sábado, 10 de agosto de 2024

PASSANDO A LIMPO OS CAMINHOS E DESCAMINHOS DAS POLÍTICAS AMBIENTAIS DE PORTO ALEGRE

(Paulo Brack, 11 de agosto de 2024)

1. Relembrando um túnel do tempo virtuoso

Porto Alegre teve um histórico de ineditismos na área ambiental, a partir das lutas dos movimentos ecologistas da década de 1970, encabeçadas principalmente pela Agapan. Assim, numa época de despertar para a causa do meio ambiente, em 1976, foi criada a primeira secretaria municipal nesta área no Brasil, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAM). Um ano antes, tinha surgido também a Reserva Biológica do Lami, a primeira do gênero no país. 

Figura 1a. Os Morros, os campos, as nascentes e arroios, as áreas urbanas. Fonte da foto: Secretaria Municipal de Meio Ambiente (2008)


A partir do início da Administração Popular, em 1989, com a chegada do então prefeito Olívio Dutra, houve a ênfase na democratização das políticas de Estado e no protagonismo político da sociedade, por meio do Orçamento Participativo (OP), que visava a decisão mais democrática dos investimentos na infraestrutura urbana de maior alcance social, com a criação do Conselho do OP, com plenárias e indicação de delegados, situação com ênfase na habitação popular e mais acessível à população. Na mesma época, foi criado o Programa Guaíba Vive, avançando no desenvolvimento de políticas de integração entre diferentes pastas.  A SMAM teve vários(as) secretários(as) comprometidos com os compromissos, acima de tudo, com a melhoria da qualidade ambiental naquele período (Figura1).

Figura 1b. Os diferentes secretários de Meio Ambiente durante a Administração Popular. https://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smam/usu_doc/secretarios_galeria_secretariamunicipaldomeioambiente.pdf

No desenvolvimento do Programa Guaíba Vive (1989-2004), as administrações tinham como proposta de eixo transversal a integração deste programa entre as diferentes secretarias, com um dos principais focos o saneamento e a volta da balneabilidade das praias do Lami, Belém Novo e Ipanema. Em 1994, foi criado também o Parque Natural Municipal Morro do Osso, com 127 hectares, pela primeira vez uma UC em um dos mais de 40 morros de Porto Alegre.

Em 2014, foi criado o Refúgio da Vida Silvestre Morro São Pedro, ao lado do bairro Restinga, a partir de uma consulta pública, e como parte como um Programa Integrado Socioambiental (PISA), e Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) no bairro Serraria, finalizado em 2014, mas já previsto nos governos da Administração Popular. A ETE Serraria recebeu recursos do Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal, e impulsionou a criação do RFS do Morro São Pedro, como forma de compensação ambiental dos mais de 200 hectares de banhados e outras áreas úmidas de planície transformados em lagoas de tratamento de esgotos domésticos, reunindo a maior parte dos dejetos líquidos de toda a cidade (80% a 85%). (Figura 2).


Figura 2. Volumes e percentuais de tratamento de esgotoss em Porto Alegre entre 2013 e 2020. Fonte da imagem: https://gauchazh.clicrbs.com.br/ (30/05/ 2022)

No que se refere, às Unidades de Conservação de Porto Alegre, amparadas pela Lei Complementar no 679/2011 do Sistema Municipal de Unidades de Conservação (SMUC), ocorrem quatro UCs (Reserva Biológica do Lami J. Lutzenberger, Refúgio da Vida Silvestre Morro São Pedro (Figura 3), Parque Natural Morro do Osso (Figura 4) e parcela restante do Parque Saint-Hilaire (130 hectares dentro de Porto Alegre, no que sobrou de um área anterior de mais de 1000 ha, 85% doada à Viamão,) prevendo-se corredores ecológicos (que já constam no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, mas ainda não implantados), além de 10 Parques Urbanos. A RBL, originalmente possuía 77 hectares, sendo ampliada, nas últimas décadas, para 204 hectares, principalmente no período da recebendo o nome RBL José Lutzenberger.

