O Brasil comemorou, antecipadamente, a partir das últimas eleições
de 2022, a finalização de um ciclo de obscurantismo e perseguição implacável, não raro sanguinária, aos
povos indígenas. Entretanto, ações remanescentes, quiçá em decréscimo,
seguem repicando violência e morte nos primeiros anos de 2023[1], incluindo desmatamentos ainda elevados na Amazônia. Em
janeiro e fevereiro, o sistema de detecção de desmatamento na Amazônia (DETER)
constatou a segunda maior área desmatada nesses dois meses (489 km2) [2],
desde 2016, com recorde no ano de 2022 (692 km2)[3]. Obviamente, o novo governo não teve tempo de reorganizar
a fiscalização destruída de parte do (des)governo anterior.
O crime
contra povos indígenas e contra a floresta não se entrega e dobra a aposta? Terá sido finalizada a Temporada de Caça aos Povos Indígenas,
por parte dos carteis da grilagem e do garimpo de ouro, dos políticos e
capitães do agronecronegócio na Amazônia, das grandes empresas de exportação de
minérios, carne e grãos? A iniciativa de parlamentares de direita no Congresso
de instalarem uma CPI que criminalize ONGs que mais atuam na Amazônia em defesa
dos povos indígenas e na defesa do bioma e da vinda de recursos para projetos
socioambientais representa uma retaliação preventiva às iniciativas de defesa
das causas indígenas e ambientais?
O que nos espera de parte
da poderosa frente parlamentar ruralista, de rapina, de governos estaduais e
demais setores que seguem apostando na perseguição aos direitos dos povos
originários e comunidades tradicionais que querem viver com dignidade em seus
territórios na Amazônia e nos demais biomas brasileiros?
Lembremos que parte da
base do governo federal, inevitavelmente, tem partidos que possuem membros da
linha dura contra as políticas indigenistas. Um campo minado e tanto para constantemente
desativar...
Entretanto, o quadro é
paradoxal, já que em janeiro de 2023, com a posse de Lula e a criação de um
Ministério dos Povos Indígenas, vimos a reinauguração de mais um governo
federal de disputa, com alento de grande esperança de interrupção do anterior
processo de extermínio de direitos dos povos originários e comunidades
tradicionais. Já estão em curso a retomada de espaços de diálogo em Conselhos
de participação da sociedade (Conama, Consea, etc.) e diálogo maior com setores
governamentais e maiores espaços de (re)construção de políticas públicas
socioambientais. Os recursos do Fundo Amazônia, do Fundo Nacional de Meio
Ambiente reaparecem, depois de sabotados no governo Bolsonaro. A retomada do
Ministério de Desenvolvimento Agrário é importante e o trabalho será hercúleo,
a fim de disputar, se possível, com a incompatibilidade de um Ministério da
Agricultura atrelado a um modelo convencional e insustentável.
Na questão indígena, a expulsão de
invasores dos Territórios Indígenas e a demarcação congelada dessas áreas são
ações emergenciais, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Entretanto, os povos indígenas e os movimentos de
apoio à sua causa aguardam maior agilidade e medidas urgentes que sinalizem
avanços significativos na garantia de seus direitos, investigações e punições a
todos que, mesmo na Funai de Bolsonaro, cometeram crime de perseguição ou mesmo
inação deliberada, o que causou centenas ou milhares de mortes de indígenas,
como o caso dos Yanomami, que foram abandonados deliberadamente frente à
ocupação de garimpeiros que invadiram e violavam seus territórios. Dentre
outras, esperava-se a homologação imediata da Terra Indígena (TI) Raposa Serra
do Sol, em Roraima, a finalização da apreciação pelo STF sobre o desastroso
Marco Legal que os ameaça, entre tantas demandas reprimidas, pelo menos nos
últimos seis anos, antes de 2023.
Agora, fica a pergunta
que não quer calar: podemos respirar mais aliviados com os
compromissos verbalizados por Lula e pelas primeiras iniciativas em prol de uma
outra política indigenista, se nos próximos dias ou semanas será lançado um
novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no modelo anterior?
Lula declarou, há alguns dias quando em sua visita ao governo da China, ao
contrário de suas sábias palavras em prol da sociobiodiversidade, em sua posse
em 1º de janeiro, que deseja retomar hidrelétricas e expansão da exportação de
soja, entre outras atividades para fazer novamente “girar a economia”.
