quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Carta da Aldaci Bellé sobre os alimentos da Agrobiodiversidade (2010)

Aldaci Bellé (Cap. São José, Antônio Prado, 28/09/ 2010) 

(Material de contribuição para Seminário sobre Frutas Nativas do RS, Grupo Viveiros Comunitários em evento realizado dia 10-12-2010 na Faculdade de Economia UFRGS) 


Rever o conceito produto ecológico e orgânico na alimentação humana e as regulamentações como rotulagem e selagem. Será que alimento ecológico é aquele que foi plantado pelos agricultores ecologistas sem o uso de agrotóxicos? E a natureza? Todas as espécies existentes na Terra, possíveis para nos alimentar, será que já acabaram sua função na Terra e não são mais necessárias? 

Será que o homem é um ser tão superior ao ponto de ser capaz de se auto sustentar sem depender mais dos outros seres vivos existentes e assim subestimá-los e até matá-los ou será que a natureza em toda a sua cadeia organizada se reúne e expulsa o homem extinguindo assim toda a espécie do planeta? 

*ver melhor a questão do alimento ser mercadoria: compra e venda. 

Se o alimento é vida e mercadoria, então vida é passível de ser comprada ou vendida, a moeda passa a ter o controle sobre a vida e onde fica a soberania alimentar? O homem passa a não ser mais livre, vivo, mas sim dependente de outro homem mais capitalizado monetariamente. Desta forma alguns destes seres poderão decidir e optar por quantos desses homens deverão viver ou morrer para servi-los. 

Exemplo: se um rei necessita em seu país de 1000 seres humanos para servi-lo, e a população é de 4000 pessoas, então através da soberania alimentar ele pode decidir matar 3000 conforme a sua livre vontade e interesse pessoal? E se por acaso ele pensar que se basta a si mesmo? O que acontecerá com todos os outros? 

E nós, seres estúpidos, ao invés de conversarmos sobre o assunto não temos tempo. Precisamos ir para o trabalho porque empregos já tem poucos, a distância é grande, o ônibus está lotado e já não há espaço para andar de automóvel. Tenho que comer pouco porque o salário é baixo, preciso pagar outras coisas que a sociedade me oferece luz, água, telefone, internet. Este é meu conforto e a minha vida. 

Será que me acostumo a fazer com que o alimento seja sempre menos necessário em minha vida que possa substituí-lo por outros produtos mais fáceis de serem encontrados no mercado? Será que um dia evoluirei tanto que uma só cápsula química me baste para sobreviver o dia inteiro e uma gota de água poderá matar minha sede? E os meus semelhantes, o que acontecerá com eles? Mas por que me preocupar com os outros se eu já não tenho tempo para pensar em mim? 

Estou muito cansado, tenho tanta coisa para fazer. Sinto necessidade de refortalecer minhas células, mas também o quê me importa se me alimentar ou não com a vida que a natureza me ofereceu ou os transgênicos modificados que eu mesmo criei? Afinal, se eu criei é bom porque eu sei o que é bom para mim...

Práticas: incentivar os agricultores familiares a plantarem não só soja e cana, mas também batata doce, pepino, abóbora, guabirova, butiá, cereja e utilizar não só adubo químico, mas também fortalecer o solo com adubação verde e outras técnicas naturais que existem. Distribuir, plantar, coletar, trocar sementes agricultáveis. Não só depender de comprar nas lojas distribuidoras. Criar uma consciência ecológica real. Não permitir que alguns manipuladores proíbam o livre comércio de alimentos vivos, como, por exemplo, pela rotulagem e selagem do ecológico. Ao contrário, fortalecer a plantação de PANCs [plantas alimentícias não convencionais]: venda em feiras de produtores, cursos de culinária, conservação nas famílias criando hábitos culturais. 


Explicar as tabelas nutricionais: quanta vitamina tem num copo de suco de guabiju e qual a sua importância para o equilíbrio do organismo, etc. Coleta de frutas: Mostrar aos produtores rurais que em suas casas existem, em todas elas, frutas nativas e alimentos (PANCs). Fazer um levantamento topográfico por município ou micro região para ver quais as principais frutas encontradas naquele ecossistema e quantas poderão ser coletadas. Estudar uma forma racional de juntar estas matérias primas individuais das propriedades, de uma forma que, comunitariamente, uma empresa agroindustrial possa recolher esses frutos e processá-los. 

Exemplo: quinta-feira é dia de coleta de uvaia na capela. Todos os agricultores que tiverem uma ou mais árvores em sua propriedade poderão coletá-las e, no final da tarde,  passará uma camioneta e recolherá os frutos que serão encaminhados às unidades de processamento assim como é feito com o leite nas pequenas propriedades agregando renda para a família. Favorecer as unidades de processamento interessadas em tecnologia de pesquisa e oportunidade de comércio desses produtos. Não dificultar, facilitar. Incentivar as famílias a plantar mais frutíferas nativas ao redor de suas casas, ao invés de cortá-las. Incentivar as pessoas e agricultores, individualmente, a consumir frutas nativas.

Fazer com que o público urbano tenha acesso fácil às frutas nativas. Não proibir, rotular ou selar o comércio de frutas extraídas em áreas de extrativismo, ou seja, favorecer o consumo. Enviar para a comunidade uma equipe treinada para ensinar as famílias como e quando poderão realizar a coleta dos frutos. Cadastrar pomares ou árvores para possível coleta, a fim de evitar o corte e a contaminação das mesmas com agrotóxicos e similares garantindo assim que sejam boas para o consumo humano.