Figura 3. Refúgio da Vida Silvestre Morro São Pedro  https://prefeitura.poa.br/smamus/refugio-de-vida-silvestre-sao-pedro


Figura 4. Parque Natural Municipal Morro do Osso (Jornal do Comércio, (6/6/2017) 
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/06/politica/566832-area-no-morro-do-osso-e-o-maior-precatorio-de-porto-alegre.html

 No aspecto da gestão local, existiam técnicos administradores lotados em cada uma das UCs e dos principais parques (naturais ou urbanos) de Porto Alegre (Redenção, Moinhos de Vento, Marinha do Brasil, Harmonia, Mascarenhas de Moraes, etc.), mantendo-se uma gestão local descentralizada e, pela proximidade, com diálogo próximo às comunidades, já que as sedes de administração conviviam com problemas e necessidades locais cotidianas junto à população.

No ano de 1989, com a posse do Secretário Caio Lustosa, durante o governo Olívio Dutra, a SMAM desencadeou uma série debates internos e participativos com seus servidores para reestruturar o organograma da Secretaria. No que se refere às áreas naturais, a SMAM desenvolveu na década de 1990 a Coordenação do Ambiente Natural que também atuava, em conjunto com a Secretaria de Planejamento Municipal (SPM) e outras pastas, buscando a compatibilização das propostas de conservação e estrutura urbana mais ecologicamente sustentável e resiliente.

O Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), o Departamento de Limpeza Urbana (DMLU), entre outros setores, inclusive planejando a cidade com base na visão e gestão das microbacias hidrográficas junto aos arroios, como um avanço na gestão urbana, evitando-se desregramentos e construções irregulares, destacando-se um dos projetos, chamado “Arroio Não é Valão”.

Ainda na década de 1990, houve avanço no fortalecimento do Fundo Municipal de Meio Ambiente (FUNPROAMB), que arrecada recursos de compensações de empreendimentos que implicam em corte de árvores ou supressão de vegetação, para investimentos em projetos, programas e atividades essenciais diferenciadas, além de disponibilizar, até 2016, 10% de seus recursos para projetos ambientais, sob Editais de concorrência por qualidade, para entidades ambientalistas. Entidades como InGá, Econsciência, Amigas da Terra obtiveram recursos para projetos, em concorrência, via editais, porém a partir de 2016 foram interrompidas estas modalidades. O InGá desenvolveu os projetos Frutas Nativas de Porto Alegre e Cinema na Escola.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000, foi elaborado o primeiro um Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU) do país, por meio de iniciativa dos técnicos da SMAM, aprovado pelo Conselho Municipal de Meio Ambiente (Resolução COMAM n. 5 de 2006). Tivemos, também, na SMAM, quatro Zonais de arborização urbana e gestão de praças (Norte, Leste, Sul e Centro), com infraestrutura humana formada por equipes de pessoal capacitado, formadas por técnicos, auxiliares-administrativos, capatazes, jardineiros, operários, além de equipamentos para plantios, podas e manejo da vegetação urbana. Os programas de arborização eram realizados de forma descentralizada, além de plantios com as comunidades, havia manejo de vegetação e manutenção de praças e parques. As comunidades cuidavam das mudas plantadas em integração entre as zonais e a população dos bairros, reduzindo a perda (morte das mudas) a índices baixíssimos. Durante algumas décadas, ocorreu o tombamento de árvores, via decretos, que garantia um olhar diferenciado. Foram quase mil árvores tombadas, em sua maioria em vias públicas. No Governo de Nelson Marchezan Jr., houve a tentativa de derrubada destes decretos, iniciativa interrompida na justiça.

Neste patrimônio invejável da SMAM, a experiência de seus técnicos contribuiu para dar origem à Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (SBAU), sendo os mesmos os seus principais fundadores. A SMAM já teve mais de 500 funcionários, situação que se reduziu drasticamente nos dias atuais.

Em 1998, foi elaborado o Atlas Ambiental de Porto Alegre, coordenado pelo professor Rualdo Menegat, da UFRGS, com apoio da SMAM e Prefeitura de Porto Alegre, constituindo-se em uma obra inédita, de extraordinária importância no entendimento da paisagem natural e urbana, além da geobiodiversidade de Porto Alegre, auxiliando a gestão ambiental do município. Em 2008, outra publicação importante, o Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre, coordenado pelo professor Heinrich Hasenack, também da UFRGS, mapeou e descreveu aspectos geológicos e da cobertura vegetal e os aspectos urbanos de Porto Alegre.