Muitos de nós, que
choramos de emoção na mais bonita festa de posse de um presidente que
representava a diversidade, agora gelamos diante da possibilidade, muito
provável, do retorno de uma infraestrutura convencionalmente predatória
e concentradora que passou por cima, tantas vezes, dos direitos dos
povos indígenas, das comunidades tradicionais. No Brasil, nunca houve,
nem nos governos da centro-esquerda, o cumprimento da Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a consulta
ampla e genuína, que respeite territórios e modos de vida de povos originários
e comunidades tradicionais, deixando na mão de empreiteiras, inclusive com
ficha corrida desde a Operação Bandeirantes (ditadura militar-empresarial) ou
esquemas de cartel e fraudes em licitações, lidar com o conflito com aqueles
mais vulneráveis que aprenderam a viver com as vocações locais e diversas de
nossos biomas e ecorregiões.
A infraestrutura atual
do Brasil, como havia alertado a Professora Dra. Raquel Rigotto (UFC), há mais
de uma década em uma Reunião do FBOMS[4], se tornou uma “Barriga de Aluguel", de
exportação de commodities, via grãos, minérios e outras matérias primas, além
de água, e importando agrotóxicos e deixando um rastro de degradação
socioambiental nos diferentes territórios da nossa sociobiodiversidade.
Recentemente, a Professora Dra. Marijane Lisboa[5] (PUC-SP) alertou para um grande projeto de
exploração das reservas de potássio na Amazônia para fazer girar o círculo vicioso das
monoculturas de exportação, em modelo colonial que nunca deu certo, no que
questionou como “Nova Boiada”.
A expansão da
exportação de grãos e matérias primas associada a uma logística de “Veias
Abertas da América Latina” faz sangrar ainda mais nosso país, situação semelhante aos demais países do Cone Sul.
Temos muito o que
aprender e também reparação com relação aos Povos Indígenas que nos legaram
tanta riqueza em sociobiodiversidade e culturas. Alimentos como a mandioca, a
batata-doce, o milho-crioulo, o abacaxi, o pequi, os carás, as castanhas, as
muitas centenas de frutas brasileiras, são legados preciosos destes povos que
foram atropelados pela hegemonia das monoculturas, em desertos de grãos (moeda
de acumulação) para a exportação à revelia de uma alimentação variada original.
Também tem destaque a herança de medicamentos da floresta ou mesmo cosméticos e
outros produtos, a maioria alvo de biopirataria e na mão de grandes
transnacionais. A reparação deste roubo de conhecimentos e material genético,
que gera bilhões de dólares para grandes empresas do primeiro mundo, nunca
houve. Perdem-se também as línguas e a cultura digna de centenas de povos
submetidas ao avanço da expansão capitalista gananciosa e implacável sobre seus
territórios. Esta espoliação e degradação tem que cessar e, ao mesmo tempo,
reaprendermos a lidar com nossos biomas a partir do conhecimento tradicional e
das ecorregiões e vocações locais da Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica,
Pampa e Pantanal.
É necessário que se
reflita e se dialogue com os povos originários, as comunidades locais, o
trabalhadores sem-terra, os operários, as comunidades urbanas, a academia, e os
demais setores que buscam um outro tipo de desenvolvimento ou bem viver, com
base na raiz indígena diversa que pode nos ensinar sua forma coletiva de
colaboração, seu desapego à acumulação, sua relação de respeito com a natureza
e demais seres humanos.
Assim, para que os
povos indígenas e a maioria da população possam respirar mais aliviados, é
urgente que se viabilize outra forma de desenvolvimento que não o da espoliação
convencional que concentra e nos subjuga à periferia exportadora de matérias
primas. Este modelo de crescimento econômico é profundamente insustentável e
requer questionamentos, menos imediatismo. Precisamos pensar e construir
uma Ecossoberania, o que requer também agregar valor aos
nossos produtos, em industrias de produtos essenciais, duradouros
em comércios locais, via uma reconversão da matriz produtiva, superando-se o
modelo de grandes investimentos concentrados em grandes obras.
Precisamos questionar
a economia convencional “fim da picada” e debater e viabilizar um processo
virtuoso de construção, com base nos territórios da sociobiodiversidade, o que
também se reflete na melhoria da qualidade da vida diversa, em uma economia
genuinamente sustentável, que respeite, resgate e promova a Dignidade e o Bem
Viver tanto aos Povos Indígenas como a totalidade da população brasileira.
[2] https://www.gov.br/mma/pt-br/analise-dos-alertas-de-desmatamento-na-amazonia-legal-jan-fev-2023#:~:text=Nos%20meses%20de%20janeiro%20e,passado%20(629%20km2).
[4]
Fórum Brasileiro de ONGS e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento Sustentável (FBOMS), que surgiu um pouco antes da Rio 92. http://fboms.org.br/
Excelente artigo. Gostaria, embora esteja perdendo a esperança, que o governo Lula não repetisse o modelo desenvolvimentista predatório e neoextrativista do passado. Mas se fizer, cabe a nós movimentos socioambientais e cientistas comprometidos com os interesses sociais, brigar contra.
ResponderExcluirConcordamos apreensivamente no que nos espera...
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