quinta-feira, 22 de março de 2018

AGRONEGÓCIO, UMA LOCOMOTIVA QUE SE TRANSFORMA EM TITANIC?

Ensaio da Revista Textual • novembro 2017 | Nº 26 - Volume 2 

Introdução
A agricultura brasileira é propagandeada pela grande imprensa como a “locomotiva da economia”. No círculo vicioso das commodities e das monoculturas, existe uma propaganda exagerada em prol do agronegócio, por parte da mídia brasileira, em grande parte por financiada pelo setor. Uma apologia a um processo que encobre a concentração de terras, a degradação da natureza e o comprometimento do recurso água e do alimento do brasileiro. Esta situação teve um forte embate, a partir do enredo da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, no último Carnaval do Rio de Janeiro, em 2017. A Escola de Samba tinha como tema uma crítica dura aos danos provenientes do agronegócio. Tal situação, porém, gerou protestos de parte da CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e uma série interminável de propagandas enganosas em favor dos supostos benefícios do modelo de agricultura atual de parte do poderoso setor do agronegócio.
Trazemos aqui uma crítica que tem por base o balanço dos efeitos colaterais econômicos e socioambientais resultantes da agricultura convencional, dominada por oligopólios que controlam sementes e insumos a estas associadas, em um rol de países produtores de matérias primas, como no caso do Brasil, deixando um rastro de efeitos perversos socioambientais e econômicos praticamente invisibilizados.
Cresce também a preocupação de setores da academia e de ONGs que denunciam a hegemonia de um modelo desastroso de produção agrícola que não consegue conviver com a diversidade biológica. Desde a chamada “Revolução Verde”, na década de 1960, muito pouco se realizou para avaliar as consequências atuais e futuras sobre a sustentabilidade do que resta de nossos biomas brasileiros e dos demais biomas mundiais afetados pelo modelo dominante de produção agrícola. E alertarmos que esta “locomotiva” pode estar se transformando em um “Titanic”, varrendo o potencial alimentício e ecológico de milhares de plantas brasileiras negligenciadas.
A Economia Insustentável do Agronegócio
Não há como negar que a agricultura baseada na exportação de grãos, nem sempre para alimentar seres humanos, representa parcela importante do PIB (Produto Interno Bruto) do País. É verdade que a soja, o milho e outras culturas de exportação, em forma de grandes monoculturas empresariais, têm contribuição importante para a economia brasileira, porém, isso faz parte de uma visão imediatista, de baixa ou nenhuma sustentabilidade em médio ou longo prazo.
Vivemos uma economia superficial, que não contabiliza os custos reais do esgotamento dos recursos naturais e da geração de resíduos de agrotóxicos, sob a supremacia do PIB, via “supersafras”. Uma guerra pela produção máxima, a todo custo, ou seja, a busca incessante pelo produtivismo, que oculta uma economia periférica produtora de matérias primas com quase nenhum valor agregado.
O modelo exportador do agronegócio elimina atividades pequenas e biodiversas, levando a um estrangulamento da matriz produtiva e da diversidade de atividades, tornando-se refém do mercado de commodities. Monoculturas representam altíssimo risco econômico. A história do Brasil já teve exemplos de sobra sobre este assunto. Tivemos os ciclos das grandes culturas coloniais, como a cana e o café, com resultados temporais e positivos em relação a algumas camadas da população, mas com resultados perversos para a maioria.
Internamente, o modelo agrícola insustentável cola-se ao modelo agrário concentrador representado pela concentração fundiária, afastando o necessário equilíbrio social que deveria ser promovido pela reforma agrária no campo. Equidade social é também equilíbrio socioambiental. Mas quem se interessa por isso, nestes “novos” tempos de neoliberalismo em um país dominado por oligarquias que sofrem de um tipo de “obesidade mórbida de capital e propriedade”?
As monoculturas agrícolas representam o ápice de um modelo que lucra com a sobretransformação da natureza e aniquila a diversidade, hoje reconhecida como sociobiodiversidade. O eminente botânico e primeiro diretor do Jardim Botânico de São Paulo, Frederico Hoehne, em 1946, já criticava as monoculturas, principalmente em decorrência da vulnerabilidade da dependência da citricultura em São Paulo, e dava destaque à importância das frutas nativas brasileiras.
