho para avaliar a poluição crescente na água do Guaíba que abastece Porto Alegre?
Surpreendentemente, em vez de se preocupar com a qualidade da má qualidade da água que bebemos, a secretária e contadora Ana Pellini optou por viajar, pela quarta vez, em “visita técnica”, com diárias e passagens pagas pela população do Rio Grande do Sul, desta vez em um final de semana para a Costa dos Corais (Alagoas). Paradoxalmente, são negadas pela SEMA diárias de 60 reais para os técnicos se deslocarem para áreas de atuação na gestão da flora e fauna.
Além dos técnicos demitidos, quase todos os funcionários do setor administrativo estão sendo deslocados, nestes últimos dias, desde a FZB para a SEMA, deixando a área “meio” vazia e sem condições de ser executada e, por consequência, acaba sendo inviabilizada a área fim da Fundação, que é pesquisa aplicada à conservação da biodiversidade, incluindo a manutenção de coleções “ex situ” e “ in vitro”.
O processo de esvaziamento das funções da Fundação Zoobotânica teve outros episódios que não podem passar em branco, como a retirada de representantes técnicos em conselhos de representação, como o CONSEMA, Conselho da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, Conselhos Gestores de Unidades de Conservação, todos especialistas em várias áreas do conhecimento biológico. Os cargos de representação da FZB foram substituídos por representantes políticos, não técnicos, exógenos à área de conhecimento necessária para estas instâncias técnicas. Ou seja, incorpora-se a ingerência política nas decisões de instâncias de representação técnica, com os chamados cargos de confiança do governo.
Cabe destacar que quem exerce hoje o cargo de Diretor do Jardim Botânico da FZB é um advogado sem formação em jardins botânicos, o Sr. Cristian Tobias Amaro Barreto, ex-vereador do município de Quaraí, evidenciando a opção do governo por trazer de fora da instituição, em desvio de uma função obrigatoriamente técnica para uma função política, comprometendo assim a manutenção do nível “A” do principal Jardim Botânico do Estado. Tal situação, além de vergonhosa, vai contra a decisão judicial e onera ainda mais a tão propalada despesa com a folha de pagamentos da instituição. O Jardim Botânico, considerado legalmente como Patrimônio do Estado, será automaticamente rebaixado, sem a infraestrutura, chefias e pessoas gabaritadas para dar sequência ao nível obtido “A” de qualidade na manutenção das coleções “ex situ”, banco de sementes, viveiro e pesquisas.
Além da substituição de cargos técnicos por cargos políticos, o governo revogou por meio da Portaria 3015 de 30 de janeiro de 2018, portarias anteriores que designavam funções de chefia da FZB, além de retirada de curadorias de acervos científicos. A decisão de retirar as chefias da FZB foi um passo claro para extinção da FZB, e a retirada de curadores de coleção também se configura na tentativa de transferência de técnicos da Fundação para a FEPAM, o que foi por muitas vezes tratado de maneira ainda não formal, por parte da Secretária que quer ver a agilização das licenças na frente da proteção do meio ambiente. Cabe lembrar que mestres, doutores ou demais técnicos especializados, em sua maioria concursada, são responsáveis do cuidado das coleções taxonômicas e das pesquisas com biodiversidade do Museu de Ciências Naturais, cujo patrimônio está em iminente risco de desaparecer, até pelas ameaças de demissão do quadro técnico.
Como ocorrerá a manutenção das funções do JB e MCN, sem os cargos de chefia? Alguém acredita que um Departamento da SEMA, inexistente, vá dar conta desta árdua tarefa de construção de mais de meio século que foi o surgimento da FZB?
Na área de formação de jovens cientistas, as muitas centenas de estudantes pesquisadores em biodiversidade, que passaram pela instituição, estudantes de Biologia e cursos afins, não estão mais tendo a permissão para realização de estágios obrigatórios na Fundação Zoobotânica, seja no Jardim Botânico ou no Museu de Ciências Naturais. Como resultado, várias atividades que dependem de estagiários não estão sendo mais realizadas. Podemos prever, com muita certeza, o prejuízo à formação de profissionais e com os cuidados e catalogação de plantas vivas, auxílio nas coleções do Herbário, já que o contingente de técnicos da instituição, para atividades essenciais tanto no JB como no MCN, é muito escassa, e agora conta com a demissão de técnicos do MCN e JB.
Não param por aí as tentativas de estrangulamento das atividades da FZB. Todo o ano de 2017, pelo menos e até hoje, os técnicos da FZB estão proibidos de se afastarem para participação em bancas de mestrado, doutorado ou participação em Congressos Científicos de sua área de atuação. Somente podem participar de eventos científicos os técnicos que se utilizarem de seu período de férias. É notória a intenção da administração do Sr. Luiz Fernando de Oliveira Branco, presidente da FZB - experiente especialista em agronegócio - para vetar a participação de técnicos altamente gabaritados em eventos que representam o progresso da Ciência no Rio Grande do Sul e Brasil, ou até no exterior. Muito provavelmente, o diretor presidente da FZB (seu liquidante), a secretária de meio ambiente e o governador desconheçam as Metas da Biodiversidade 2020, instrumento da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que o Brasil assinou. Como agravante, não é mais permitido que os técnicos da FZB realizem saídas de campo para coletas de dados de espécies de flora, fauna ou registros paleontológicos.
O golpe mortal (e ilegal) no coração das atividades da Fundação Zoobotânica foi a transferência de suas atividades para dois departamentos por meio do Decreto Estadual 53.911/2018. Um deles, o Departamento de Biodiversidade, que foi esvaziado de suas funções de uns anos para cá, e o Departamento de Pesquisas e Projetos, previsto e inexistente. Resultado: inviabilização da obtenção recursos, que correspondiam a dezenas de milhões de reais nos últimos anos, para pesquisa e de bolsas de iniciação científica, por parte das instituições de fomento a projetos de investigação científica, CNPqe Fapergs. Os recursos dos órgãos de fomento são destinados exclusivamente para instituições de pesquisa e ensino, eventualmente tecnológicas. Pode-se concluir que departamentos e outros setores da administração direta estadual não se inserem como instituições de pesquisa.
Como podemos verificar, portanto, a pesquisa em biodiversidade não terá mais fomento de recursos para entendermos a perda atual e dramática de biodiversidade, no âmbito da própria SEMA do RS ou na manutenção e ampliação de seu acervo científico representados pelo MCN e JB que auxilia a gestão da natureza. Este fato, negligenciado ou conhecido deliberadamente por parte das autoridades, poderá ser catastrófico para uma instituição com mais de meio século, no caso da Fundação Zoobotânica, que realiza em pesquisas essenciais para a qualidade de vida, em todos os âmbitos, no Estado do Rio Grande do Sul.
Ou a Justiça do Rio Grande do Sul toma providencias urgentes para evitar que o governador do Estado siga editando qualquer ato ou decreto que se configure no descumprimento de decisão judicial relativa à Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul ou mesmo atos de confronto à Constituição Estadual, revertendo as ilegalidades adotadas pelo governo, ou veremos a desconstrução irreversível da estrutura e das atividades essenciais da ciência e da proteção da biodiversidade, no rumo de um “Estado Abiótico”, imerso em ilegalidades.
Paulo Brack, Professor do Departamento de Botânica,
do Instituto de Biociências da UFRGS, coordenador geral do Ingá
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