Comprovar, através de fatos concretos, que a renda da família pode melhorar se ela aproveitar comercialmente os frutos que estejam sendo desperdiçados na propriedade. E incentivar o aproveitamento de pequenos espaços da propriedade para plantar novas frutíferas, ou até mesmo árvores comuns nativas. 

Incentivar a organizar criativamente a plantação da área de terra disponível que o agricultor tem, criando árvores que não atrapalhem o plantio de suas lavouras, mas ajudem a embelezá-las e enriquecê-las. Não necessariamente as propriedades terem uma área de reserva, mas, sim, organizadamente terem equilíbrio necessário para o meio ambiente. 

Exemplo: não importa o local onde a árvore está plantada. O importante é que existam pelo menos 4 ou 40 árvores naquela propriedade sendo elas pequenas, grandes e médias. Para não acontecer de só existirem velhas e um dia virem a acabar, é necessário todos os anos plantar alguma árvore. Nas beiras das águas e nascentes favorecer a criação de espaços naturais plantados ou não que possam oferecer possibilidade de coleta racional, a fim de não torná-las áreas ociosas passíveis de perda, principalmente nas pequenas propriedades rurais. 

Exemplo: se você tem uma propriedade com um rio, e 30 metros da sua margem for mata,  você poderá colher cereja, pitanga, araçá, criar abelhas, flores, pássaros. Usufruir os benefícios que as árvores oferecem sem que o fluxo de água seja prejudicado. 

Fitossanidade: Temos que desmistificar a ideia de que os alimentos naturais vivos que foram consumidos pelos povos mais primitivos, até os dias de hoje, são os que vão fazer mal à saúde e prejudicar o nosso organismo, mas, sim, os geneticamente modificados que não sabemos nem temos como provar os benefícios que oferecem para nossa saúde. As grandes empresas multinacionais, para justificar suas falsas invenções, tentam colocar a culpa nos outros. Exemplo: “não consumam frutos da palmeira juçara, porque o barbeiro coloca ovos neles; procurem consumir soja e milho transgênicos que foram produzidos com o mais alto controle de pragas e doenças impedindo assim a sua contaminação e garantindo a você um alimento morto mais saudável”. 

Controle de higiene nas agroindústrias: é preciso desburocratizar este assunto. Não posso mexer nos alimentos com as mãos que Deus me deu, porque poderão estar contaminadas com bactérias. Posso mexer com um aparelho metálico que a indústria metalúrgica construiu, utilizando matéria prima da natureza e mão-de-obra barata, tendo assim um grande lucro. Posso usar, na limpeza dos equipamentos, em vez de produtos químicos que a indústria produziu, produtos naturais ecológicos. Porém, não posso limpar meus equipamentos com cinza que foi extraída da natureza e o único processo que sofreu foi o da queimada. Posso usar máscara no rosto para evitar que a contaminação do ar, saudável ou não, que eu tenho dentro de mim se misture com os alimentos. Mas, não posso tirar do taxo, e nem preciso, os resíduos de agrotóxico que ficam presos nas frutas, porque isso ninguém enxerga. 

Agricultura Familiar = Meio Ambiente. No governo popular implantado pelo Olívio Dutra [no RS] havia começado um bom trabalho no sentido de respeitar a natureza. A agroindústria familiar da época começava a despertar e melhorar a renda da comunidade, o turismo rural verdadeiro e não comercial estava nascendo, o povo tinha mais vida real e entusiasmo. Não é o caso de copiar, pois muitas falhas existiam na época, mas, sim, rever as propostas e elaborar um projeto de governo parecido a fim de fixar o homem no campo e incentivar o público urbano a não consumir só transgênicos, mas buscar uma alimentação plena, com o direito de consumir tudo o que a natureza oferece. 

**Rever os alvarás das feiras livres, afinal se são livres deveria ser possível comercializar de tudo. Ex: a feira de sábado (FAE) em Porto Alegre. 

**Escolas técnicas especializadas no meio rural. Ex: onde já existe curso médio nas escolas do interior, que o ensino seja direcionado para a realidade rural, e não com é hoje que, quando concluem o segundo grau, digam: “agora já posso buscar um emprego na cidade. Estou preparado .” 

Grande objetivo – principal: Mostrar a importância da biodiversidade na sustentabilidade do planeta e clarear qual a necessidade de mantê-la intacta para a soberania alimentar de um povo independente. Rever a importância da alimentação na liberdade das pessoas. Troco cesta básica por? Troco transgênico por? Troco milho crioulo por? Soja por? Biodiversidade por? E quando não tiver mais nada para trocar...? 

Bandeira de Luta: Agricultura. Forçar o governo a assumir uma grande luta no estado em favor da vida. Rever zonalmente as biodiversidades locais e contrapor à monocultura de eucalipto que está invadindo todo o meio ambiente. Não ser contra eucalipto, ser a favor do respeito às outras espécies e variedades de árvores. 

Como fazer? Através da educação, mostrar para as pessoas quantas coisas boas a natureza oferece, para a alimentação humana (PANCs). Na merenda escolar, não servir apenas barrinhas de cereal, mas também suco de guabirova, cereja, jabuticaba, etc, produtos da natureza em sua época. Na Saúde: mostrar a possibilidade de você tomar um chá ao invés de um calmante químico. 

Não sermos contra ninguém, mas sim a favor do que é mais saudável e sustentável.

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