Terminou neste sábado, 15 de
fevereiro, o horário de verão, que começou em meados de outubro. A prática de
adiantar o horário em uma hora, na maior parte do País, vem sendo adotada desde
meados do século passado, como uma forma de se diminuir o consumo em horas de
pico. O governo federal, por meio do Operador Nacional do Sistema Elétrico
(ONS), afirma que a medida levou a uma redução da 4,1% da demanda por energia
de ponta nos sistemas Sudeste/Centro-Oeste e Sul, ou seja, no horário de pico
de consumo - principalmente na hora do banho com chuveiro elétrico - redundando
em uma redução de 2,57 GW, e uma economia de R$ 405 milhões [1]. Porém, enormes
contradições ocorrem, citando-se aqui a situação de que 88% dos domicílios
aquecem a água do banho com chuveiro elétrico, e que, ao contrário, poderiam
ter valores expressivos de energia solar em um país eminentemente tropical [2].
As lâmpadas incandescentes, que perduram no Brasil, já foram eliminados na
maior parte dos países, e, juntamente com os chuveiros elétricos, são tecnologias
ultrapassadas e de altíssima ineficiência, mas consideradas “baratas”, dentro da
lógica de uso imediatista, que gera elevado consumo de energia e lucros crescentes
a setores econômicos que se beneficiam disso.
O
Horário de Verão caracteriza-se, na realidade, como uma forma ainda isolada de
diminuir o uso de energia, para dar um pouco mais de “segurança” ao sistema
elétrico brasileiro. E este aspecto ganha destaque principalmente na situação
atual, quando de um verão com temperaturas altas, enquanto que os níveis dos reservatórios das hidrelétricas (UHEs ) reduzem-se acentuadamente, com chuvas bem aquém do esperado para a época. Atualmente,
quase 80% da produção de energia elétrica no Brasil provêm de hidrelétricas [3].
Estes níveis baixos estão gerando a necessidade de se colocar em funcionamento
muitas usinas térmicas (carvão mineral, óleo, gás, etc.), que são caras e
poluentes e que contribuem com a liberação de maior quantidade de gases de
efeito estufa (GEE), que agravam as mudanças climáticas.
A demanda anual de energia elétrica no Brasil é de cerca de 5% ao
ano, quase o dobro do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto). O crescimento
é exponencial e insustentável, e nem sempre seu uso é tão nobre assim. Segundo
o Professor Célio Bermann (USP) [4], cerca de 1/3 da energia elétrica consumida
pelas indústrias vai para o sistema eletrointensivo de produção de matérias
primas (sem valor agregado), em geral para exportação, como produção de
alumínio, aço, minério de ferro, celulose, etc.
Por sua vez, as hidrelétricas também emitem GEE, principalmente por
meio da liberação de metano, que provém da decomposição da imensa quantidade de
resíduos vegetais, afogados e depositados no fundo dos reservatórios, em
processos muito bem elucidados pelo professor Philip Fearnside, do Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) [5].
Se seguirmos os planos decenais de expansão de geração elétrica da
Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia (MME) [6],
todos os rios da Amazônia seriam barrados, como a gigantesca UHE Belo Monte,
para gerar mais e mais energia elétrica. Igualmente, na região Sul, o rio
Uruguai, comprometido por hidrelétricas, em 60% de sua malha hídrica natural (sete
grandes UHEs), contaria com mais quatro ou cinco outras grandes UHEs [7]. Ou
seja, o rio Uruguai perderia, ainda mais, dezenas de milhares de hectares de
Mata Atlântica remanescentes de interior [8], e toda sua sociobiodiversidade
ribeirinha, condenados à morte, definitivamente! O mesmo aconteceria com o que
sobra dos rios ou trechos de rios livres de barramentos da região Centro-Oeste.
Nem o Pantanal escaparia de um número absurdo previsto de mais de 135 hidrelétricas,
quantidade que ameaça colapsar o coração deste bioma único no mundo [9]. Neste
modelo de equívocos profundos no modelo energético [10], podemos destruir também
Pantanal, acabar com os ecossistemas fluviais da Amazônia e condenar definitivamente
à morte o rio Uruguai, passando por cima de unidades de conservação, áreas
prioritárias para a biodiversidade, e direitos de milhares de ribeirinhos,
pescadores, agricultores e moradores, como da cidade de Porto Mauá (RS), que
poderia perder mais de 70% de sua zona urbana para a UHE Panambi.