Tornamo-nos reféns das monoculturas da mente, como diria Vandana Shiva (2003), mas também da produção de alimentos, uma vez que nossa dieta está baseada em pouquíssimas espécies controladas por gigantescos oligopólios de sementes e de insumos da agricultura industrial. A própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) já alertou, há mais de uma década, para o fato de que 75% de nossas variedades de plantas cultivadas e animais domesticados desapareceram, em nome de poucas variedades.
O Brasil parece repetir estes erros, tomando-se em conta seu passado colonial baseado nas monoculturas. Ao longo dos séculos passados, tivemos o auge e o declínio dos ciclos do pau-brasil, da cana, do café e da araucária. No início da colonização, o modelo extrativista levou muitos recursos à exaustão, começando pela extração de pau-brasil, explorando também os povos indígenas do litoral. Passados quatro séculos, o pau-brasil está na lista da flora ameaçada de extinção, na categoria “em perigo”. Depois veio o ciclo devastador da cana, destruindo com a vegetação, o solo e a água da zona da mata de estados do Nordeste. Algo semelhante ocorreu com a devastação da Mata Atlântica, no século XX, no sul do Brasil, com o café, que em forma de monoculturas sem limites nos Estados de São Paulo, Paraná e Minas Gerais. Da mesma forma, a madeira da araucária, o segundo produto de exportação depois do café, alavancou o inicio da economia de grandes cidades do Planalto da Região Sul do Brasil, como Curitiba, Caxias e Lages, mas escasseou-se e, hoje, também a espécie está em perigo de extinção, nas listas da flora do Brasil e de alguns Estados. 
Os países da América do Sul, sendo também o caso de nosso País, vêm, cada vez mais, tornando-se reféns da exportação de commodities, desde algumas décadas para cá. A Economia tornou-se mais dependente da produção de matérias primas, fenômeno denominado de reprimarização econômica, principalmente nas áreas do agronegócio e da mineração, seguidos por semimanufaturados como celulose, cimento e metais. 
E, quando surge o declínio inevitável, as consequências são muitas vezes devastadoras, com mínimas chances de recuperação. Ficamos cada vez mais vulneráveis aos grandes mercados e à economia global, estrangulando a matriz produtiva limitados a algumas poucas commodities. Obviamente, alguém sai ganhando com esta vulnerabilidade e seu alto risco iminente, quando as condições climáticas e os mercados não são favoráveis. Os bancos e as empresas de sementes e insumos agrícolas quase sempre ganham neste processo, enquanto a tragédia torna-se previsível para a maioria mais vulnerável dos agricultores familiares quando o clima ou os preços internacionais não ajudam, levando ao endividamento do pequeno agricultor inserido neste agronegócio.
No seio do processo socioeconômico, a ação governamental vem garantindo mais de 200 bilhões de reais, nos últimos anos, para os chamados Planos Safra da agricultura empresarial. Na realidade, estes planos correspondem a demandas de lobbies de fomento às monoculturas, com financiamentos facilitados a juros abaixo de valor de mercado. A agricultura familiar, que produz 2/3 dos alimentos dos brasileiros, acaba ficando com uma parcela pequena, que não passa de 10% ou 15 % deste valor.
Outro aspecto a destacar é que o agronegócio não necessariamente produz alimentos. A soja, por exemplo, não se destina a alimentar seres humanos, e sim vai para a ração de bovinos, em outros países. No que toca à quantidade de alimentos, cabe levar em conta de que existem desperdícios consideráveis em relação ao tema. A FAO admite que 1/3 dos alimentos produzidos no mundo é perdido ou desperdiçado durante os processos de produção e venda, o que equivale a cerca de 1,3 bilhões de toneladas por ano. O Brasil está entre os 10 países que mais desperdiçam comida no mundo, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Os benefícios à agricultura empresarial são concentrados e garantidos pela Bancada Ruralista que impõe grande influência nos governos. Como resultado, acumula uma dívida de mais de 900 bilhões de reais[1], correspondendo a financiamentos e impostos não pagos por parte de empresários do setor agrícola, dívida que dificilmente vai ser paga, mas que, na realidade, será repassada à população brasileira. 
Na esteira deste processo de pressões econômicas e políticas, a legislação ambiental também foi quebrada em sua essência nos últimos anos, não só pela bancada ruralista, mas, surpreendentemente, por deputados supostamente de esquerda.  O deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, foi apoiado pela Bancada Ruralista e relator do projeto que derrubou a Lei Federal 4.771/1965, denominada Código Florestal, tendo sido substituída pela Lei 12.651/2012[2], [3], que permitiu a anistia a desmatadores e a consolidação de práticas de flexibilização e expansão sobre Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais, favorecendo as monoculturas de exportação.
