Paulo Brack (22-12-2021)
Chico Mendes foi morto no dia 22 de dezembro de 1988, uma semana após seu aniversário de 44 anos, quando se preparava para tomar banho nos fundos de sua casa em Xapuri, uma pequena cidade na floresta amazônica no Acre.
Tive a oportunidade de ir a Rondônia, Amazonas e Mato Grosso, por
períodos curtos, mas, como curioso amante da botânica e da natureza, sempre me
fascinou a floresta amazônica, sua diversidade e exuberância. E sempre me
perguntava, desde estudante, há mais de 40 anos: por que um terreno desmatado
valia mais economicamente do que uma área com floresta? Chico Mendes demonstrou
esta contradição, de uma falsa economia, incompatível com a Amazônia, onde
domina a extração de madeira, a expansão interminável de áreas com pastagem, em
cima de matas originais, como as únicas alternativas para a região.
O
extrativismo cooperativo veio à tona e segue sendo o grande caminho para
manter a floresta em pé, com sociobiodiversidade e com maior rendimento. E o
pioneirismo, na prática, em levantar esta questão com reconhecimento de sua
comunidade, no Acre, e com repercussão internacional, era Chico Mendes. Ele
teve o mérito de mostrar que proteger a floresta também era proteger os povos
da floresta contra o avanço da fronteira agropecuária e do modelo de ocupação
predatório que vinha dos grandes fazendeiros das regiões sul e sudeste.
Na minha
condição de pesquisador quanto ao papel estratégico da flora e da
biodiversidade brasileira, considero um marco de incorporação dos modos de vida
à sustentabilidade ecológica necessária nos dias atuais. Sem a floresta
amazônica, estaremos condenando parte importante do país a viver sem chuvas,
acabando com os Rios Voadores que alimentam as chuvas no Sul e Sudeste do país,
e sem recursos genéticos para uma economia virtuosa, que conviva com a floresta
e seus habitantes.
As lutas de Chico Mendes
Na década
de 1970, milhares de colonos, muitos enquadrados como sem-terra, eram levados
para a Amazônia pelo modelo militar-ruralista de ocupação. Testemunhei isso em
uma viagem de ônibus a Rondônia. As famílias pobres iam, desde a região sul, de
ônibus, caminhão, com poucas posses, colonizar uma região desconhecida, com o
intuito de abrir picadas na mata e povoar áreas, inclusive de territórios
indígenas e também de comunidades extrativistas, como no caso dos seringueiros.
A BR 364, associada às picadas em “espinha de peixe”, cortando Mato Grosso,
Rondônia e Acre, foi alvo de sua resistência junto com as comunidades de
seringueiros do Acre. Grandes fazendeiros vinham atrás, depois das áreas
desmatadas e acabavam adquirindo os lotes dos pequenos, que não conseguiam
sustento econômico e apoio para se manter na região. Chico Mendes coordenou a
resistência a este processo, com base no município de Xapuri, no Acre. Montavam
o “empate”, uma forma de mobilização, trancando estradas e montando um conjunto
de estratégias para barrar o desmatamento e a ocupação de fazendeiros e pecuaristas
na região. Isso criou conflitos tremendos com os poderosos, também apoiados
pelo governo militar-civil da época, acostumados com a força bruta.
Wilson
Pinheiro foi um líder acreano, assassinado, antes de Chico Mendes e pelas
mesmas forças de ocupação predatória da Amazônia. Mas a luta estava dada, e
Chico Mendes organizou União dos Povos
da Floresta, integrando seringueiros, extrativistas de castanha-do-Pará,
indígenas e outras comunidades tradicionais. Também teve papel importante
sindical trazendo as pautas da floresta, em especial na Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e também no Partido dos Trabalhadores (PT), tendo sido
candidato às eleições para deputado estadual no Acre, mas sem ter sido eleito.