A experiência acumulada de um órgão de Estado, independentemente de governos, manteve técnicos e demais funcionários em uma secretaria que gerenciava parques, praças, além de um Viveiro Municipal, com mais de 50 funcionários experientes envolvidos na produção de dezenas de milhares de mudas nativas por ano, com coletas de sementes, marcação de matrizes arbóreas com mais vitalidade.

Cabe destacar também que outras secretarias, além da SMAM, atuaram em conjunto às políticas ambientais, como a Secretaria Municipal de Educação (SMED), neste caso em Educação Ambiental formal, com a equipe de professores das escolas municipais, que eram valorizados até cerca de 15 anos atrás. A Secretaria de Educação dispunha de dois ônibus da Carris (Smedinhos) para conduzir estudantes a conhecer diferentes áreas da cidade, entre elas, as áreas verdes dos parques e a Reserva Biológica do Lami.

O Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) também realizava estudos sobre a qualidade das águas do Guaíba, possuindo equipe de técnicos qualificados, em integração com especialistas em algas, pertencentes à então Fundação Zoobotânica (hoje extinta), tendo ênfase ao plâncton, entre os aspectos avaliados incluem os fenômenos de floração excessiva de cianobactérias tóxicas nas águas do Guaíba.

O Departamento de Limpeza Urbana (DMLU) possuía um programa inédito e prioritário na Coleta Seletiva e Reciclagem de resíduos urbanos, com apoios aos galpões e centros de triagem de resíduos sólidos. A educação ambiental relacionada a isso era uma prioridade até os governos da Administração Popular.

O transporte público também teve preocupação em incorporar pela Companhia Carris a qualidade de motores menos poluentes, situação que foi perdendo qualidade nos últimos governos, resultando na recente privatização total do transporte da cidade, com menos qualidade, opções de trajetos, horários de linhas e menor conforto. Com efeito, parte da população desistiu do transporte coletivo e busca menos dificuldades por meio de veículos particulares, taxi e aplicativos, o que implica em mais poluição do ar e mais engarrafamentos.


A Administração Popular teve muitas outras iniciativas de cunho socioambiental, porém a grande imprensa gaúcha sempre fez questão de não dar visibilidade necessária.

2.  A desestruturação das políticas socioambientais em Porto Alegre

Os desmontes das políticas ambientais na administração municipal começaram a partir de 2005, com o fim do período de quatro gestões da Administração Popular, se aprofundando entre 2017 e 2024, desde o governo de Nelson Marchezan Jr. até o atual governo Sebastião Melo. Há quatro anos, já havíamos analisado e colaborado na elaboração do documento denominado Dar Visibilidade à Temática Ambiental nas Eleições Municipais de Porto Alegre.

Na gestão atual, do prefeito Sebastião Melo, a SMAM foi substituída por SMAMUS, sem ter havido nenhuma discussão com a sociedade, incorporando-se, portanto, os dois nomes: Urbanismo e Sustentabilidade. Quanto ao primeiro, praticamente foi motivo para extinguir a Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), misturando um conceito de urbanismo, de interesses de mercado e sem política clara de planejamento, com o tema da proteção ambiental, esvaziado na prática, em áreas que nunca tiveram integração e agora tendem a refletir conflitos de interesses.

O urbanismo foi incluído na estrutura da SMAM, mas destituído de um contingente em número suficiente de técnicos que viessem a dar prosseguimento ao planejamento racional da cidade, e que mantivesse a expertise histórica de secretaria anterior. O segundo conceito, no que chamam de sustentabilidade, é incompatível com a progressiva precarização do órgão ambiental e das políticas de transporte, saneamento, drenagem, abastecimento de água, tratamento de resíduos, via privatização dos serviços públicos. O termo sustentabilidade tornou-se muito mais um conceito vazio, de propaganda enganosa, e profundamente contraditório com a realidade de uma cidade que não têm planejamento de ocupação, pois o mercado é quem dita as regras.