A nova fronteira de expansão da agricultura empresarial, inimiga da biodiversidade, tem como alvo de desafio e deslumbramento uma região do nordeste do Brasil, que está sendo chamada de Matopiba (letras iniciais dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Paraíba). A soja é, mais uma vez, o carro chefe desta locomotiva sem freio, que poderá contar com a irrigação e as obras de Transposição do rio São Francisco.
Impactos socioambientais da agricultura moderna
Em 1962, a bióloga norte-americana Rachel Carson levantou algumas destas questões fundamentais em seu livro intitulado “Silent Spring” (Primavera Silenciosa), obra que se tornou o marco do surgimento do movimento ecologista, alertando sobre os efeitos daninhos não previstos pela agricultura industrial, especialmente relacionados aos agrotóxicos. O professor da Universidad Autonoma de Madrid, o filósofo e sociólogo Jorge Riechmann (2004), dá sequência às mesmas críticas de Carson, com as seguintes palavras (p. 176):
O setor agroalimentar, em conjunto com o energético, faz parte dos dois setores econômicos mais diretamente vinculados aos ecossistemas e às modificações introduzidas nestes pela atividade humana. Nossos agrossistemas industriais produzem graves e crescentes impactos ecológicos, entre os quais cabe contar: desmatamento, desertificação de extensos territórios, destruição do solo fértil, perda de biodiversidade, alteração do ciclo global do nitrogênio, difusão de tóxicos biocidas no ambiente, sobre-exploração e contaminação de aquíferos, sobre-exploração de águas superficiais (sem respeitar um mínimo caudal ecológico dos rios), desperdício de água (captada comumente com grande impacto ambiental), eutrofização de lagos e mares, enorme desperdício de energia...
Segundo Oward Odum “Os resultados das análises dos sistemas de produção de alimentos e bens industriais mostram que a maioria dos sistemas são insustentáveis na América Latina”.[4] Também, segundo a FAO, 25% dos solos do planeta estão degradados, inclusive pelo uso intensivo “moderno” da agricultura.
Quadro 1. Comparação entre Agricultura Ecológica e Orgânica versus Agricultura Industrial Moderna
Agricultura Ecológica e Orgânica
Agricultura Industrial Moderna
Mantém a diversificação da matriz produtiva.
Estrangula a diversidade da matriz produtiva, em poucas culturas.
Mantém a pequena propriedade e a mão de obra no campo.
Concentra terras e descarta profundamente a mão de obra no campo.
Mantém a diversidade de sementes crioulas e de outras formas de propagação de plantas, como rizomas, tubérculos, ramos, etc.
Elimina a diversidade, controlando por meio de oligopólios que realizam a venda casada com sementes patenteadas e agrotóxicos associados a estas.
Mantém a permeabilidade do solo. Com as chuvas a infiltração facilitada pela matéria orgânica e microclima mais úmido permite a recarga dos aquíferos.
As máquinas pesadas compactam o solo, diminuindo a permeabilidade, prejudicando a recarga de aquíferos subterrâneos e diminuem a área da rizosfera das culturas agrícolas.
Mantém a umidade do ar e o ciclo da água dependente da vegetação nativa, em especial a florestal. A vegetação florestal contribui para os rios voadores. O efeito de orvalho decorrente da vegetação, durante à noite, repõe eventuais condições de clima seco durante o dia
As gigantescas lavouras de áreas abertas eliminam a cobertura florestal interferindo no ciclo das chuvas, diminuindo os chamados Rios Voadores[5], que provêm da Amazônia e são responsáveis por pelo menos 1/3 das chuvas na Região Sul e Sudeste do Brasil e, consequentemente, reduzem os recursos hídricos disponíveis para o abastecimento humano[6].
Mantém vegetação florestal que abriga abelhas e outros insetos polinizadores.
Responsável pelo extermínio de enxames de abelhas, por agrotóxicos, tendo como consequência menor diversidade de polinizadores.
Mantém a saúde ambiental, pela inexistência de uso de produtos sintéticos potencialmente tóxicos e de difícil degradação.
Contamina o agricultor, a água, o ar, o solo e os alimentos, com agrotóxicos e insumos sintéticos derivados do petróleo.
Mantém a maior autonomia, por prover recursos naturais locais, com adubos orgânicos, minerais básicos e outros insumos independentes do petróleo, com baixa contribuição à liberação de gases de efeito estufa.
Dependente quase totalmente do petróleo, recurso que está se tornando mais escasso, liberando gases de efeito estufa.