A luta dos seringueiros e dos extrativistas, na Amazônia, se confunde com a história da região. O estado do Acre foi incorporado ao Brasil, em conflitos históricos com a Bolívia, devido à penetração de seringueiros naquele país, em busca do látex, para confecção da borracha, tirada da casca da seringueira (Hevea brasiliensis). Junto com a seringueira, a castanheira (Bertholletia excelsa), o guaraná (Paullinia cupana) e outras tantas plantas também eram usadas por populações tradicionais, obtendo-se assim, com o convívio com povos indígenas, modos de vida mais integrados com a natureza. A luta de Chico Mendes era para garantir, justamente, modos de vida mais harmônicos com a natureza. E seu papel político foi tamanho, na década de 1980, que lhe deu projeção nacional e internacional, tendo recebido em 1987 o Prêmio Global 500 da ONU, por sua luta, em especial de resistência ao modelo predatório de ocupação da Amazônia. Infelizmente, apesar da criação das Reservas Extrativistas, desde quase duas décadas, influenciada pela tentativa de proteção dos modos de vida dos seringueiros e dos pequenos extrativistas, segue predominando o modelo equivocado de ocupação e transformação da floresta em áreas de pastagem, garimpos e monoculturas em grandes propriedades. De outra parte, os modelos mais adequados de convívio com a floresta em pé, em especial as agroflorestas, vêm crescendo, demonstrando melhores resultados, mesmo que de forma tímida e diante de uma política governamental de desmonte da proteção e da promoção da biodiversidade brasileira.
Junto com Chico Mendes, muitos outros companheiros dele estiveram na linha de frente, destacando-se também Raimundo Mendes Barros (Raimundão), que foi um grande líder seringueiro e hoje vive na Reserva Extrativista Chico Mendes (970,5 mil hectares). Também, como mártires da causa socioambiental, é importante lembrar da irmã católica Dorothy Stang, que vivia em comunidades do sul do Pará, sendo também assassinada covardemente, em 2005. Dezenas tombaram e não podem ser esquecidos. Infelizmente, parte considerável dos assassinatos no Brasil está concentrada na região do Arco do Desmatamento da Amazônia, e não por acaso. Infelizmente, o tema ainda não foi estudado de forma desejável.
Pelo
menos como resultado positivo para os povos da floresta, foram criadas Reservas
Extrativistas, como política pública importante com base na experiência no
conhecimento indígena, dos seringueiros, dos demais extrativistas que
aprenderam a conviver com a floresta, juntando ONGs socioambientais e as
pesquisas científicas de universidades e outras instituições, trazendo à tona o
extraordinário tesouro de biodiversidade amazônica com funções ecológicas e
econômicas.
Mas, por outro
lado, as Reserva Extrativistas não barraram a forma de ocupação imediatista, quase
como pilhagem de recursos, que domina a região norte e centro-oeste do País. Como
agravante, vários projetos tramitam no Congresso para diminuir as Reservas
Extrativistas e permitir garimpo, mineração e agronegócio convencional e
insustentável em terras indígenas e em comunidades tradicionais.
Cabe
destacar que o Instituto Chico Mendes, ligado ao Ministério de meio Ambiente,
possui também bravos técnicos do quadro que lutam pela preservação das
florestas e da sociobiodiversidade da Amazônia, mas estão sob camisa de força,
inclusive submetidos a assédio moral pelo governo federal caso queiram manter,
na prática, a proteção ao meio ambientem determinada pelo artigo 225 da
Constituição Federal. Assédio moral no serviço público é crime, e tem que ser
assim tratado. A luta é urgente, em prol dos povos indígenas, dos seringueiros
e demais comunidades tradicionais, associados em cooperativas e mini-indústrias
de produtos diversos e com valor agregado, no resgate das políticas públicas
que coloquem a sociobiodiversidade no patamar que merece no eixo estruturante do
desenvolvimento local e verdadeiro para a Amazônia.
O legado de Chico Mendes
Chico Mendes teve um
papel fundamental em dar maior visibilidade às causas comuns ambientais e
sociais, em especial das comunidades locais que sofrem das mesmas causas de um
modelo econômico em grande parte degradador da natureza. Ele foi um exemplo de
esforço pela unidade nas lutas comunitárias de grupos sociais que desejam
manter seus modos de vida digna, um bem viver talvez utópico, em maior harmonia
com a natureza, desapegados da loucura pela acumulação reinante.
Já ouvi ambientalistas conservadores,
com alguma projeção, dizendo que “Chico Mendes não era ambientalista”, o que me
chocou, a princípio. Mas, quem sabe a afirmativa sirva como provocação para o
resgate e o debate quanto ao extraordinário papel de Chico Mendes,
questionando-se a antiga concepção equivocada, com forte influência do
conservacionismo estadunidense no Brasil, que defendia que a natureza, para ser
protegida, não podia contar com a presença humana.
O desafio de se integrar economia e ecologia segue e, urgentemente, esta fusão deve ser incorporada à região amazônica para que estanque e reverta o processo degradador atual, trazendo maior qualidade de vida a toda a sua população e também a todo o país ou mesmo continente, quiçá planeta, pelas funções de regulação climática desta imensa região que faz parte do Brasil e dos países vizinhos nas fronteiras Norte e Noroeste.
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