Nessa visão imediatista, onde os negócios pesam mais do que a qualidade de vida da maioria da população, tanto a Secretaria de Planejamento Municipal como a Coordenação do Ambiente Natural não interessavam aos últimos governos municipais neoliberais, por isso desapareceram. No organograma atual da SMAMUS, a CAN não existe mais e o termo biodiversidade tampouco consta. No tema da biodiversidade, a SMAM, nas gestões de Nelson Marchezan Jr e Sebastião Melo, houve a tentativa de arquivamento da iniciativa do InGá, em propor o reconhecimento oficial das espécies ameaçadas da flora do RS com ocorrência natural em Porto Alegre, situação revertida, por nossa iniciativa, que resultou na Resolução Comam n. 02/2024 que reconhece, prioritariamente nas políticas públicas relativas à proteção da biodiversidade, a existência de 80 espécies de plantas ameaçadas no território do município.

Um exemplo da inversão de prioridades foi o que ocorreu na Ponta do Arado, em Belém Novo, frente ao estímulo da prefeitura para a construção do Empreendimento Arado Velho, prevendo-se imenso aterro de banhados da margem do Guaíba, mobilizando a população local, tanto na defesa dos direitos dos Mbya-Guarani nesta área como na defesa em um de áreas naturais da orla. Fato semelhante, por estímulo da prefeitura, ao empreendimento Loteamento Ipanema, da então empresa Maiojama em um dos maiores remanescente de Mata Atlântica do bairro de mesmo nome. Tal ameaça fez surgir o Movimento Preserva Arroio Espírito Santo, em Ipanema, além do Movimento Preserva Zona Sul, contra a construção de mais de uma dezena de edifícios e ruas num bairro tradicionalmente de lazer e turismo a toda a população.

A Equipe de Fauna está hoje muito desfalcada, sendo que originalmente possuía três técnicas, há mais de 30 anos, consta com somente uma técnica para dar conta de toda a cidade, com mais de 1000 atendimentos só no ano de 2023. Ou seja, não há equipe e tal situação denota desinteresse político em fortalecer uma equipe fundamental para tratar da fauna de Porto Alegre e suas interações com a população. Tal sobrecarga, à semelhança do que ocorre na arborização, constitui-se em desestímulo para uma função importante, destacando-se aqui as mortes de bugios-ruivos, espécie ameaçada de extinção, alvo de choques elétricos na fiação (sem cuidados) nas áreas naturais das zonas sul e extremo sul de Porto Alegre. Na orla do Guaíba, cabe destacar a presença de quelônios (tartarugas) que depositam seus ovos em área hoje em urbanização, promovida pela prefeitura, com ameaças a estes locais, como no caso do Anfiteatro Pôr do Sol.

No que se refere ao Orçamento Participativo na realização de obras demandas da população, houve um crescimento em 1989, mas uma redução drástica a partir de 2005, como mostra a Figura 5. A participação da sociedade também foi definhando e a captura de lideranças por parte da prefeitura no OP foi flagrante.  

No caso da Educação, segundo o Vereador Jonas Reis (PT), o prefeito Melo desmontou o Conselho Municipal de Educação (Lei Complementar n° 953/22), reduzindo a participação da sociedade civil, ao mesmo tempo que ampliou a participação de empresas privadas da educação. Segundo o vereador, o governo e o setor patronal das escolas privadas têm a maioria no conselho, sendo excluídas as representações dos funcionários das escolas, do movimento comunitário, dos orientadores educacionais e dos supervisores educacionais.

Figura 5 Investimentos da Administração Municipal, a partir do Orçamento Participativo. Da democracia participativa à desdemocratização na cidade: a experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre (https://www.scielo.br/j/cm/a/kwSGSgGLdWLVBh6yHLKqSYq/#ModalFigf08).

Como agravante do aumento dos interesses privado na cidade, na gestão atual foi criada a Secretaria Municipal de Parcerias (SMP), dirigida pela contadora Ana Pellini, que tem histórico e expertise na flexibilização da legislação ambiental (Sema e Fepam) e na agilização da transferência de espaços públicos, como os parques da Orla, para espaços privatizados, agora chamados, pela prefeitura, de “Trechos” submetidos às concessões privadas de áreas de grande interesse à população como a orla do Gasômetro, do Parque Harmonia (Maurício Sirotsky Sobrinho), Parque Marinha do Brasil, Anfiteatro Pôr do Sol, etc..