De acordo com Riechmann (2004), “a guerra contra a natureza forma parte do funcionamento normal das sociedades industriais contemporâneas”, sendo este potencial bélico podendo voltar-se contra nós mesmos, às vezes de forma direta (comprometimento da água, perda de solos e de biodiversidade, contaminação agroquímica, etc.) ou de outras maneiras, muito mais sinuosas e indiretas (os casos de cânceres provocados por moléculas biocidas e por mecanismos de disrupção hormonal).
Na Amazônia, hoje, o agronegócio de grãos e as pastagens implantadas em áreas originais de florestas representam o avanço da fronteira agrícola quase sem limites e, no que se refere ao ciclo da água, diminuem a formação de nuvens e a umidade atmosférica, interferindo negativamente no que hoje é chamado de “Rios Voadores” conjunto de nuvens provindas da evapotranspiração da Amazônia, e que abastecem de chuvas as regiões Sul e Sudeste do Brasil. O desmatamento provocado por grupos econômicos ou famílias de médios ou grandes agricultores, que provêm do Sul do Brasil e vão para o Norte, acaba desencadeando um efeito bumerangue negativo para a formação de nuvens na Região Sul, a principal provedora de migrantes para o Norte e Centro-Oeste, pois 1/3 das chuvas no Sul provém da evapotranspiração da Amazônia.
A conversão de nossos biomas em paisagens homogêneas de soja (figura 1), eucalipto, cana, milho, ou pastagens artificiais, desde o Pampa até a Amazônia, utilizou-se de agrotóxicos (figura 2), também trazendo perda massiva de abelhas e outros polinizadores. É imensa a riqueza de insetos potencialmente polinizadores, em especial as centenas de abelhas silvestres que contribuem para reprodução de nossas culturas. Segundo pesquisadores da Embrapa, a ausência de insetos polinizadores, como abelhas, provoca queda de produtividade de 40% a 100% em oito culturas comerciais (algodão, café, soja, maracujá, caju, pêssego, melão e laranja).[7] Como esses insetos se refugiam na vegetação nativa, a supressão ou o envenenamento indireto por agrotóxicos estaria comprometendo a produção de mel, a economia baseada na atividade e, indiretamente, a polinização e a produção da agricultura brasileira.
O surgimento cada vez maior de espécies consideradas “pragas” e “ervas daninhas”, somente poderia ser concebido para o caso de espécies exóticas invasoras, como o pinus, a braquiária, o capim-anoni, a rã-touro, a mosca da fruta, entre outros. Contudo, seu surgimento provavelmente é o resultado da simplificação dos sistemas agrícolas.
A resistência de plantas consideradas indesejáveis na lavoura, denominadas como “daninhas”, é consequência do empobrecimento dos sistemas ecológicos naturais. Isso provoca o aumento do uso de herbicidas, tornando-se um problema de solução cada vez mais distante. A produção de apenas uma ou duas espécies de plantas anuais tolerantes a herbicidas dificulta uma rotação necessária e a consorciação com outras culturas, o que, na prática, dificulta o desenvolvimento de sistemas agrícolas mais sustentáveis (Altieri, 2004). Segundo o autor, não há dúvida de que a grande escala da homogeneização da paisagem com culturas transgênicas incrementa os problemas ecológicos já associados às monoculturas agrícolas.
A crescente falta de água potável está associada também à contaminação derivada de agrotóxicos ou pela eutrofização dos corpos d’água, decorrente do excesso de nutrientes da adubação química usada na agricultura.
Quanto às mudanças climáticas, são dramáticos os prognósticos pessimistas por parte do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, em inglês), desde o ano 2007, sobre possível perda da biodiversidade brasileira. No que toca a maior parte da Floresta Amazônica, os documentos apontam que se tornaria uma vegetação mais seca, enquanto a Caatinga poderia virar um deserto. Da mesma forma, é prevista a diminuição da produtividade de cultivos importantes e da criação de gado, com consequências adversas para a segurança alimentar [8].