Com a construção de hidrelétricas, que favorecem as empreiteiras
que recebem financiamentos facilitados do BNDES e, por sua vez, doam dezenas de
milhões de reais às campanhas eleitorais, como faz a Camargo Correa, que doou 114,3
milhões de reais em 2010 a vários partidos e políticos [11], teremos cada vez
mais a expansão do hidronegócio. E com ele, além da perda da democracia, a perda,
para sempre, de matas ciliares [12] e maior fragmentação e ameaça à flora e
fauna remanescente, desaparecendo as corredeiras – que permitem a oxigenação elevada
destes dinâmicos corpos de água - e, por conseguinte, também a piracema,
extinguindo-se peixes raros, ameaçados, alguns nem mesmo conhecidos pela
Ciência. Os reservatórios de hidrelétricas possuem águas quase paradas, com
baixa oxigenação e baixa depuração, devido à poluição crescente. Os organismos
exóticos invasores, que são considerados o segundo fator de perda de
biodiversidade mundial, se aproveitam deste desequilíbrio, e o processo de
degradação se retroalimenta [13].
A falta de investimentos em energias alternativas, renováveis e
mais sustentáveis (energia eólica, solar e bioenergia diversificada) está
fazendo com que o Brasil, ao contrário de países como Alemanha, Japão, China, teime
em seguir investindo em energias ambientalmente não renováveis, em megaobras,
com elevado impacto ambiental. Deixa-se de lado os investimentos necessários em
eficiência energética, sendo que a Agencia Nacional de Energia Elétrica (ANEEL)
esquiva-se de cumprir o que seria de sua atribuição [14], em levar adiante os programas
de redução das perdas de energia, como no caso das linhas de transmissão, onde
os valores chegam a quase 20%, mais do que o dobro de muitos países europeus.
Mas por que isso ocorre? Temos um modelo mundial de crescimento
econômico perdulário e fundamentalista, que preza o mercado e a competitividade,
e está se lixando para as questões socioambientais. Vivemos uma subeconomia, ou
hemieconomia, que está apartada da natureza (aparthaid ecológico), e que se baseia em cálculos superficiais ou
artificiais, longe dos verdadeiros limites dos recursos naturais e dos valores
reais dos prejuízos socioambientais derivados da poluição gerados por ela. A
economia atual, simplesmente, preza o crescimento ilimitado, via consumo e, por
conseguinte, maiores lucros e maior acumulação, o que gera maior demanda de
energia e maiores problemas ambientais. Nisso o Brasil não tem exclusividade,
mas incorpora um papel ainda maior de supridor de matérias primas para
exportação, que exige alta carga de energia. Isso gera maior dependência e
esgotamento, incrementando a degradação sistêmica, do país campeão em
biodiversidade, que deixou de discutir este tema estratégico na Rio (Eco) + 20.
Agora a economia, que incrementa a indústria de automóveis particulares, e
conta com apoios governamentais (IPI reduzido), se arvora de ser “verde” e
“sustentável”, a despeito de se utilizar cada vez mais da pseudo-energia limpa,
das hidrelétricas, ou mesmo do sujo carvão mineral ou das perigosas usinas
nucleares.
No tocante ao aumento necessário da eficiência energética, o professor
Carlos Vainer (UFRJ)
[15], também critica as perdas e os desperdícios de energia no Brasil. Afirma
que as políticas de uso racional são infinitamente mais baratas e sem necessariamente
gerar impactos sociais e ambientais, e que toda a prioridade deveria ser
conferida a uma política de economia e conservação de energia. A palavra de
ordem deveria ser o “combate a todas as formas
de desperdício na transmissão, distribuição e consumo de energia”. Mas, para
isso, novos padrões de consumo deveriam ser estimulados, conforme Carlos Vainer,
além de se seguir mais rigidamente normas técnicas para equipamentos,
instalações industriais, padrões construtivos de imóveis urbanos, etc. e não o
contrário, como vem acontecendo. Sugere que seja aplicado um percentual de 5%
de todos os recursos despendidos nas fontes convencionais – termoeletricidade e
hidreletricidade – na pesquisa e implantação de fontes alternativas (eólica,
solar, biomassa), assim como na pesquisa e na implantação de procedimentos para
redução dos desperdícios, com maior economia e aumento de eficiência no uso da
energia e racionalização do consumo.
Para o Professor Célio Berman (USP), poderiam ser obtidos mais 8
GW de energia elétrica (mais de 10% da energia utilizada no Brasil), por meio
da repotenciação de usinas hidrelétricas já existentes, bastando trocar as
turbinas, com mais de 20 anos, por equipamentos mais novos e eficientes. E também
assinala a necessidade de programas
de melhoria das redes de transmissão e distribuição [16].