O Parque da Redenção, que teve ameaça de construção de um estacionamento subterrâneo para mais de 500 automóveis, também sofreu a intrusão de um espaço de comércio de gastronomia, chamado Refúgio do Lago (Figura 6), apelidado pelo Coletivo Preserva Redenção como "Refugo do Lago". Sua localização foi estabelecida onde estava historicamente o Orquidário Municipal, desativado e demolido pelo governo anterior, sendo a área submetida a cortes de árvores, perdendo-se área verde direcionadas para finalidades comerciais, prejudicando a fauna local. Neste caso, os gambás (que pertencem à fauna original do local) foram alvo de armadilhas ilegais para captura e soltura destes animais em outro município por parte da empresa permissionária deste espaço. Houve protestos também por parte do Coletivo Preserva Redenção Tampouco existia projeto de tratamento de esgotos no local, o que gerou protestos e uma infeliz facilitação de parte da Prefeitura. 

Parque Harmonia foi o que mais sofreu (Figura 7) com a retirada de sua vegetação, a partir da ausência de um licenciamento ambiental necessário para empreendimentos de tal magnitude, com o planejamento de instalação de dezenas de prédios e equipamentos que substituíram áreas verdes, além da autorização de supressão de 432 árvores, e derrubada de mais de uma centena de árvores, com aterros prejudiciais e destruição de vegetação de gramados e ambientes que representavam abrigo para 85 espécies de aves, por exemplo. Cumpre lembrar que a substituição de áreas verdes por asfalto teve como intenção de abrir uma ampla área de estacionamento para mais de 1.500 vagas de automóveis.

  Figura 6.  O Orquidário foi demolido no ano de 2018, sendo posteriormente ocupado e ampliado para uso comercial em gastronomia, no local denominado Refúgio do Lago. Faz parte de um rol de desvios de finalidade e privatização de nossas áreas verdes públicas. Já houve a perda da metade da área do Parque Farroupilha/Redenção, desde sua origem, quando ultrapassava 70 hectares, e hoje possui cerca de 37 hectares. (Foto Paulo Brack). 

Figura 7. Parque Harmonia (Parque Maurício Sirotsky Sobrinho) parcialmente devastado em junho de 2023. Fonte da imagem: Gabriel Poester. 

Paulatinamente, no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) as áreas rurais foram sendo substituídas por áreas urbanas, perdendo a prioridade de se manter a produção de hortigranjeiros, frutas e pecuária, estimulando-se a urbanização em espaços de ocupação mais rarefeita e sem vocação para o urbanismo, a partir da elevação dos valores do Imposto Territorial Rural (ITR) para Imposto Territorial Urbano (IPTU). Diferentes artimanhas foram direcionadas ao PDDUA, com a intenção contínua de favorecer empreendimentos imobiliários, com a concomitância da flexibilização das áreas naturais e rurais de Porto Alegre. Apesar de mais de 1/3 de áreas com vocação de manter a Zona Rural, que foi reduzida a menos de 8% dos 49 mil hectares do município.

Quanto aos programas, como o Programa Guaíba Vive, lamentavelmente, não houve mais nenhum projeto similar, e as praias do Guaíba não avançaram no controle da poluição, e a Orla do Guaíba, na administração do Prefeito Sebastião Melo, transformando-se, nos chamados “Trechos da Orla” em espaços para eventos, gastronomia, estacionamentos para automóveis particulares, etc., em um ritmo sem fim de perdas de áreas verdes públicas para concessões privadas e atividades que geram eventos, gastronomia e outros negócios destoantes das finalidades das áreas verdes, onde a contemplação da natureza foi substituída pela contemplação ao consumo.