Inovação agrícola para que(m)?
Na esfera da “inovação” científica e tecnológica no caminho da supremacia do produtivismo, alienado dos processos ecológicos, nas últimas décadas, ocorreram “contribuições” decorrentes de centros de pesquisas aplicadas e de setores das universidades em áreas voltadas ao setor privado e para o avanço das monoculturas agrícolas de grãos. A própria Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) realizou parcerias milionárias com as transnacionais Monsanto e BASF, principalmente com a produção de sementes de soja transgênica. A denominada agricultura de precisão, que realmente precisa quase totalmente do aporte de insumos externos e de pacotes tecnológicos associados, tornou-se o paradigma moderno da supremacia produtivista. Perde, por sua vez, a agrobiodiversidade e o conhecimento e a autonomia da produção de sementes por parte do agricultor familiar.
As pesquisas buscam a máxima produção de grãos, sempre com base em alta carga de insumos derivados do petróleo. Na safra 2016 - 2017, a soja foi anunciada como a alavanca da “safra recorde”. Houve a produção 114 milhões de toneladas[9] deste produto, o que corresponde a cerca de 1/3 da produção mundial[10]. A soja, carro chefe deste trem, corresponde também a cerca de 50% da produção de grãos no País. Entretanto, esta situação ocorre somente em anos de climas favoráveis que não aqueles afetados por secas ou chuvas intensas, situações estas que se tornam cada vez mais comuns com o fenômeno das Mudanças Climáticas, caso que aconteceu em 2012, quando houve perdas de bilhões de reais, devido às secas daquele verão.
Há cerca de uma década e meia, o Brasil incorporou o advento massivo da tecnologia dos organismos geneticamente modificados, na falácia de “gastar menos” com herbicidas e inseticidas, principalmente após a aprovação da Lei de Biossegurança, Lei Federal 11.105/2005. O caminho produtivista industrial da agricultura moderna com OGMs desconsidera a complexidade necessária dos sistemas naturais e a sustentabilidade inerente destes sistemas diversos que têm história de vida de milhões de anos de evolução. Entretanto, o País acabou tornando-se o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, ultrapassando mais de um bilhão de litros de uso destes produtos, a começar pelo herbicida glifosato, que corresponde a um pouco mais de 50% dos agrotóxicos, com a marca mais conhecida, o Roundup Ready.
Caminhos para a transição agroecológica
A megaescala de uma agricultura baseada no paradigma da uniformidade monoespecifica é inviável e vai de encontro aos princípios de um país megadiverso como o nosso. Infelizmente, a escassez ou ausência de incremento de estudos que contemplem a vocação brasileira, constituída pelo diferencial de um país riquíssimo em alternativas de uso de milhares de plantas alimentícias nativas, segue retroalimentando o círculo vicioso de monocultivos de alto impacto ambiental, como no caso da soja.
Apesar de o Brasil manter a base de sua economia calcada em exportação de matérias primas, com uso intensivo de recursos, está no rumo do esgotamento dos recursos naturais, mesmo sendo a nação com a maior biodiversidade entre todas do Planeta. Cerca de 15% das espécies estão presentes aqui, nossos ecossistemas são variados e abrigam hotspot, centros de riqueza e diversidade dos mais elevados do mundo. Esta condição privilegiada deveria ser utilizada para reverter a perversa dependência que condena o País e os seus países vizinhos a destruírem a natureza para gerar, via exportação, riqueza concentrada para poucos.