No
caso da incorporação das energias alternativas, ainda minúscula no Brasil, com
a importante descentralização de geração elétrica, o País tem várias saídas
sustentáveis. Inicialmente, trazemos aqui a questão do potencial via painéis
fotovoltaicos. A Alemanha já possui 32.059 Megawatts derivados da fonte solar
[17]. E temos a presença e a intensidade do sol em uma situação privilegiada. De
outra forma, o Brasil possui excepcional potencial para a energia eólica,
estimada inicialmente como de 143,5 GW, mas com potencial de 300GW, segundo o
presidente da EPE, Maurício Tolmasquim [18], obviamente dentro de padrões que
respeitem os zoneamentos ambientais. Com relação à bioenergia, derivada de
resíduos agrícolas ou biogás de usinas urbanas, poderíamos agregar outras tantas
dezenas de Gigawatts de geração elétrica, resguardando os nossos rios que ainda
correm naturalmente e a manutenção de seus ecossistemas associados, além de
manter qualidade de ar e menos riscos ambientais como agora.
Mas
para isso, a sociedade brasileira tem que se envolver nesta luta, por uma
economia inteligente, que utilize racionalmente a energia, auxiliando também a
desvendar e romper as intrincadas ligações dos setores que se beneficiam do
círculo vicioso da manutenção de megaobras, via um setor elétrico, agora
predominantemente privatizado. Setor este que mantém suas raízes autoritárias e
tecnocráticas, provindas da década de 1970, e que perdura até hoje, com o
agravante de setores políticos que se beneficiam de forma espúria por meio de financiamentos
privados milionários das campanhas eleitorais.
Referências
[1] EBC - Horário de verão termina à meia-noite deste sábado http://www.ebc.com.br/apuracao2012/brasil/2014/02/horario-de-verao-termina-a-meia-noite-deste-sabado
[2]
EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICa (EPE). 2013. Plano Decenal de Expansão de
Energia 2022. Rio de Janeiro: http://www.epe.gov.br/pdee/forms/epeestudo.aspx
[3] INTERNATIONAL RIVERS. 2012 O Setor Elétrico Brasileiro e a
Sustentabilidade no Século 21
[4] BERMANN, C.
2012. O Setor de Eletro-Intensivos – In International Rivers. 2012 O Setor Elétrico Brasileiro e a
Sustentabilidade no Século 21
[5]
FEARNSIDE, P. 2004. Gases de efeito estufa na Amazônia. Ciência Hoje. V. 36, n.
211
[6] EPE 2013, Op. Cit.
[7]
NAT – Núcleo Amigos da Terra -Brasil. 2011. Grandes e pequenas centrais
hidrelétricas na bacia do rio Uruguai
[8] BRACK, P. et al. 2011. As hidrelétricas do rio Uruguai e o confronto à
Legislação que protege a
sociobiodiversidade brasileira – Resumo 79. Congresso de Ecologia do
Brasil.
[9] IHU 2012 - Hidrelétricas
comprometem conservação do Pantanal. Entrevista especial com Débora Calheiros
[10] INGÁ. 2009. As 10 Maiores
barbeiragens do modelo do setor elétrico brasileiro: hidrelétricas em foco http://www.inga.org.br/?p=1258
[11] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL –
Consulta a doadores e financiadores de campanha 2010 http://spce2010.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2010/abrirTelaReceitaComite.action
[12] IHU
2010 – Entrevista com o Dr. Rafael Cruz - Hidrelétricas no Rio Uruguai:
uma floresta inteira extinta. Entrevista especial com Rafael Cabral Cruz
[13] BRACK, P. Rios como artérias de vida, mas sob o
torniquete das hidrelétricas. Ecoagencia de Notícias http://www.ecoagencia.com.br/?open=artigo&id===AUUJlcWxGZXJFbaNVTWJVU
[14] INTERNATIONAL RIVERS. 2012. Op. Cit.
[15] VAINER, C. 2007. Recursos
hidráulicos: questões sociais e ambientais. Estudos Avançados, vol. 21. n. 59. http://www.scielo.br/pdf/ea/v21n59/a09v2159.pdf
[16] BERMANN, C. 2007. Impasses e controvérsias da hidreletricidade.
Estud. av. vol.21 N. 59 http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142007000100011&script=sci_arttext
[17] DW – 2013 - Produção de energia solar na Alemanha bate recorde em 2012 http://www.dw.de/produ%C3%A7%C3%A3o-de-energia-solar-na-alemanha-bate-recorde-em-2012/a-16492873
[18]
TOLMASQUIM, M. Perspectivas energéticas para o Brasil. XIV Congresso Brasileiro
de Energia http://pt.slideshare.net/CBE2012/xiv-cbe-mauricio-tolmasquim-23-out-2012
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