No tema arborização, a partir de 2017, a administração do prefeito Nelson Marchezan Jr. fechou as zonais da SMAM, retrocedendo na atuação de técnicos lotados nos bairros. No que se refere ao tombamento de árvores de importância para a cidade, no que resulta em maiores restrições à supressão, o governo do então prefeito Marchezan Jr. tentou derrubar todos os decretos de tombamento de árvores em Porto Alegre, porém a Justiça, a por iniciativa do MPRS, reverteu a tentativa do então prefeito realizados por prefeitos anteriores.

Até o final da década de 1990, ou mesmo no início deste milênio, o planejamento do plantio de árvores era realizado pela Secretaria, em geral pelas Zonais. Desde mais de uma década para cá, com a aposentadoria de técnicos e demais funcionários, a prefeitura vêm destinando a terceirização dos serviços públicos a empresas, entretanto sem a experiência acumulada pelos funcionários mais antigos.

Em 2020, denunciamos o descaso com a arborização, já que está havendo um arboricídio em Porto Alegre (Figura 8). Segundo uma matéria do veículo O Matinal, o corte de árvores em Porto Alegre está crescendo desde 2012, a partir da terceirização do serviço de remoções, sendo que a média anual passou de 2.419 remoções, entre 2007 e 2011, para quase 4 mil no período entre 2012-2016.

Figura 8. A desfiguração da arborização foi drástica, a partir das podas, supressões e intervenções, para "desobstruir" a fiação elétrica aérea, realizada pela empresa CEEE-Equatorial, com aval da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Supremacia de um modelo caduco de transmissão de energia sobre a saúde das árvores, o verde da cidade e a paisagem (fotos Paulo Brack).

A partir de 2017, houve o abandono do Viveiro Municipal, depois de um problema de fornecimento de luz ao espaço por mais de três anos, com a tentativa de fechamento do mesmo por parte do então secretário da SMAM, Maurício Fernandes (Figura 9). Tal situação gerou indignação e uma ação na justiça por parte do InGá e apoio do Ministério Público do Rio Grande do Sul, no sentido de obrigara a sua retomada, o que foi feito a partir de 2022. Foram gastos mais de 2 milhões de reais para sua reestruturação, com recursos do FUNPROAMB. Caso não existisse a ação na justiça, o viveiro não existiria mais.

    Figura 9. Viveiro Municipal abandonado entre 2017 e 2021 (foto Paulo Brack, 2020)

Quanto ao DMAE, hoje está profundamente desfalcado com menos de 40% do contingente existente há cerca de duas ou três décadas. Os resultados desastrosos das enchentes em Porto Alegre têm relação estreita com a desestruturação do DMAE.

No que se refere ao Fundo Municipal de Meio Ambiente (FUNPROAMB), os recursos de 10% previstos para projetos pelas entidades ambientalistas tiveram seus editais cancelados a partir de 2017 e com a retirada do FUNPROAMB da SMAMUS, centralizado agora pela prefeitura, a partir de junho de 2024, com a alegação de serem usados em emergências para atendimento aos danos provocados pelas enchentes.

Lembramos que as enchentes catastróficas em vários bairros da cidade (Figura 10), onde dezenas de milhares de pessoas perderam tudo, são também resultado do abandono e profunda precarização da estrutura e do sistema de proteção às cheias (dique, muro, comportas e bombas), como um projeto que visa o esvaziamento e substituição do DMAE por contratação de serviços por empresas privadas. Cabe lembrar que o prefeito e vários vereadores de sua base eram favoráveis à derrubada do Muro da Mauá.

Durante mais de um mês, vários entulhos de móveis e outros materiais e resíduos permaneceram abandonados nas calçadas de bairros mais afastados do Centro, no caso Sarandi e Humaitá, sem recolhimento, gerando foco de vetores de doenças e maior prejuízo às populações já desassistidas. 

Figura 10. Entulhos decorrentes das enchentes em Porto Alegre. Permaneceram por mais de um mês sem serem retirados, a não ser em zonas mais centrais, ficando, portanto, abandonadas as áreas de bairros mais afastados, neste caso o bairro Sarandi, e a população já precarizada em serviços e condições de vida. (Foto Isabelle Rieger, Sul 21).