Seria fundamental que fossem realizados balanços dos efeitos colaterais da agricultura moderna, e que os governos e os bancos financiadores da agricultura industrial quimificada e devastadora tivessem que prestar contas de sua responsabilidade pelo impacto irreversível sobre os recursos naturais, a megabiodiversidade e a sustentabilidade socioambiental.
Uma das estratégias de limite necessário às monoculturas é justamente respeitarmos a territorialidade protetiva, por meio de um instrumento criado pelo próprio governo, que corresponde ao Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação, Uso e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira (APBio, 2007), definidos pela Portaria n. 9 de 23 de janeiro de 2007, do Ministério de Meio Ambiente. Nestas áreas (nas categorias de Extrema Importância, Muito Alta Importância e Alta Importância) deveriam ser vedadas as práticas da agricultura de alto impacto e conversão de uso do solo, além de se definir um Zoneamento Ecológico-Econômico que buscasse manter ao máximo as áreas naturais e rurais agrobiodiversas com conectividade entre os remanescentes dos biomas brasileiros.
Os centros de pesquisa deveriam abandonar o desenvolvimento científico e tecnológico aplicado às monoculturas, invertendo as prioridades, colocando no foco uma agricultura onde a diversidade seja o elemento chave. A restauração dos processos ecológicos, por exemplo, estimula os controles biológicos e a manutenção ou restauração da rica diversidade microbiana do solo, podendo constituir-se em uma solução mais barata, sustentável, socialmente justa e menos arriscada que a simples via por meio da tecnologia de sobretransformação ligada ao desenvolvimento de OGMs e agroquímicos associados.
A busca pela soberania alimentar deveria despir-se da atual ordem econômica mundial, da globalização econômica, que visa a competitividade e a concentração de capital por parte de grandes corporações e por famílias abastadas. Precisamos buscar nossa plena Soberania Ecológica, que mantenha a riqueza da sociobiodiversidade brasileira, as variações de solo, clima e relevo, respeitando os caminhos e vocações ecológicas locais, abandonando o caminho da homogeneização que destrói a diversidade no campo.

Referências bibliográficas

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 4 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

HOEHNE, Frederico C. Frutas indígenas. São Paulo: Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio - Instituto de Botânica, 1946. 88 p.
NOBRE, Antônio D. O futuro climático da Amazônia: relatório de avaliação científica. São José dos Campos: ARA: CCST-INPE: INPA, 2014 Disponível em http://www.ccst.inpe.br/wp-content/uploads/2014/11/Futuro-Climatico-da-Amazonia.pdf. Acesso em 02 de outubro  de 2017.

ODUM, Howard T. Engenharia Ecológica: uma metodologia para a Agricultura Sustentável. Universidade da Flórida

RIECHMANN, Jorge. Hacia una agroética: consideraciones sobre ética ecológica y actividad agropecuaria. In. Riechmann (coord.). Ética ecológica: propuestas para una reorientación. Montevideo: Editorial Nordan Comunidad, 2004, p.175-201.

SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gaia. 2003, 239 p.




Figura 1 – Plantações de soja na região do Planalto do Rio Grande do Sul


Figura 2- Taxa de crescimento de vendas de agrotóxicos entre 2000 e 2010




texto original publicado na Revista Textual de 2017, pg 28 a 35:

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