Uma das últimas “cerejas do bolo” da desestruturação das políticas públicas na administração de Porto Alegre foi a extinção de fundos públicos de várias áreas, entre elas o da ambiental. Após a calamidade climática-ambiental de maio de 2024, o governo de Sebastião Melo obteve uma lei que retira e centraliza os recursos dos diferentes Fundos, inclusive retirando recursos do FUNPROAMB, via Decreto n. 22.647/2024 e Lei Complementar n. 1014 de 21 de junho de 2024.

Um dos pontos marcantes do retrocesso foi o caso da retirada de seus administradores dos Parques de Porto Alegre, técnicos da SMAM, sendo, portanto, desativada a gestão local, que antes era existente. Em lugar deles, o prefeito nomeia “prefeitos de parque”, sem nenhum processo democrático, republicano ou impessoal, o que resulta, em sua maioria, uma indicação que gera tendência a alinhamento político ao prefeito e descompromisso em possuir gestores técnicos, da secretaria de meio ambiente, em número suficiente para uma gestão ambiental pública e defensora do meio ambiente.

Quanto ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM), houve um enfraquecimento da participação democrática das entidades, a partir de 2017. Em meados daquele ano, o então Secretário da SMAMS elaborou, de forma unilateral, um edital que excluía a representação das entidades ambientalistas no Conselho, de forma autônoma, via Apedema, o que ocorria, anteriormente, há mais de 20 anos. Esta situação se aprofundou, a partir de 2020, incluindo sorteio, em vez de uma eleição, no caso da existência de mais de entidades por vagas.

Quanto ao tema climático, a prefeitura de Porto Alegre contratou uma ONG internacional de nome ICLEI, que recebe recursos como consultoria, para elaboração de um Plano de Mudança Climático que é irreal para uma cidade que facilita a ocupação urbana por parte de grandes condomínios de classes alta e média sobre as áreas naturais e rurais da zona sul e leste, destrói áreas verdes, fragiliza o transporte coletivo público, promove aumento de consumo desnecessário de energia elétrica (Figura 11) o que implica em mais liberação de gases de efeito estufa, como exemplo em painéis luminosos, e também de propagandas que induzem maior consumo dispensável, incrementando a poluição visual. Isso tudo, justamente, na recente capital da calamidade climática mundial.

Figura  11. A prefeitura de Porto Alegre promove que sejam espalhadas milhares de totens luminosos na cidade, refletindo o esbanjamento de energia elétrica e o consumo, que resulta na crescente liberação de Gases de Efeito Estufa, justamente na capital da calamidade climática do mundo, ocorrida em maio de 2024 (Fotos Paulo Brack). 

3. A retomada da resistência e das lutas de entidades e movimentos para a interromper o processo e transformar a cidade em empreendimentos de negócios

Há muita história de construção de políticas ambientais em Porto Alegre, com base nas mobilizações da sociedade e no período de 16 anos da Administração Popular. Deve-se barrar as muitas iniciativas de parte dos governos neoliberais em destruir conquistas socioambientais.

A calamidade climática-ambiental que destruiu lares e condições de vida ainda mais precarizadas pela enchente em Porto Alegre é resultado do abandono do sistema de proteção às cheias (comportas emperradas no muro da Mauá, casa de bombas de drenagem com vários danos de falta de manutenção, diques fragilizados, et.). Existe uma responsabilidade evidente de uma administração municipal no agravamento desta calamidade que, pela lógica do “Estado Mínimo”, esfacelou o serviço público e privilegiou empresas que visam ao lucro acima de tudo.

Apesar do contexto de retrocessos, o ambientalismo se renova em nossa cidade, com movimentos vivos em vários cantos. O momento das eleições de outubro de 2024 constitui-se em uma das grandes oportunidades, sem dúvida a mais importante, para a reflexão e a busca do restabelecimento de políticas ambientais de reconstrução de estruturas e ações mais perenes para as garantias socioambientais, já asseguradas pela Constituição Federal de 1988.

Estamos neste movimento há décadas e nos sentimos na responsabilidade de contribuir para esclarecer o histórico dos processos atuais para a mudança de cenário, para melhor, em prol da natureza e da qualidade de vida da maioria da população de Porto Alegre. 


 

 

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